Livro I 1. Não tenho nenhum motivo para não atender a porta, então a atendo. Não tenho nenhuma janelinha redonda minúscula para identificar os visitantes, portanto abro a porta e me deparo com uma afro-americana alta e robusta, alguns anos mais velha que eu, usando um agasalho de náilon vermelho. Ela fala comigo em voz bem alta. "O senhor tem telefone?" Parece conhecida. Tenho quase certeza de tê-la visto no estacionamento uma hora antes, quando voltei da loja de conveniência. Vi-a em pé junto à escada, e sorri para ela. Respondo-lhe que tenho telefone, sim. "Meu carro enguiçou ali na rua", diz. Atrás dela já é quase noite. Passei a maior parte da tarde estudando. "O senhor me deixaria usar seu telefone para chamar a polícia?", pergunta ela. Não sei por que ela quer chamar a polícia por causa de um carro enguiçado, mas deixo-a entrar. Ela entra. Começo a fechar a porta, mas ela a segura. "Vou demorar só um segundo", diz. Não faz sentido deixar a porta aberta, mas, já que ela quer, deixo. Este é o país dela, não ainda o meu. "Onde fica o telefone?", pergunta ela. Respondo-lhe que o telefone fica no meu quarto. Antes de eu terminar a frase, ela passa correndo por mim e avança pelo corredor, formando um borrão indistinto de náilon. A porta do meu quarto se fecha, e ouço o trinco sendo passado. Ela se trancou lá dentro. Começo a ir atrás dela quando ouço uma voz às minhas costas. "Fique aqui, África." Viro-me e vejo um homem, afro-americano, usando um imenso casaco de beisebol azul claro e uma calça jeans. Não é possível ver o rosto debaixo do boné de beisebol, mas ele está com a mão em alguma coisa junto à cintura, como se precisasse segurar a calça no lugar. "O senhor está com aquela mulher?", pergunto a ele. Ainda não estou entendendo nada, e fico com raiva. "Sente aí, África", diz ele, meneando a cabeça para o meu sofá. Continuo em pé. "O que ela está fazendo no meu quarto?" "Sente a bunda aí e pronto", vocifera ele, dessa vez com crueldade. Eu me sento e ele me mostra o cabo do revólver. Estava segurando-o desde que entrou, e eu já deveria saber. Mas eu não sei nada; nunca sei as coisas que deveria saber. O que sei agora é que estou sendo assaltado, e que minha vontade é estar em outro lugar. Tenho consciência de que é uma coisa estranha, mas o que penso nesse momento é que gostaria de estar novamente em Kakuma. Em Kakuma não chovia, os ventos sopravam nove meses por ano, e oitenta mil refugiados de guerra do Sudão e de outros lugares viviam com uma refeição por dia. Porém, nesse momento, com a mulher no meu quarto e o homem me vigiando com sua arma, minha vontade é estar em Kakuma, onde eu morava em um casebre feito de plástico e sacos de areia e só tinha uma calça para vestir. Acho que não havia maldade desse tipo no campo de refugiados de Kakuma, e quero voltar para lá. Ou até mesmo para Pinyudo, o campo etíope onde morei antes de Kakuma; não havia nada ali, apenas uma ou duas refeições por dia, mas existiam pequenos prazeres; eu era menino nessa época, e conseguia esquecer que era um refugiado subnutrido a mil e quinhentos quilômetros de casa. Em todo caso, se for esta a punição para a arrogância de querer sair da África, de acalentar sonhos de universidade e solvência financeira nos Estados Unidos, agora aprendi minha lição e peço desculpas. Voltarei com a cabeça baixa. Por que eu sorri para aquela mulher? Sorrio por reflexo, e é um hábito que preciso perder. É um convite à retribuição. Já fui humilhado tantas vezes desde que cheguei aqui que estou começando a pensar que alguém está tentando desesperadamente me mandar um recado, e o recado é: "Vá embora daqui". Assim que me decido por essa atitude de arrependimento e recuo, ela é substituída por outra, de protesto. Essa nova postura me faz me levantar e falar com o homem de casaco azul-claro. "Quero que você saia daqui", digo. O Homem de Azul se enfurece na mesma hora. Eu perturbei o equilíbrio da situação e pus um obstáculo, a minha voz, na frente da sua tarefa. "Está me dizendo o que fazer, filho-da-puta?" Encaro fixamente seus olhos miúdos. "Me responda, África, está me dizendo o que fazer, filho-da-puta?" A mulher ouve nossas vozes e chama de dentro do quarto: "Dá para dar um jeito nele?". Ela está irritada com o parceiro, e ele comigo. O Homem de Azul inclina a cabeça para mim e arqueia as sobrancelhas. Dá um passo na minha direção, e gesticula novamente para a arma na cintura. Parece prestes a usá-la, mas de repente seus ombros despencam e ele abaixa a cabeça. Fita os próprios sapatos e respira devagar, recuperando a calma. Quando torna a erguer os olhos, já voltou ao normal. "Você é da África, não é?" Aquiesço. "Certo, então. Isso quer dizer que nós somos irmãos." Reluto em concordar. "E, já que somos irmãos e tal, eu vou lhe ensinar uma coisa. Você não sabe que nunca deve abrir a porta para gente desconhecida?" A pergunta me faz estremecer. O simples assalto teria sido, de certa forma, aceitável. Eu já presenciei assaltos, já fui assaltado, em escalas muito menores que essa. Antes de chegar aos Estados Unidos, o bem mais valioso que eu possuía era o colchão onde dormia, então os roubos eram bem menores: uma câmera descartável, um par de sandálias, um pacote de sulfite. Tudo isso era valioso, sim, mas agora sou proprietário de uma televisão, um videocassete, um forno de microondas, um despertador e muitas outras coisas, todas fornecidas pela Igreja Metodista Unificada de Peachtree aqui em Atlanta. Alguns dos objetos eram de segunda mão, a maioria era nova, e todos vinham de doações anônimas. Olhar para eles, usá-los diariamente, provocava em mim um arrepio- uma demonstração física estranha, mas genuína, de gratidão. E agora suponho que todos esses presentes serão tirados de mim nos próximos poucos minutos. Em pé diante do Homem de Azul, minha memória procura a última vez em que me senti traído dessa forma, a última vez em que me senti diante de uma maldade tão gratuita. Com uma das mãos ainda a segurar o cabo da arma, ele põe a outra no meu peito. "Por que você não senta a bunda aí e vê como se faz?" Dou dois passos para trás e me sento no sofá, outro presente da igreja. Uma branca de cara redonda vestindo uma camisa de tie-dye o trouxe no dia em que Achor Achor e eu nos mudamos. Desculpou-se pelo fato de o sofá não ter chegado antes de nós. As pessoas da igreja se desculpavam muito. Ergo os olhos para o Homem de Azul e percebo quem ele me lembra. A mulher-soldado etíope que atirou em dois dos meus companheiros e quase me matou. Tinha a mesma luz ensandecida nos olhos, e no início quis se passar por nossa salvadora. Estávamos fugindo da Etiópia, perseguidos por centenas de soldados etíopes que atiravam em nós, com o rio Gilo repleto do nosso sangue, e ela surgiu do meio do mato. Venham aqui, crianças! Eu sou sua mãe! Venham aqui! Era apenas um rosto no mato cinzento, com as mãos estendidas, e eu hesitei. Dois dos meninos com os quais eu estava correndo, meninos que havia encontrado na margem do rio ensangüentado, os dois foram até ela. E, quando chegaram suficientemente perto, ela ergueu um fuzil automático e crivou de balas o peito e a barriga dos meninos. Eles caíram na minha frente, e eu me virei e saí correndo. Volte aqui!, continuou ela. Volte para a sua mãe! Nesse dia, eu tinha corrido pelo mato até encontrar Achor Achor, e nós dois encontramos o Bebê Calminho e o salvamos, e, durante algum tempo, nos consideramos médicos. Isso já faz muito tempo. Eu tinha dez anos, onze, talvez. É impossível saber. O homem na minha frente, o Homem de Azul, jamais tomaria conhecimento disso. Não ficaria interessado. Pensar nesse dia, quando fomos expulsos da Etiópia de volta para o Sudão, e milhares morreram no rio, me dá forças para resistir a essa pessoa dentro do meu apartamento, e novamente me ponho de pé. O homem me olha como um pai prestes a fazer algo que infelizmente o filho o está obrigando a fazer. Está tão perto de mim que posso sentir o cheiro de alguma coisa química vindo dele, um cheiro parecido com alvejante. "Você está... você está...?" A boca dele se contrai e ele faz uma pausa. Tira a arma da cintura e a ergue com um movimento da mão para cima e para trás. Vejo um borrão preto, e meus dentes são esmagados uns contra os outros, ao mesmo tempo em que sinto o teto desabar em cima de mim. Na minha vida, já apanhei de muitos jeitos diferentes, mas nunca com a coronha de uma arma. Tenho a sorte de ter visto mais sofrimento do que eu próprio suportei, mas mesmo assim já passei fome, e já apanhei com gravetos, varas, vassouras, pedras e lanças. Percorri oito quilômetros na caçamba de um caminhão repleta de cadáveres. Vi inúmeros meninos novos morrerem no deserto, alguns como se estivessem se sentando para dormir, outros depois de dias de loucura. Vi três meninos serem levados por leões, devorados por acaso. Vi-os serem tirados do chão, levados embora entre as presas dos animais e devorados no meio do mato, perto o suficiente para eu escutar os estalos úmidos da carne sendo dilacerada. Vi um amigo próximo morrer ao meu lado em um caminhão capotado, com os olhos abertos para mim, a vida a se esvair por um buraco que eu não conseguia ver. No entanto, neste momento, jogado em cima do sofá com a mão molhada de sangue, me pego sentindo saudade da África inteira. Sinto saudade do Sudão, do deserto cinzento cheio de uivos do noroeste do Quênia. Sinto saudade do vazio amarelo da Etiópia. Minha visão do meu agressor agora se limita à sua cintura, às suas mãos. Ele guardou a arma em algum lugar, e suas mãos seguram minha camisa e meu pescoço, e ele está me jogando do sofá para o carpete. Minha nuca se choca na quina da mesa ao cair, e dois copos e um radiorrelógio caem comigo. Uma vez sobre o carpete, com a bochecha repousando em meu próprio sangue empoçado, experimento um instante de conforto, pensando que muito provavelmente ele já terminou. Já estou tão cansado. Sinto que poderia fechar os olhos e acabar com tudo isso. "Agora cale a porra da sua boca", diz ele. As palavras não soam convincentes, e isso me consola. Percebo que ele não é um homem zangado. Não pretende me matar; talvez tenha sido manipulado por aquela mulher, que agora abre as gavetas e os armários do meu quarto. Ela parece estar no controle da situação. Está concentrada no que quer que tenha encontrado no meu quarto, e a tarefa de seu companheiro é me neutralizar. Parece simples, e ele se mostra pouco inclinado a me agredir de novo. Então descanso. Fecho os olhos e descanso. Estou cansado deste país. Sou grato a ele, sim, e passei a dar valor a muitos de seus aspectos durante os cinco anos que fiquei aqui, mas estou cansado das promessas. Vim para cá, quatro mil de nós viemos para cá, imaginando e esperando tranqüilidade. Paz, universidade e segurança. Esperávamos um país sem guerra e, suponho, um país sem miséria. Estávamos ansiosos e impacientes. Queríamos tudo imediatamente- lares, famílias, universidade, a possibilidade de mandar dinheiro para casa, diplomas de ensino superior e, por fim, algum prestígio. No entanto, para a maioria de nós, a lentidão da transição - depois de cinco anos, ainda não tenho os créditos necessários para me candidatar a uma formação universitária de quatro anos - provocou o caos. Esperamos dez anos em Kakuma, e acho que não queríamos começar tudo de novo aqui. Queríamos o passo seguinte, e rápido. Mas isso não acontecera, não na maioria dos casos e, no meio-tempo, havíamos encontrado jeitos de nos ocupar. Eu tive vários empregos subalternos, e atualmente trabalho na recepção de uma academia de ginástica, no turno mais cedo possível, recebendo os associados e explicando os benefícios da academia a futuros membros. Não é nada glamoroso, mas representa um nível de estabilidade desconhecido para alguns. Um número grande demais deles perdeu as forças, um número grande demais sente que fracassou. As pressões exercidas sobre nós, as promessas que não conseguimos cumprir para nós mesmos - essas coisas estão transformando muitos de nós em monstros. E a única pessoa que eu achava que poderia me ajudar a transcender a decepção e a banalidade disso tudo, uma sudanesa exemplar chamada Tabitha Duany Aker, se foi. Eles agora estão na cozinha. Agora estão no quarto de Achor Achor. Deitado ali, começo a calcular o que podem me levar. Percebo com alguma satisfação que meu computador está no carro, e será poupado. Mas o laptop novo de Achor Achor será roubado. E por culpa minha. Achor Achor é um dos líderes dos jovens refugiados aqui em Atlanta, e tenho medo de que tudo de que ele precisa será perdido quando seu computador for levado. Registros de todas as reuniões, dados contábeis, milhares de e-mails. Não posso permitir que tanta coisa seja roubada. Achor Achor está comigo desde a Etiópia, e tudo o que eu lhe trago é má sorte. Na Etiópia, encarei um leão nos olhos. Devia ter uns dez anos, mandaram-me juntar lenha na floresta, e o animal saiu lentamente de trás de uma árvore. Fiquei parado por alguns instantes, um tempo enorme, o suficiente para decorar aquela cara de olhos mortos, antes de sair correndo. Ele rugiu para mim, mas não me perseguiu; gosto de pensar que me considerou um inimigo por demais formidável. Então encarei esse leão, encarei dúzias de vezes as armas dos milicianos árabes montados, com suas túnicas brancas reluzindo ao sol. Portanto, posso fazer isso, posso impedir esse pequeno roubo. Torno a me ajoelhar. "Fique abaixado aí, seu filho-da-puta!" E meu rosto volta a bater no chão. Então começam os chutes. Ele me chuta na barriga e depois no ombro. O que mais dói é quando meus próprios ossos batem uns nos outros. "Seu nigeriano filho de uma puta!" Agora ele parece estar se divertindo, e isso me deixa preocupado. Quando há prazer, muitas vezes há descontrole, e erros são cometidos. Sete chutes nas costelas, um no quadril, e ele descansa. Respiro fundo e avalio o estrago. Não é muito. Encolho-me no canto do sofá, agora decidido a ficar imóvel. Nunca fui um lutador, reconheço finalmente para mim mesmo. Sobrevivi a muitas opressões, mas nunca lutei com um homem que estivesse na minha frente. "Seu nigeriano de merda! Seu imbecil!" Ele está ofegante, com as mãos sobre os joelhos dobrados. "É por isso que vocês estão na Idade da Pedra, seus filhos-da-puta!" Ele me dá outro chute, mais fraco que os outros, mas esse me atinge em cheio na têmpora e meu olho esquerdo se enche de um clarão de luz branca. Já me chamaram de nigeriano nos Estados Unidos - deve ser o mais conhecido dos países africanos -, mas nunca fui chutado. Porém, também já vi isso acontecer. Acho que há pouca coisa em matéria de violência que eu não tenha visto no Sudão, no Quênia. Passei anos em um campo de refugiados na Etiópia, e ali vi dois meninos, ambos com uns doze anos de idade, brigarem tanto por causa de comida que um chutou o outro até matá-lo. É claro que ele não pretendia matar o adversário, mas éramos jovens e estávamos muito fracos. Ninguém consegue brigar depois de passar semanas sem comer direito. O corpo do menino morto estava despreparado para qualquer tipo de trauma, a pele esticada sobre as costelas frágeis que não conseguiam mais cumprir a tarefa de proteger o coração. Morreu antes mesmo de cair no chão. Foi logo antes do almoço e, depois que o menino foi levado embora para ser enterrado no chão de cascalho, serviram-nos ensopado de feijão e milho. Agora decidi não dizer mais nada, simplesmente esperar o Homem de Azul e sua amiga irem embora. Eles não devem ficar muito tempo; com certeza logo já terão pego tudo o que querem. Posso ver a pilha que estão fazendo sobre a mesa da cozinha, as coisas que pretendem levar embora. A televisão está lá, o laptop de Achor Achor, o videocassete, os telefones sem fio, meu celular, o microondas. O céu está escurecendo, meus convidados já estão no apartamento há uns vinte minutos e Achor Achor só vai voltar daqui a muitas horas, se voltar. Seu trabalho se parece com um que eu já tive - em um showroom de móveis, na sala dos fundos, organizando a expedição das amostras para decoradores. Mesmo quando não está no trabalho, ele quase nunca pára em casa. Depois de muitos anos sem companhia feminina, Achor Achor arrumou uma namorada, uma afro-americana chamada Michelle. Ela é uma graça. Conheceram-se na universidade comunitária, em uma aula de patchwork em que Achor Achor se matriculou por acidente. Ele entrou, sentou-se ao lado de Michelle e nunca mais saiu. Ela tem cheiro de perfume cítrico, um cítrico floral, e eu vejo Achor Achor cada vez menos. Houve um tempo em que eu pensava em Tabitha dessa forma. Imaginei nós dois planejando um casamento e criando muitos filhos que falariam inglês como americanos, mas Tabitha morava em Seattle, e esses planos ainda estavam muito distantes. Talvez agora eu os esteja romantizando. Isso aconteceu em Kakuma também; perdi alguém muito próximo, e depois fiquei achando que poderia tê-lo salvo caso houvesse sido um amigo melhor. Mas todos desaparecem, não importa quem os ame. Então começa o processo de levar embora nossos pertences. O Homem de Azul fez um berço com os braços, e sua cúmplice começa a empilhar aí nossas coisas - primeiro o microondas, depois o laptop, depois o aparelho de som. Quando a pilha chega ao queixo do homem, a mulher caminha até a porta da frente e abre. "Caralho!", exclama ela, fechando a porta depressa. Diz para o Homem de Azul que tem um carro da polícia do lado de fora, parado em nosso estacionamento. A viatura, na verdade, está atravancando o carro deles. "Caralho caralho caralho!", vocifera ela. O pânico continua por algum tempo, e dali a pouco os dois assumem posições de um lado e de outro das cortinas da janela que dão para o pátio. Entendo, pela conversa, que o policial está falando com um latino, mas que sua linguagem corporal parece indicar que o assunto não é urgente. A mulher e o Homem de Azul demonstram cada vez mais segurança e alívio pelo fato de o policial não estar ali por causa deles. Mas então por que ele não vai embora?, perguntam-se. "Por que esse filho-da-puta não vai fazer seu trabalho?", pergunta ela. Eles se acomodam para esperar. O sangramento na minha testa parece ter diminuído. Com a língua, exploro os estragos feitos à minha boca. Um dos incisivos inferiores está lascado e um molar foi esmagado; a sensação é de algo pontiagudo, uma cordilheira escarpada. Mas não posso me preocupar com questões dentárias. Nós, sudaneses, não somos famosos pela perfeição dos dentes. Levanto a cabeça e descubro que a mulher e o Homem de Azul estão com a minha mochila, que não contém nada a não ser minhas lições da universidade comunitária onde estudo, o Georgia Perimeter College. Imaginar o tempo que vou levar para reproduzir esses cadernos, tão perto das provas de meio de semestre, quase faz com que eu me levante de novo. Encaro meus visitantes com o máximo de ódio de que sou capaz, o máximo que meu deus permite. Sou um tonto. Por que abri a porta? Tenho uma amiga afro-americana aqui em Atlanta, Mary, só uma amiga, e ela vai rir disso. Uma semana atrás, ela estava nessa mesma sala, sentada no meu sofá, e estávamos assistindo a O exorcista com Achor Achor. Havia muito tempo que ele e eu queríamos ver o filme. O conceito do mal nos interessa, reconheço, e a idéia de um exorcismo nos deixava intrigados. Embora sentíssemos que nossa fé era forte e tivéssemos recebido uma educação inteiramente católica, nunca tínhamos ouvido falar em um exorcismo praticado por um padre católico. Então assistimos ao filme, e ele nos deixou apavorados. Achor Achor não conseguiu assistir mais de vinte minutos. Retirando-se para o quarto, fechou a porta, ligou o som e começou a fazer a lição de álgebra. Em uma das cenas do filme, há uma batida na porta que funciona como um mau presságio, e uma pergunta me ocorreu. Pausei o filme e Mary suspirou, paciente; está acostumada a me ver parar, quando estou andando ou dirigindo, para fazer alguma pergunta - Por que as pessoas pedem dinheiro nos canteiros das estradas? Será que todas as salas daqueles prédios de escritórios estão ocupadas?- e, naquele momento, perguntei a ela quem, nos Estados Unidos, vai atender quando alguém bate à porta. "Como assim?", perguntou ela. "O homem ou a mulher?", indaguei. Ela fez um muxoxo. "O homem", respondeu. "O homem. O homem é o protetor, certo?", disse ela. "É claro que o homem atende a porta. Por quê?" "No Sudão", falei, "não pode ser o homem. É sempre a mulher que atende a porta pois, quando alguém bate, é porque veio matar o homem." Ah, encontrei outro dente lascado. Meus amigos ainda estão perto da janela, afastando a cortina de quando em quando, vendo que o policial ainda está lá fora, e falando palavrões durante alguns minutos antes de prosseguir sua vigília de ombros curvados. Já se passou uma hora, e estou curioso para saber o que o policial está fazendo no estacionamento. Começo a acalentar esperanças de que o policial na verdade sabe sobre o assalto e, para evitar um impasse, está simplesmente esperando meus amigos saírem. Mas, nesse caso, por que alardear sua presença? Talvez o policial esteja no condomínio para investigar os traficantes do apartamento C4. Mas os caras do C4 são brancos e, até onde consigover, o homem com quem o policial está falando é Edgardo, que mora no C13, oito portas depois da minha. Edgardo é mecânico e meu amigo; já me fez economizar, segundo seus cálculos, dois mil e duzentos dólares em consertos de carro nos dois anos desde que somos vizinhos. Em troca, eu lhe dei caronas até a igreja, o trabalho e o shopping North DeKalb. Ele tem seu próprio carro, mas prefere não dirigir. Faz pelo menos seis meses que não vejo pneus nos eixos do automóvel. Ele adora consertar o próprio carro, e não se importa de mexer no meu, um Corolla 2001. Quando está fazendo isso, Edgardo insiste para que eu o entretenha. "Conte-me alguma história", pede ele, porque não gosta da música que tocam no rádio. "Em todos os outros lugares do país eles tocam música mexicana, mas não aqui em Atlanta. O que estou fazendo aqui? Esta não é uma cidade para quem gosta de música. Conte-me uma história, Valentino. Converse comigo, converse comigo. Conte umas histórias." Na primeira vez em que ele pediu, pus-me a contar minha própria história, que começou quando os rebeldes, homens que acabariam por ingressar no Exército de Libertação do Povo Sudanês, o spla, saquearam pela primeira vez a loja do meu pai em Marial Bai. Eu tinha seis anos, e a presença de rebeldes na nossa aldeia parecia aumentar a cada mês. Eles eram tolerados pela maioria das pessoas e reprimidos por outras. Meu pai era um homem rico para os padrões da região, dono de um armazém na cidade e de outra loja a alguns dias de distância a pé. Ele próprio havia sido rebelde anos antes, mas agora era um comerciante e não queria problemas. Não queria revolução, não tinha nada contra os islamistas de Cartum. Eles não o incomodavam, dizia, estavam a meio mundo de distância. Tudo o que ele queria era vender cereais, milho, açúcar, panelas, tecidos, balas. Certo dia eu estava na loja, brincando no chão. Uma confusão começou acima de mim. Três homens, dois deles carregando fuzis, estavam pedindo para levar o que quisessem. Diziam que era para o bem da rebelião, e que eles iriam criar um Novo Sudão. "Não, não", disse Edgardo. "Sem brigas. Não quero saber das brigas. Eu leio três jornais por dia." Ele apontou para os jornais espalhados debaixo do carro, agora marrons de graxa. "Isso eu já tenho bastante. Sobre sua guerra eu já sei. Conte-me alguma outra história. Diga como arranjou esse nome, Valentino. É um nome estranho para um cara da África, não acha?" Então contei a história do meu batizado. Foi na minha cidade natal. Eu tinha mais ou menos seis anos. O batizado foi idéia do meu tio Jok; meus pais, opostos a idéias cristãs, não compareceram. Eles acreditavam nas tradições religiosas do nosso clã, e os experimentos da aldeia com a cristandade se limitavam aos jovens, como Jok, e àqueles que, como eu, conseguiam ser persuadidos. A conversão era um sacrifício para qualquer homem, uma vez que o padre Dominic Matong, um sudanês ordenado por missionários italianos, proibia a poligamia. Meu pai, que tinha várias mulheres, rejeitava a nova religião sob esse pretexto, e também porque, para ele, os cristãos pareciam preocupados com o idioma escrito. Nem meu pai nem minha mãe sabiam ler; poucas pessoas da idade deles sabiam. - Pode ir para a sua Igreja de Livros - dizia ele. - Quando recomeçar a pensar direito, vai voltar. Eu vestia uma túnica branca e estava ladeado por Jok e sua mulher, Adeng, quando o padre Matong fez suas perguntas. Ele havia passado dois dias caminhando desde Aweil para me batizar junto com três outros meninos, que estavam logo atrás de mim. Eu estava mais nervoso do que jamais estivera na vida. Os outros meninos que eu conhecia diziam que aquilo não era nada em comparação a apanhar do pai, mas eu não conhecia essa situação; meu pai nunca tinha levantado a mão para me bater. De frente para Jok e Adeng, o padre segurou a Bíblia com uma das mãos e ergueu a outra no ar, espalmada. - Vocês oferecem seu filho com todo o seu coração e sua fé para ser batizado e para se tornar um membro fiel da família de Deus? - Sim, oferecemos! - disseram eles. Sobressaltei-me quando eles disseram isso. Tinham falado bem mais alto do que eu esperava. - Ao fazer isso, vocês rejeitam Satã com todo o seu poder, sua mentira e sua falta de fé? - Sim, rejeitamos! - Vocês acreditam em Jesus, filho de Deus, nascido da Virgem Maria, que sofreu e foi crucificado, e que no terceiro dia retornou dos mortos para nos redimir de nossos pecados? - Sim, acreditamos! Então uma água fria e limpa foi despejada na minha cabeça. O padre Matong a trouxera consigo na caminhada de dois dias desde Aweil. Com o batismo veio meu nome cristão, Valentino, escolhido pelo padre Matong. Muitos meninos eram chamados por seus nomes cristãos, mas, no meu caso, esse nome era usado raramente, já que ninguém, incluindo eu mesmo, conseguia pronunciá-lo. Dizíamos Valdino, Baldero, Benedeeno. Somente quando fui parar em um campo de refugiados da Etiópia é que o nome foi usado por alguém que me conhecia. Foi nessa ocasião que, de forma improvável, depois de anos de guerra, tornei a ver o padre Matong. Foi quando ele me lembrou meu nome cristão, falou-me sobre sua origem e demonstrou em voz alta como pronunciá-lo. Edgardo gostava muito dessa história. Até então, não sabia que eu era católico como ele. Combinamos de ir à missa juntos algum dia, mas ainda não fomos.