Trecho do livro A DEMANDA DO SANTO GRAAL

APRESENTAÇÃO Na véspera de Pentecostes, cavaleiros de procedência variada chegam a Camalote, capital do reino de Logres, para integrar a távola redonda do rei Artur. Quando todos se reúnem, a luz, o brilho e a força com o alimento do Graal contagiam o castelo e a capital do reino, irradiam-se por toda a terra representada por outros reinos, cidades, campos, rios, florestas, montes, vales, igrejas, ermidas, abadias, casas e tendas. Encantados, os cavaleiros partem em busca de uma nova visão do Graal, na esperança de presenciar mais uma vez tal estado de êxtase e de devolver Camalote a seus dias de glória. Estamos diante de uma coletividade que desenvolve uma saga caldeada com o místico e o profano. As aventuras dos cavaleiros da távola redonda retratam atividades da cavalaria errante da baixa Idade Média, estando todos eles dispostos a enfrentar todo tipo de aventuras. São justas, torneios, vinganças, prodígios, tentações, sonhos e visões a suceder-se com alta carga alegórica. São cenas de forte intensidade emocional, seja para o prazer, para a vitória e para novas investidas na busca, seja para a humilhação, para a derrota, para frustrações profundas e para a morte. Confronte-se a tentação de Galaaz com a de Persival, por exemplo; observe-se Tristão e Isolda abrigados da sanha de rei Mars em sua Joiosa Guarda, nos domínios do reino de Logres. Destaque-se o furor erótico dos amores clandestinos do cavaleiro campeão do rei, Lancelote, e da rainha Genevra. Percorra-se a trajetória de Galvão para se tentar comprender o pranto geral e profundo quando do adeus a seu corpo, como a corte toda se abate, e as expressões de sua perda são as mais fortes, as mais sentidas e as mais doloridas. Toda e qualquer referência ao rei Artur ou ao mago Merlim, a Lancelote, a Galaaz, a Galvão, ou aos cavaleiros da távola redonda em geral, ao Cálice sagrado ou à própria Demanda do santo Graal, desperta certo magnetismo, uma espécie de magia que atrai e seduz. Surgidas durante a Idade Média, as lendas arturianas, conhecidas também como matéria da Bretanha, continuam a provocar interesse e curiosidade. De enorme importância na cultura da civilização ocidental, seu assunto e seus temas, tomados às tradições celtas da Grã-Bretanha e da Armórica, são cheios da magnificência de mitos e ricos de uma poesia ainda latente. O maior mérito, no entanto, há de estar na amplitude da ressonância humana que tal matéria provoca. São estórias que implicam a sedução mágica da mulher e do amor, o apelo ao mistério e ao desconhecido, a invencibilidade da esperança na aventura heróica suscitada pelo sonho ou pelos arroubos do coração, enfim, a busca do inacessível. E tais abstrações se concretizam invariavelmente na aceitação e no enfrentamento da prova e do desafio, timbrados pelo amor e pelo combate. De origem oral, as narrativas galesas foram sendo remodeladas e muitas vezes alteradas, mutiladas mesmo, do século VIII ao século XII, por diversos narradores: Nennius; William of Malmesbury; Geoffrey of Monmouth; Beda, o venerável. Estabeleceu-se um riquíssimo intercâmbio de heróis e mitos, de história e estórias, alimentando-se os textos desses veios para atingir seu apogeu por volta de 1100 d.C. Malmesbury menciona Artur como um grande guerreiro. Monmouth dá notícia de que Artur chega ao trono com quinze anos, destacando-se por suas virtudes, principalmente a generosidade. Esse mesmo autor cita Avalon, a ilha das maçãs, para onde levam Artur ferido, para ser tratado por Morgana, nascendo então seu mito messiânico. No terceiro quartel do século XII, essas narrativas tomam a forma que se convencionou designar roman - o romance em verso geneticamente ligado a dois outros discursos: um que a tradição das canções de gesta cultiva, já em vias de extinção progressiva, e outro, recentemente recuperado, o da historiografia. Servindo-se desses dois vínculos, cujos recursos habilmente explora, o romance em verso funda suas raízes na estética e na ideologia desse século e do seguinte. Exemplos desse tipo de narrativa são o Roman de Brut, de Wace, e a obra de Chrétien de Troyes, Érec et Énide, Cligès ou La fausse morte, Lancelot ou Le chevalier de la charrette, Yvain ou Le chevalier au lyon e Perceval ou Le conte dou Graal. Se, no seio de sua comunidade, o cantor de gesta revela sua própria verdade, integrando a desordem da vida numa ordem, e o duvidoso, na justiça, o autor do romance em verso atribui às vicissitudes da existência uma intemporalidade triunfante, de duração permanente em diálogo virtual entre a matéria, o sentido e a conjuntura, como explicita Chrétien de Troyes nos prólogos do Érec e do Chevalier de la charrette. A matéria é a estória como vem sendo transmitida; o sentido é o significado que constitui a interpretação proposta e possível da matéria, como tal, sempre em evolução. A conjuntura é o ajuste entre a matéria e o sentido, a busca do equilíbrio da arte instaurada entre ambos, a unidade interna que garante ao signo global, que é a obra, seu significado, somatória dos signos parciais de suas unidades. É a integração de uma ordem, que se define em termos de textualidade. Fruto dessa integração, a obra está aberta à interpretação e à interpenetração de matéria e sentido muito bem expressas na fala do cavaleiro Tristão, em seu próprio romance em prosa, ao declarar o que anda fazendo: "buscando aventuras e o sentido do mundo". Por volta de 1220, na região de Meaux, na França, iniciou-se o processo de prosificação desses romances arturianos, cujo objetivo parece ter sido dar forma definitiva à lenda. A primeira prosificação uniu cinco romances em sequência: 1. Estoire du Graal; 2. Estoire de Merlin; 3. Lancelot du Lac; 4. La queste del saint Graal e 5. La mort le roi Artu. Tais romances são caracterizadamente cíclicos por desenvolverem ordenadamente a seqüência narrativa, do mesmo modo como são cíclicos, na literatura brasileira do século XX, os conhecidos romances da cana-de-açúcar, de José Lins do Rego, ou os romances de O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Tal organicidade cíclica, porém, não permite concluir que os romances medievais, diferentemente do que ocorre com os romances dos dois ciclos dos autores brasileiros, tenham sido escritos por um mesmo escriba e naquela ordem. Por um perído, o ciclo logrou ter sido atribuído a um só autor ou mentor, Gautier Map. Comprovou-se, porém, que esse autor, falecido meio século antes, não teria como ter feito a prosificação. O escriba, que preferiu não se identificar, tomou emprestado o nome de Gautier Map, procedimento não raro na época. Ao valer-se de um nome de prestígio, o autor, que se escondia sob o anonimato, buscava garantir a aceitação e um futuro para seu texto. De fato, sob o véu da alegoria, a matéria da Bretanha adaptou-se ao longo do tempo a diversos gostos e influências religiosas que orientaram seus heróis para a busca do Graal, símbolo da graça divina, e contrapuseram, aos heróis amorosos, os heróis ascéticos como Galaaz e Persival. O processo de cristianização é visível desde o início do primeiro livro. Pouco tempo depois dessa primeira prosificação, houve outra com objetivos muito diversos da anterior e com diferente distribuição de matéria. Entre as diferenças que o texto apresenta em relação à primeira versão, destaca-se a convivência com personagens da época, como Tristão, Samaliel, o Conde Bedoin, rei Mars de Cornualha e particularmente Palamedes, o cavaleiro da Besta Ladradora que vem a se tornar cristão, e Esclabor, seu pai. Revelam-se os amores de Lancelote com a rainha Genevra, seguindo-se lutas internas que corroem o reino. Gravemente ferido em combate contra o sobrinho que morre, Morderete - na verdade, seu filho incestuoso -, Artur é levado por Morgana e outras mulheres, numa barca, para a ilha de Avalon. Esse segundo ciclo, conhecido como Post-Vulgata, nunca logrou ser editado, pela simples razão de que não há, em sua língua de origem, o texto integral. Com lacunas ora longas, muito longas às vezes, ora breves, há testemunhos vários em traduções de que existem cópias ou edições. O texto mais acabado da segunda prosificação é A demanda do santo Graal portuguesa, que está no códice português da Biblioteca Nacional de Viena. Introduzidos em Portugal durante o reinado de Afonso III (1245-79), quiçá pelo próprio rei, os textos arturianos atingiram popularidade imensa durante os séculos XIII, XIV e XV. Fernão Lopes, em sua Crônica de dom João I, refere que Nuno Álvares Pereira lia amiúde histórias, especialmente a Estória de Galaaz, que fala da távola redonda. Mais adiante conta que o rei, em pleno acampamento de combate, na cidade de Coira, lamentava a falta que faziam os cavaleiros da távola redonda naquela circunstância, dando azo a que um de seus bravos, Mem Ruiz de Vasconcellos, comparasse alguns de seus pares a Galaaz, a Tristão e a Lancelote, e a si mesmo a Quéia, chegando à conclusão de que rei Artur, senhor deles, é que fazia míngua, o que permitiu a dom João I a célebre manifestação de reconhecimento da igualdade do rei com os seus: "Nem eu a esse tirava fora porque assim era cavaleiro como cada um dos outros". Tão profunda influência social histórica e literária exerceu a matéria da Bretanha em Portugal que, em fins do século XVI, o mito messiânico de Artur transferiu-se para dom Sebastião. Este volume traz uma versão modernizada da Demanda do santo Graal de Viena, de modo a tornar acessível a maior público o mais importante apógrafo português do século XV. Toda a gênese da literatura arturiana, bem como a tradição de seus textos, especialmente o estema da Demanda portuguesa são cuidadosamente apresentados, com base em informações absolutamente atualizadas O texto traz preenchidas as lacunas do manuscrito, e vem estabelecido com tal cuidado que muito da beleza original conserva-se nestas páginas. Heitor Megale I. GALAAZ É ARMADO CAVALEIR 1. VÉSPERA DE PENTECOSTES, houve muita gente reunida em Camalote, de tal modo que se pudera ver muita gente, muitos cavaleiros e muitas mulheres de muito bom parecer. O rei, que estava por isso muito alegre, honrou-os muito e fez servi-los muito bem e toda coisa que entendeu que tornaria aquela corte mais satisfeita e mais alegre, tudo mandou fazer. Aquele dia que vos digo, exatamente quando queriam pôr as mesas - isto era hora de noa -, aconteceu que uma donzela chegou muito formosa e muito bem vestida; e entrou no paço a pé, como mensageira. Ela começou a procurar de uma parte e de outra pelo paço; e perguntaram-lhe o que buscava. - Busco - disse ela - dom Lancelote do Lago. Está aqui? - Sim, donzela - disse um cavaleiro. - Vede-o: está naquela janela falando com dom Galvão. Ela foi logo para ele e saudou-o. Ele, assim que a viu, recebeu-a muito bem e abraçou-a, porque aquela era uma das donzelas que moravam na ilha da Lediça a quem a filha Amida do rei Peles amava mais que a donzela da sua companhia. 2. Como a donzela disse a Lancelote que fosse com ela - AI, DONZELA - disse Lancelote -, que ventura vos trouxe aqui? Que bem sei que sem razão não viestes. - Senhor, verdade é; mas rogo-vos, se vos aprouver, que vades comigo àquela floresta de Camalote; e sabei que amanhã, à hora de comer, estareis aqui. - Certamente, donzela - disse ele -, muito me agrada, pois tenho obrigação de vos servir em tudo que puder. Então pediu suas armas. E quando o rei viu que se fazia armar com tanta pressa, dirigiu-se a ele com a rainha e disse-lhe: - Como? Deixar-nos quereis em tal festa, quando cavaleiros de todo o mundo vêm à corte, e muito mais ainda por vos verem que por outro motivo: uns para vos verem, e outros por terem vossa companhia? - Senhor - disse ele -, não vou senão a esta floresta, com esta donzela que me pediu, mas amanhã, à hora de terça, estarei aqui. 3. Como Lancelote se foi com a donzela ENTÃO SAIU LANCELOTE do paço e montou seu cavalo, e a donzela, seu palafrém, e haviam ido com a donzela dois cavaleiros e duas donzelas. E quando ela voltou a eles, disse-lhes: - Sabei que consegui aquilo por que vim: dom Lancelote do Lago há de ir conosco. Então puseram-se a andar e entraram na floresta, e não andaram muito por ela que chegaram à casa do ermitão que costumava falar com Galaaz. E quando ele viu Lancelote ir e a donzela, logo soube que ia para fazer Galaaz cavaleiro, e deixou sua ermida para ir ao mosteiro das mulheres, porque não queria que Galaaz fosse antes que ele o visse, porque bem sabia que se ele partisse dali, não voltaria, porque lhe conviria, assim que fosse cavaleiro, entrar nas aventuras do reino de Logres. E por isso lhe parecia que o havia perdido e que o não veria amiúde e temia, pois tinha por ele muito grande estima, porque era santa cousa e santa criatura. 4. Como Lancelote chegou à abadia QUANDO CHEGARAM à abadia, levaram Lancelote a uma câmara e o desarmaram. E veio a ele a abadessa com quatro mulheres, e trouxe consigo Galaaz, tão formosa pessoa que maravilha era. E andava tão bem vestido que não podia melhor. E a abadessa chorava muito com prazer, assim que viu Lancelote, e disse-lhe: - Senhor, por Deus, fazei nosso novo cavaleiro, porque não queríamos que fosse cavaleiro por mão de outro; porque melhor cavaleiro que vós não o pode fazer cavaleiro; porque bem cremos que ainda será tão bom, que vos achareis bem por isso, e será vossa a honra de o fazerdes, e se ele vos isto não pedisse, vo-lo deveríeis fazer, pois bem sabeis que é vosso filho. - Galaaz - disse Lancelote -, quereis ser cavaleiro? E ele respondeu vivamente: - Senhor, se vos aprouvesse, bem o queria ser, porque não há cousa no mundo que eu tanto deseje como a honra de cavalaria e ser cavaleiro da vossa mão, porque de outro o não queria ser, que vos ouço tanto louvar e prezar de cavalaria, que ninguém, no meu entender, podia ser covarde e mau, que vós fizésseis cavaleiro. E isto é uma das cousas do mundo que me dá maior esperança de ser homem bom e bom cavaleiro. - Filho Galaaz - disse Lancelote -, estranhamente vos fez Deus formosa criatura. Por Deus, se não cuidásseis ser bom homem ou bom cavaleiro, assim Deus me aconselhe, sobejo seria grande dano e grande desventura não serdes bom cavaleiro, porque sobejo sois formoso. E ele disse: - Se me Deus fez formoso, dar-me-á bondade, se lhe aprouver, porque de outro modo valeria pouco. E ele quererá que eu seja bom e coisa que semelhe minha linhagem e aqueles de quem eu venho; e posta hei minha esperança em Nosso Senhor; e por isso vos rogo que me façais cavaleiro. E Lancelote respondeu: - Filho, pois vos apraz, eu vos farei cavaleiro. E Nosso Senhor, assim como a ele aprouver e o poderá fazer, vos faça tão bom cavaleiro como sois formoso. E o ermitão respondeu a isto: - Dom Lancelote, não tenhais dúvida de Galaaz porque vos digo que em bondade de cavalaria, os melhores cavaleiros do mundo passará. E Lancelote respondeu: - Deus o faça assim como eu queria. Então começaram a chorar de prazer quantos no lugar estavam. [...]