Trecho do livro ARMAZÉM LITERÁRIO

Ainda Machado de Assis No seu livro sobre Machado de Assis, Lúcia Miguel Pereira traçou, do Mestre, um retrato psicológico até hoje inexcedido. Logo no primeiro capítulo do volume, estudando as sutis conexões existentes entre o homemde carne e osso que Machado foi em vida, e a falaciosa estátua de bronze que a posteridade dele quis fazer, observa sagazmente a biógrafa: Prestou-se, como ninguém, a ser estereotipado.Teve, para isso, todos os requisitos necessários. Possuiu uma meia dúzia de gestos, hábitos e frases típicas,mantidos por uma certa tendência as e repetir.Parece ter escolhido,ele próprio,os clichês em que seperpetuaria,deformando-se.E ter aceito,de bom grado, essa deformação que lhe resguardaria a intimidade e a verdadeira fisionomia. Com uma docilidade espantosa, ajeitou-se nas fôrmas da sua futura estátua, encolhendo aqui, esticando acolá, aparando excessos, acolchoando vazios. Não é descabido pensar-se que Machado teria olhado, com particular simpatia, os esforços da posteridade para fazer dele o paradigma do puro homem de letras, pairando olimpicamente acima das agitações políticas ou dos conflitos de doutrina, inteiramente votado ao ofício de bem escrever. As contribuições mais recentes da crítica, todavia, especialmente aquelas devidas a Astrogildo Pereira, Brito Broca e, sobretudo, R.Magalhães Júnior e J.Galante de Souza - esses dois incansáveis arqueólogos que vêm exumando da vala comum do periodismo oitocentista tudo quanto o Mestre houve por bem nela deixar enterrado - desmentiram o paradigma e deram inteiro crédito à sagacidade de Lúcia Miguel Pereira. Astrogildo Pereira foi, ao que sei, o primeiro a refutar, num ensaio hoje clássico na bibliografia machadiana-"Machado de Assis: romancista do Segundo Reinado" -,as acusações assacadas contra o autor de Dom Casmurro por críticos apressados que não souberam ler, nas entrelinhas de uma obra aparentemente absenteísta, o testemunho de um espírito profundamente imerso na vida da sua época. Críticos como aquele Pedro do Couto que, nos idos de 1910, pontificava: "Quanto aos fenômenos morais e sociais que em todas as cerebrações atuam, e especialmente nos mais desenvolvidos, Machado de Assis não mostra em nenhum livro deles ter sequer conhecido a existência.Dir-se-ia que longe deles, isento de sua influência, o escritor se achava" . Brito Broca, de cujo volume Machado de Assis e a política e outros estudos foi tirada a citação acima, trouxe novos subsídios à tese de Astrogildo Pereira ao demonstrar o quanto estivera Machado de Assis, particularmente nos primórdios de sua carreira jornalística, ligado às grandes questões políticas da época. Recorda o ensaísta, em especial, um poema das Crisálidas, "Os Arlequins" , que,malgrado a obscuridade de certas alusões, parece ter sido uma sátira visando o histrionismo do Imperador; na terceira estrofe do poema, há,mesmo, uma referência a "régio saltimbanco" , epíteto que faria longa carreira durante a campanha republicana, tendo servido inclusive de título ao famoso, desabusado e medíocre panfleto de Fontoura Xavier. Convém lembrar, de passagem, que, ao publicar "Os Arlequins" ,Machado fê-los acompanhar de uma nota explicativa, na qual afirmava não ter intentado sátira pessoal,mas visado genericamente uma classe - a dos oportunistas e vira-casacas. A importância das pesquisas de R.Magalhães Júnior é hoje sobejamente reconhecida, sendo, pois, escusado insistir no assunto. Detendo-se em aspectos pouco estudados da vida e da obra de Machado de Assis, pôde Magalhães Júnior corrigir certas de- formações ainda em curso, particularmente aquelas relacionadas com o famigerado absenteísmo machadiano. Lembra ele, entre outras coisas, que Machado de Assis, fazendo eco à indignação de todo o país, inflamou-se patrioticamente quando do incidente Christie e, do mesmo modo que Fagundes Varela e outros poetas da época, escreveu também o seu poema de circunstância, um Hino dos Voluntários, que foi publicado em edição especial, com ilustração de Henrique Fleiuss, sendo parte do produto da venda destinada a uma subscrição nacional para a compra de armamentos, a serem usados no caso de um conflito armado entre a Grã-Bretanha e o Brasil. A Guerra do Paraguai está presente, outros - sim, na obra de Machado de Assis, não apenas em artigos de jornal ou em referências ocasionais nas páginas dos seus romances, como especialmente em outro poema de circunstância, "O acordar do Império" , lido em cena aberta, a 5 de maio de 1865, pelo ator Furtado Coelho. J.Galante de Souza, finalmente, a quem devemos uma detalhadíssima Bibliografia de Machado de Assis, publicou uma coletânea de trabalhos esparsos de Machado sob o título de Poesia e Prosa (Civilização Brasileira, São Paulo, 1957).Entre os textos em verso incluídos no volume figuram, além do "Hino patriótico" (o mesmo "Hino dos Voluntários" citado por Magalhães Júnior) e de "A cólera do Império" (ou "O acordar do Império" , como era também conhecido na época), dois outros poemas de circunstância igualmente curiosos:"Daqui, deste âmbito estreito" e "Minha musa" . O primeiro foi lido pela atriz Ismênia dos Santos,a 23 de fevereiro de 1870, num festival em benefício das vítimas da seca alagoana. Tanto pela freqüência de certas metáforas, como pela sua eloqüência cantante, traz-nos à mente, inelutavelmente, a poesia de Castro Alves. Atente-se, por exemplo, para a oposição entre o "âmbito estreito,/ cheio de risos e galas" do festival beneficente, e as regiões mais sombrias onde campeia a miséria humana exacerbada pelo flagelo da seca.Ou para o uso repetido de tríades como "sem pão, sem água, sem luz" , tão semelhante à "sem luz, sem ar, sem razão"com que Castro Alves evocou o estado aviltante dos escravos confinados aos porões asfixiantes do Navio Negreiro. Ou, finalmente,para certas antíteses de cunho eminentemente castroalvino: "filhos da mesma bandeira,/ remidos na mesma cruz; a terra lhes foi avara,/ a terra a tantos fecunda" . Castroalvina é esta estrofe candente: Trêmulos braços alçando Entre os da morte e os da vida, Solta a voz esmorecida, Sem pão, sem água, sem luz, Um povo de irmãos, um povo Desta terra brasileira, Filhos da mesma bandeira, Remidos na mesma cruz. A estrofe seguinte foi buscar elementos ao rico arsenal de interpelações retóricas com que o autor de "Vozes d'África" recheou os seus versos: A terra lhes foi avara, A terra a tantos fecunda: Veio a miséria profunda, A fome, o verme voraz. A fome. Sabeis acaso O que é a fome, esse abutre Que em nossas carnes se nutre E a fria morte nos traz? O segundo poema apareceuem1816, nas páginas da Marmota Fluminense, o jornal de Paula Brito que deu guarida às primeiras produções do jovem aprendiz de tipógrafo da Imprensa Nacional, então se iniciando na carreira das letras.O tema de "Minha Musa" é um dos lugares-comuns da poesia política de todos os tempos: o poeta, enumerando os ideais que lhe animam o estro, dá ênfase especial à inspiração libertária. Nos versos de Machado de Assis, esses ideais incluem, a par do amor a si mesmo ("A Musa, que inspira-me os versos nascidos/ De mágoas que sinto no peito a pungir"), do amor aDeus ("A Musa, que inspira-me os cantos de prece/ Que nascem-me d'alma, que envio ao Senhor") e do amor à pátria ("A Musa, que o ramo das glórias enlaça,/Da terra gigante - meu berço infantil"), o amor à liberdade e o ódio às tiranias: A Musa, que inspira meus cantos é livre, Detesta os preceitos da vil opressão. O ardor, a coragem do herói lá do Tibre, Na lira engrandece, dizendo: - Catão! Eis, pois, mais uma vez comprometida a decantada abstenção de Machado de Assis. Poeta político foi ele nos primórdios da sua carreira, semelhantemente a tantos outros jovens escritores românticos que, inflamados pela leitura de Michelet, Peletan ou Victor Hugo, se inculcavam por arautos de vindouras utopias. É bem verdade que sua contribuição nesse terreno foi de pouca monta e que toda a sua obra posterior, verdadeiro tour de force de sutileza psicológica e finura estilística, muito pouco se coaduna como generoso desleixo de suas primeiras produções. Foi certamente tendo em conta a mediocridade desses tentames juvenis que Machado os desprezou quando da organização, em 1901, das suas Poesias completas. Ademais, a época não estava para versos políticos: a desilusão republicana e a estesia parnasiana haviam condenado a musa da revolução a um prolongado ostracismo. Muitos poetas parnasianos que, emtempos idos, sacrificavam no altar da arte interessada, renegavam agora suas demasias juvenis.Basta lembrar, à guisa de exemplo,Raimundo Correia,um dos arautos da Idéia Nova que, ao preparar para um editor lisboeta uma seleção dos seus melhores versos, não incluiu entre eles nenhum dos poemas participantes das Sinfonias. No caso de Machado de Assis, havia ainda o agravante daquela sua tendência natural tão bem caracterizada por Lúcia Miguel Pereira-a tendência à auto-estatuária.Dócil às exigências da posteridade, que o queria olímpico, desapaixonado e sereno, o antigo poeta libertário assumiria a grave postura de Cavaleiro da Ordem da Rosa e de Presidente da Academia Brasileira de Letras,para gáudio dos filisteus de ontem como de hoje.Mas os que, conhecedores dos seus pecadilhos de mocidade, atentarem para os lábios da estátua, descobrirão neles um leve sorriso de mofa, de resto perfeitamente machadiano...