19 de janeiro Meu querido, Dizem que a separação nunca é um núcleo, uma urgência. Dizem que ela começa em seu avesso. E que é justamente no momento mais suave, o primeiro encontro, o primeiro olhar, que a separação começa a existir. Eu prefiro acreditar que a separação nunca termina, e que o último dia, a última noite, é um instante que se repete, a cada espera, a cada volta, cada vez que sinto a tua falta, cada vez que pronuncio teu nome. Eu acredito que, ao te chamar, uma estratégia, um encanto, eu seja capaz de fazer com que você se vire e olhe, e, sem perceber, estenda entre nós um atalho, uma ponte. Mas como a gente chama alguém que foi embora? Alguém que está longe, alguém que não está? A distância deveria imediatamente impor um tom mais solene, ou menos íntimo, afinal há a distância. Mas como a gente trata com distanciamento alguém que acabou de estar tão perto, ao meu lado, há pouco deitado ao meu lado, na minha cama, onde todo dia, todas as noites, algo tão íntimo como dividir a cama e os lençóis da cama quando o dia amanhece e os lençóis ficam lá, abertos, escancarados, com suas manchas e sua noite impregnada. Como alguém sai da cama da gente para a formalidade? Imagino que neste instante você esteja aí, na tua casa, o teu sofá, a tua poltrona preferida, ou então uma cadeira, colocada assim, displicentemente, junto à mesa da cozinha ou da sala de jantar. Você aí sentado, um copo d'água, uma xícara de café, como agora? Esta carta nas mãos e a dúvida, você se perguntando, talvez irritado, por que isso agora, afinal já não acabou, você já não foi embora, para que continuar assim, para que continuar indo embora, indefinidamente, você poderia se perguntar. Eu te respondo que não sei, mas talvez a necessidade de recuperar alguma coisa, algo irrecuperável, que outra razão poderia haver? A tentativa de impedir que você se levante, vá fechar a janela, consertar um interruptor, ou mesmo atender o telefone, o telefone tocando, uma ventania, alguém acenando da outra sacada, o barulho insistente do telefone, mas você aí, alheio, mudo, esta carta nas mãos, as tuas mãos que eu temo e quero tanto, e que eu gostaria agora dóceis, afáveis, apenas a suavidade ou a aspereza destas páginas e o ondular de fibras imperceptíveis que nascem e voltam a se desfazer, o movimento incessante. Mas talvez as coisas sejam mesmo irrecuperáveis. Talvez tudo seja irrecuperável, tudo, não só o passado, o que se perde na memória, mas o presente, o agora que parece tão vivo, tão exato. E, mesmo que eu queira, mesmo que eu me esforce, até eu, até você. Triste, não? Tento imaginar a expressão do teu rosto, o teu rosto, a tua boca, o teu olhar neste momento, agora, agora, este momento que nada mais é do que um espaço, um intenso vão que nos separa, a distância entre as minhas e as tuas mãos, entre os meus dedos, que passeiam pelas teclas desta máquina, e os teus, que acariciam a textura do papel. Você sentado numa poltrona ou numa cadeira ou num sofá, o apartamento que eu conheço tão bem, as letras, as palavras que eu escolho, o encadeamento das palavras, o encadeamento que sempre é outro, calcado pelo tempo, por esse constante envelhecer. Como ultrapassar essa distância que nos separa? este intervalo entre o que eu digo e o que você lê, esse momento que nunca chega, que nunca é. Penso no teu rosto, agora, ou quando freqüentemente eu te fazia uma pergunta, às vezes qualquer bobagem, a chuva, o dia, a rua, o teu rosto tenso, apreensivo, a inutilidade de estar sempre perguntando alguma coisa, sem perceber que eu perguntava sem esperar resposta, que eu perguntava por perguntar, pela simples necessidade de confirmar que você estava ali comigo, a minha mão procurando a tua, qualquer carinho, qualquer afago teu. Ali, comigo. Como aquelas crianças que percorrem a casa à procura da mãe, a mãe que desapareceu, assim, sem avisar, porque nunca há como avisar, a mãe que foi até a cozinha, até o quarto, ou mesmo até a varanda, ver como está o tempo ou acenar para alguém, a mãe que, de repente, sem que ela desconfie, passa a ser alguém que não está, alguém que desapareceu. Fica então apenas aquele mundo da criança, e a ausência, e alguém procurando qualquer coisa no escuro, qualquer afago, a cada momento tentando se certificar, a criança, que só conhece o que é capaz de perceber. É, eu sou assim, só existe o que sou capaz de perceber. E, mesmo que você ocultasse, mesmo que você tentasse disfarçar, era como se você não estivesse ali, como se você se encontrasse sempre em outro quarto, na cozinha, na varanda, acenando para alguém que passa e que eu não sei quem é. Por isso a minha insistência, esta carta. Você, mesmo que apenas alguns instantes, mesmo que uma sombra, um movimento qualquer, e eu que me viro assustada, olhando em volta, imaginando a tua presença assim, inesperada, inexplicável. Porque há algo que eu quero te dizer, algo que ficou pela metade, a casa vazia ou uma frase incompleta ou alguma reticência, como se as reticências pudessem significar alguma coisa, ou talvez porque as reticências signifiquem o que a gente quiser. Porque há algo que ficou pela metade. Algo que vem depois. Porque há coisas que demoram em começar a existir. E que é necessário repetir, uma e outra vez. A separação. Há dias que não saio de casa, eu já te disse isso, não, não te disse? Eu até poderia ser dramática, te dizer que há dias que não saio de casa, há dias que não como, não tomo banho, não penteio o cabelo, lembra, o meu cabelo, que você gostava que eu usasse solto, lembra?, que você costumava elogiar, dizer que parecia uma cortina escura, escura como um pássaro, escura como a noite, será que você disse algo assim? Não, você nunca diria. Mas não, eu não vou te dizer que estou sofrendo, para quê? Te falo melhor de outras coisas. Há dias que não saio de casa, que não tomo banho, que não penteio o cabelo. Há dias. Será que esqueço algo importante?, talvez, sempre suspeitei que tendemos a esquecer o mais importante, talvez por ser um alvo em constante transformação, o mais importante é sempre outra coisa, algo que nos escapa. Como o espaço de que te falei, aquele entre o que eu escrevo e o que você lê. Algo que incomoda, sem nunca tomar corpo. Que grandes perigos isso poderia trazer, tomar corpo, a transformação numa estrutura que diga e que fique e que seja, um testemunho, um sinal. Ao tomar corpo, as palavras encadeadas e as fibras imperceptíveis do papel, que perigo poderia haver? E, se não há perigo, eu poderia facilmente te falar de ontem, ou te contar, por exemplo, um segredo, ou um desejo muito íntimo, ou algo que me revelasse. Te dizer, por exemplo, ontem. Ontem pensei em você, e na tua boca na minha boca e na tua mão nos meus cabelos e no teu corpo junto ao meu. Lembra? O teu corpo junto ao meu e tudo o que ele podia causar em mim. A constante queda. O roçar da tua pele, das suavidades e asperezas da tua pele. A minha respiração inquieta, que é a mesma de agora, neste momento em que te escrevo e lembro, lembra? A nossa geografia imaginária. O teu corpo junto ao meu. A força da tua exigência, a tua voz um toque seco, a tua voz uma carícia, e agora, ao meu lado, no meu ouvido, a tua voz, lembra? A tua mão nos ângulos mais distantes, nos recantos mais sutis, lembra? O meu corpo em queda, como agora, porque era teu, a tua mão que me percorria, os teus dedos, haveria algo assim, a tua mão que me assustava, e percorria a pele interna das minhas coxas e me envolvia o ventre e a cintura, a tua voz que me beijava a nuca, a tua voz atrás de mim, e eu que me perdia e me reencontrava, em você, como agora, como se tudo em mim fosse água, fosse céu. O teu nome junto ao meu, o meu nome, o teu querer, e eu que me agitava e me desfazia, e que dizia sim, que eu era tua, tua mulher, o que você quisesse teu. [...]