Trecho do livro O PROBLEMA DA INCREDULIDADE NO SÉCULO XVI

Introdução geral Bons manuais são bons. Mas a Évolution de l´Humanité não é uma coleção de manuais, por excelentes que sejam eles. Então ninguém me acusará, entre seus leitores fiéis, se, tendo assumido a pesada tarefa de examinar, no quadro desse grande empreendimento, os problemas religiosos que ocuparam tanto lugar na vida dos homens no tempo da Renascença, utilizo hoje um caminho insólito ao consagrar todo um grande volume ao que se poderia chamar a outra face da crença: a incredulidade. Que o título deste livro não desoriente, portanto, o leitor. Amo Rabelais. Mas a presente obra não é a homenagem de um leitor curioso a um autor que o diverte. Não é, em outros termos, uma monografia rabelaisiana. É, em intenção e em sua ambiciosa modéstia, um ensaio sobre o sentido e o espírito de nosso século XVI. Mais um? Como se tudo já não houvesse sido dito desde que há exegetas da Renascença e que se copiam uns aos outros? - Precisamente, eu desejaria não copiar meus antecessores. Não por gosto gratuito pelo paradoxal e pelo novo: porque sou historiador, simplesmente, e o historiador não é aquele que sabe. É aquele que procura. E, portanto, que repõe em discussão as soluções estabelecidas, que revisa, quando é preciso, os velhos processos. Quando é preciso - não significa dizer "sempre"? Não façamos como se as conclusões dos historiadores não fossem necessariamente atingidas por contingência. De todas as fórmulas tolas, a do livro "que não será mais reescrito" corre o risco de ser a mais tola. Ou melhor: não se reescreverá mais, esse livro, não porque ele alcance o absoluto da perfeição, mas porque é filho de seu tempo. História, filha do tempo. Não o digo, por certo, para diminuí-la. Filosofia, filha do tempo. Física mesmo, filha de seu tempo: a de Langevin não é mais a de Galileu, que não é mais a de Aristóteles. Progresso de uma a outra? Quero crer que sim. Historiadores, falemos sobretudo de adaptação ao tempo. Cada época fabrica mentalmente seu universo. Ela não o fabrica apenas com todos os materiais de que dispõe, todos os fatos (verdadeiros ou falsos) que herdou ou que acaba de adquirir. Fabrica-o com seus dons próprios, sua engenhosidade específica, suas qualidades, seus dons e suas curiosidades, tudo aquilo que a distingue das épocas precedentes. Igualmente, cada época fabrica mentalmente sua representação do passado histórico. Sua Roma e sua Atenas, sua Idade Média e sua Renascença. Como? Com os materiais de que dispõe - e por aí um elemento de Progresso pode insinuar-se no trabalho de história. Mais fatos, e os mais diversos, os mais bem controlados: o ganho não é desprezível. Com igualdade de talento, não é a mesma a casa que o bom arquiteto constrói com velhas pedras e duas ou três vigas gastas - ou então com belas e boas pedras talhadas, em abundância, e belas peças de vigamento preparadas para a montagem. Mas não há apenas os materiais. Há os dons também, e que variam, as qualidades de espírito e os métodos intelectuais; há, sobretudo, as curiosidades e os motivos de interesse, tão rápidos em se transformar e que projetam a atenção dos homens de uma época sobre tais aspectos do passado, muito tempo deixados na sombra, e que amanhã as trevas novamente recobrirão. Não digamos que isso é humano, mas, sim, que é a lei do saber humano. Nossos pais fabricaram sua Renascença. Ela já não era mais a Renascença dos pais deles. Nós herdamos essa Renascença: aos quinze anos, meus colegas e eu líamos Taine, a Viagem à Itália e a Filosofia da arte; aos dezoito, nutríamo-nos de Burckhardt. E meu Rabelais foi por muito tempo o Rabelais de Gebhart. No entanto, de 1900 a 1941, quantas tragédias e derrocadas! Se não me tivesse dado conta delas por mim mesmo (não ironizo: o homem tem tal necessidade de estabilidade, encontra na estabilidade tal satisfação que, mesmo lúcido por natureza e profissão, muitas vezes recusa-se a sê-lo por instinto e, fechando os olhos à realidade, enxerga apenas o que viu outrora) - se não me tivesse dado alguma conta pessoal delas, a leitura, em 1922, da grande Introdução de Abel Lefranc no início do Pantagruel, na edição crítica das Œuvres [Obras], delas me teria advertido. Ela me causou um choque - daí este livro, este livro que desejaria levantar, por reação, os difíceis problemas da incredulidade. Diante de nós, alguns dos grandes espíritos do século XVI. E, em primeiro lugar, Rabelais. Em seu foro íntimo, quem foi realmente esse homem? Um natural de Touraine escarninho, herdeiro pura e simplesmente da verve anticlerical e atrevida do orleanês Jean de Meung? Ou então um profundo filósofo que, passando à frente de seus contemporâneos, ultrapassou-os tanto na crítica e na incredulidade que ninguém pôde segui-lo? Foi ele o cético de Anatole France, propondo a seu século "a fé mais necessária ao homem, a mais conforme à sua natureza, a mais capaz de torná-lo feliz: a dúvida" - ou, bem ao contrário, o fanático de Abel Lefranc, decidido a guiar os homens para as certezas laicas de uma ciência sem limites? Mais plácidos que o exegeta fogoso de Pantagruel, veremos nós em Rabelais um desses cristãos medíocres que empoleiram no altar do Deus da boa gente um Cristo totalmente desprovido de auréola - ou então o animaremos de uma paixão reformada, logo refreada pelo medo dos suplícios? Eis-nos como Panúrgio: o que escolher, o que rejeitar? E, se se trata de autoridades, abrigam-se dez, e das mais reverenciadas, atrás de uma e outra dessas opiniões contrárias... Rabelais: mas eis Des Périers. O desconhecido Des Périers. Humanista apaixonado por pensamento platônico; servidor ora em boas graças, ora em desfavor com a Margarida das Margaridas; militante da corajosa equipe que dotou a Reforma francesa de sua primeira Bíblia "em língua vulgar"; colaborador de Étienne Dolet, príncipe dos libertinos, nos Commentaires de la langue latine [Comentários da língua latina]; autor certo de poemas pessimistas, autor provável de contos vivos e picantes, autor misterioso de um Cymbalum mundi cuja inspiração e origem, durante quatro séculos, permaneceram como enigmas: entre todos esses aspectos de um mesmo homem, como escolher? Que figura compor para aquele que os críticos, sucessivamente, puxam para a Reforma, o livre-pensamento, o misticismo ou a licenciosidade? Des Périers, mas e sua protetora Margarida de Navarra? A cristã do Miroir de l´âme pécheresse [Espelho da alma pecadora]; a mundana dos contos do Heptaméron; a mística das cartas a Briçonnet; a luterana que traduziu em versos franceses o Comentário de Martinho Lutero sobre a Oração dominical; a calvinista que apoiou em seus primeiros passos o futuro autor da Institution; a "intelectual" queprotegeu Pocques e Quentin contra as fúrias do picardo que se tornou genebrino; a sedenta de amor divino: Ó doce amor de brando olhar Que me trespassas com teu dardo... Ai, tenho medo De com bastante bom coração não amar [...] Com tantos traços díspares (e que seria vão querer classificar por épocas), como retraçar uma fisionomia viva e coerente? Des Périers, mas e seu patrono Dolet? Um mártir da Renascença: vejam Copley Christie. Um paladino do libertinismo, dirijam-se a Boulmier, que renova Bayle. Um partidário do Evangelho para todos: creiam em Nathanael Weiss, herdeiro de Des Maiseaux. Autoridades, afirmações, dúvidas. No entanto, todas as testemunhas estão aí, amigos ou inimigos; todos os textos estão aí e, em primeiro lugar, as obras de Dolet, seus gritos patéticos, e o Second Enfer [Segundo inferno], e o Cantique [Cântico] doloroso de 1546. Do Dolet ateu ao Dolet reformado, a distância é grande: mas, entre conhecedores, o acordo é impossível. De exemplos, que poderiam ser multiplicados, basta. Eles nos permitem dizer: quando, colocando-nos bem em frente de um homem do século XVI, interrogando-o, a ele e seus contemporâneos, tentamos definir sua fé, nunca estamos realmente seguros dele - nem de nós. E eis levantado o problema do método - o que nos ocupa. Não vamos logo dizendo: ah, se os textos fossem mais ricos, as testemunhas mais tagarelas, as confissões mais detalhadas! - Pois, hoje, não temos nós tudo, aparentemente, para conhecer nossos contemporâneos: suas confidências, vejam nossos discos; seus jogos de fisionomia, vejam nossas fotografias. E no entanto... Um velhaco, dizem estes. Um apóstolo, dizem aqueles. Trata-se do mesmo homem. Na verdade, engana a monografia que é apenas retrato de meio-corpo, sem segundo plano nem cenário. Não há pensamento religioso (nem pensamento simplesmente), por mais puro e desinteressado que seja, que não seja colorido em sua massa pela atmosfera de uma época - ou, se se preferir, pela ação secreta das condições de vida que uma mesma época cria em todas as convenções, em todas as manifestações de que constitui o lugar-comum. E sobre as quais ela imprime a marca de um estilo que não se viu ainda - que não se reverá mais. A partir daí, o problema fica mais nítido e, ao mesmo tempo, delimita-se. Ele não é (para o historiador, entenda-se) de apreender um homem, um escritor do século XVI, isolado de seus contemporâneos - e, sob o pretexto de que tal passagem de sua obra inscreve-se no curso de uma de nossas maneiras particulares de sentir, classificá-lo taxativamente sob uma das rubricas que usamos hoje para catalogar os que pensam ou não pensam como nós em matéria de religião. Tratando-se de homens e de idéias do século XVI, tratando-se de maneiras de querer, de sentir, de pensar e de crer "armadas", como diz Calvino, com as armas do século XVI - o problema é de estabelecer com exatidão a série das precauções a tomar, das prescrições a observar para evitar o pecado dos pecados - o pecado entre todos imperdoável: o anacronismo. Que som produzem hoje, aos nossos ouvidos de homens do século XX, tais livros compostos entre 1530 e 1550 por um Rabelais, um Dolet, uma Margarida de Navarra? O problema não está aí. Ele é de saber como os homens de 1532 puderam interpretar e compreender o Pantagruel e o Cymbalum mundi. Invertamos a frase: ele é, sobretudo, de saber como os mesmos homens certamente não puderam nem interpretá-los nem compreendê-los. Atrás desses textos, pomos instintivamente nossas idéias, nossos sentimentos, o fruto de nossas pesquisas científicas, de nossas experiências políticas e de nossas realizações sociais. Mas aqueles que os folhearam, em sua primeira novidade, sob o alpendre do livreiro, em Lyon, na rue Mercière, em Paris, na rue Saint-Jacques - o que leram eles entre as linhas bem ajustadas? E porque seu modo de encadeamento das idéias confere a esses textos, pelo menos aos nossos olhos, uma espécie de eternidade na certeza, podemos concluir daí que em todas as épocas, todas as atitudes intelectuais são possíveis - são igualmente possíveis? Grande problema de história do espírito humano. Ele vem reforçar o problema de método e conferir-lhe uma singular amplitude. "Como os outros elementos de sua história, as crenças morais da humanidade foram, em cada momento, tudo o que podiam ser. Em conseqüência, as verdades morais atuais, mesmo se se tivesse podido pressenti-las mais cedo, teriam sido desprovidas, então, de todo valor prático - e aquele que as houvesse afirmado não teria tido razão contra seus contemporâneos." Assim Frédéric Rauh, em 1906, levantava, no domínio moral, o grande problema do precursor, do homem que não é justificado porque adivinhou o futuro. E ele acrescentava, falando do que para nós, hoje, é "a verdade moral": o homem não teria podido realizá-la outrora; nem sequer deveria; "não teria podido senão sonhá-la". - Belo testemunho de espírito histórico nesse moralista, observemos de passagem. Do plano da moral, transferir essas fórmulas para o plano das crenças: o primeiro de nossos intuitos presentes. Um intuito de acordo com algumas das tendências profundas de nossa época. Ontem, nosso mestre Lucien Lévy-Bruhl investigava como e por que os primitivos raciocinam de maneira diferente dos civilizados. Mas estes, em parte, permaneceram muito tempo primitivos. Eles não usaram em todas as épocas, indistintamente, os mesmos modos de raciocínio para formar seus sistemas de idéias e de crenças. Verdade um pouco grosseira ao ser formulada assim: mas por que os historiadores, em vez de nuançá-la aplicando-a aos fatos de sua competência, deixam de bom grado aos filósofos o cuidado de serem os únicos a exprimi-la? O que está em jogo, na verdade, seria tão medíocre? Tentando reconstituir o estado de espírito de nossos antepassados em relação às coisas da Religião: "Aqui a Razão, afirmamos nós de bom grado, e ali, a Revelação. É preciso escolher". - Escolher? Mas para o homem real, para o homem vivo: razão, revelação, o que pretende, na verdade, esse debate de abstrações? Renan, constatando, no Avenir de la science [Futuro da ciência] (p. 41), que encontramos com freqüência, entre os mais sinceros crentes, homens "que prestam à Ciência eminentes serviços", daí tirava a conseqüência de que, "mais forte, no fundo, que todos os sistemas religiosos", a natureza humana "sabe descobrir segredos para tirar sua desforra". E acrescentava - ele, que não ignorava o que podem ocultar os meandros de uma consciência ávida de fé: "Kepler, Newton, Descartes e a maior parte dos fundadores do mundo moderno eram crentes". Os fundadores, mas os precursores? Descartes, mas antes dele, Rabelais? A questão é importante. Como não se surpreender com a maneira pela qual nossos contemporâneos obstinam-se, sob o pretexto de justificá-los, em degradar os grandes homens a que relacionam, não sem razão, a gênese do mundo moderno? Só ficam satisfeitos quando fazem deles uns covardes. Os únicos covardes de um século povoado de heróis que pagaram com a própria vida, alegremente, seu apego a verdades aliás contraditórias. Ao exibir essa suposta covardia, ao satisfazer, assim, seu ódio instintivo do espírito e de sua grandeza - alguns experimentam uma alegria que mal dissimulam. Precisam de um Lefèvre detido no declive escorregadio da heresia apenas por sua prudência de velhote timorato. Precisam de um Erasmo que se recusa a ir ao encontro de um homem e das doutrinas contra as quais - nós o sabemos - insurgia-se toda a sua natureza de homem, unicamente - dizem eles - por amor à sua quietude e desejo de evitar penosas perseguições. E com que tom altivo tantos homens, que parecem pouco familiarizados com as audácias do espírito, não reprovam no protegido de Margarida, no amigo de Thomas More, o que se dignam, nos dias de indulgência, a chamar apenas de sua "timidez"? - Na outra extremidade do século, precisam de um Montaigne poltrão, fugindo da peste e dos perigos públicos. No meio, um Rabelais calcado em seu Panúrgio: brincalhão ardiloso, parasita cínico, total incrédulo - mas dissimulando para prestar à Igreja as deferências exigidas. Ou então (esta é a versão nova) um Rabelais fanático, violentamente rebelado não apenas contra a Igreja católica, mas contra a crença cristã como tal: além disso, mascarado, e por medo. Como se o medo fosse, neste mundo, o companheiro natural (e louvável) da inteligência e da razão? Eis então despachados, por justiça sumária, homens no entanto atormentados pelo Mistério, homens que se debatiam do começo ao fim da vida com o Desconhecido e pensavam o universo não, à maneira de seus filhos do século XVII, como um mecanismo, um sistema de impulsos e de deslocamentos sobre um plano conhecido, mas como um organismo vivo, governado por forças secretas, por misteriosas e profundas influências. Substituir essas fantasias de uma história medíocre - muito freqüentemente ditadas por preocupações pessoais a homens perdidos no infinito detalhe - por uma concepção mais verdadeiramente humana (o medo é do homem, porém mais ainda o triunfo sobre o medo) das concepções espirituais de um século heróico: a ambição deste livro. Monografia de um homem, Rabelais? Por maior que fosse esse homem, não a teríamos escrito. Investigação de um método ou, mais precisamente, exame crítico de um complexo de problemas, históricos, psicológicos e metodológicos: isso pareceu valer um esforço de dez anos. E agora, fiz bem em deixar subsistir, nas páginas que se vão seguir, os rastros de meus passos? Eu teria podido deitar abaixo meu primeiro andaime, o rabelaisiano, renunciar à discussão dos textos produzidos por meus antecessores, deixar subsistir somente a segunda parte - ou mesmo a terceira, apenas. Mas não teria ela se tornado completamente arbitrária, vaga e falsa? Este livro, este livro de partes desiguais e que vêm ordenar-se por massas decrescentes: a mais material embaixo, com seu peso crítico; a segunda, já mais leve, no centro; a terceira por cima das duas outras - este livro que, por sua própria estrutura, mostra o que foi a progressão de um espírito - agrada-me que ele ateste, aos olhos do leitor, que não nasceu de uma visão teórica, de uma dessas convicções a priori que tanto mal fazem aos nossos estudos. Eu ficaria bem pesaroso se se visse nele a iluminação de um ensaísta, um brilhante esboço, uma improvisação. Ele foi para mim um companheiro desde o distante dia em que, em Estrasburgo, diante de Henri Pirenne, eu confrontava, pela primeira vez, a eloqüente teoria de Abel Lefranc até aquele dia em que, cedendo às solicitações de Henri Berr, decido-me a publicá-lo tal qual, como um ato de fé nos destinos do espírito livre, como uma afirmação dessa vontade de compreender e de "fazer compreender" pela qual gosto de definir a função da história, a tarefa fecunda do historiador.