Parte 1 A MENSAGEM Meu coração vacila como uma folhinha. Os planetas rodopiam em meus sonhos. As estrelas assediam minha janela. Giro em meu sono. Minha cama é um planeta quente. Marvin Mercer, Escola Pública 153, quinto ano, Harlem, Nova York, NY (1981) 1. NÚMEROS TRANSCENDENTAIS Pequena mosca, Com minha mão Bruta, cortei Teu jogo vão. Não serei, mosca, Um igual teu? Ou não és tu Homem, como eu? Pois amo a dança, Canções, bebida, Até que a mão cega Me corta a vida. William Blake, Songs of experience, "The fly" [A mosca], estrofes 1-3 (1795) A julgar pelos padrões humanos, aquilo não poderia, de modo algum, ser artificial: tinha as dimensões de um mundo. No entanto, possuía forma tão estranha e complicada, tinha nitidamente finalidade tão complexa, que só poderia ser a expressão de uma idéia. Deslizando em órbita polar em torno da enorme estrela branco-azulada, assemelhava-se a um imenso e imperfeito poliedro no qual estivessem incrustadas milhões de cracas em forma de prato. Cada um dos pratos apontava para determinada parte do céu. Todas as constelações estavam sendo acompanhadas. O mundo poliédrico vinha desempenhando sua função enigmática havia eras e eras. Era pacientíssimo. Podia esperar eternamente. Quando a tiraram para fora, ela não chorou nem um pouco. Sua testa, pequena, estava franzida, e logo seus olhos se arregalaram. Olhou para as luzes brilhantes, para as figuras vestidas de branco e de verde, para a mulher deitada na mesa, abaixo dela. Sons de certa forma familiares pareceram envolvê-la. Em seu rosto havia uma expressão insólita para um recém-nascido - perplexidade, talvez. Aos dois anos de idade, ela erguia as mãos sobre a cabeça e pedia, muito doce: "Papai, subir". Os amigos do pai manifestavam surpresa. O bebê era uma criatura educada. "Não se trata de educação", explicava ele. "Ela chorava quando queria que a pegássemos. Por isso, um dia eu lhe disse: 'Ellie, não precisa chorar. Diga apenas: Papai, subir'. As crianças são sabidas. Não é, Prinça?" Assim, agora ela estava no alto, a uma altitude estonteante, encarapitada nos ombros do pai e se agarrando a seus cabelos já um tanto ralos. A vida era melhor ali em cima, muito mais segura do que quando ela rastejava por uma floresta de pernas. Lá embaixo ela podia ser pisada, podia perder-se. Agarrou-se ao pai com mais força. Deixando os macacos, viraram uma esquina e deram com um imenso bicho de pernas compridas, pintalgado e de pescoço comprido, com chifrinhos na cabeça. "O pescoço é tão comprido que a voz não consegue sair", disse o pai. Ela sentiu pena da infeliz criatura, condenada ao silêncio. Entretanto, sentiu-se também feliz pela existência do bicho, exultante com o fato de existirem tais prodígios. "Vamos, Ellie", insistiu a mãe, com suavidade. Havia uma cadência melodiosa na voz tão conhecida. "Leia aquilo." A tia não havia acreditado que Ellie, aos três anos, já soubesse ler. As historinhas, afirmava ela, tinham sido decoradas. Estavam agora passeando pelo centro da cidade, num dia fresco de março, e haviam parado diante de uma vitrine. Lá dentro, uma pedra, vermelha como vinho borgonha, cintilava ao sol. "Jo-a-lhe-ri-a", leu Ellie devagar, pronunciando bem as sílabas. Tomada de culpa, ela entrou no quarto de hóspedes. O velho rádio Motorola estava na prateleira, onde ela se lembrava de tê-lo visto. Era muito grande e pesado, e, apertando-o ao peito, quase o deixou cair. Na parte de trás estavam escritas as palavras "Perigo. Não remova a tampa". Mas ela sabia que, se o rádio não estivesse ligado à rede de energia, não haveria perigo. Pondo a língua entre os lábios, ela retirou os parafusos e expôs as entranhas do aparelho. Tal como suspeitava, não havia minúsculas orquestras e locutores em miniatura a levarem suas pequeninas vidas na expectativa do momento em que alguém ligasse o rádio. Em vez disso, havia lá dentro belos tubos de vidro, um pouco parecidos com lâmpadas. Alguns se assemelhavam às igrejas de Moscou, que ela vira num livro de figuras. Os dentes de suas bases ajustavam-se perfeitamente a receptáculos em que se encaixavam. Com a tampa traseira removida e o botão ligado, ela meteu o plugue numa tomada da parede próxima. Se não tocasse no aparelho, se nem chegasse perto dele, como lhe poderia fazer mal? Passados alguns momentos, as lampadazinhas começaram a brilhar, mas não houve nenhum som. O rádio estava estragado e tinha sido aposentado alguns anos antes, trocado por um modelo mais moderno. Uma das lampadazinhas não estava acesa. Ela tirou o plugue da tomada e arrancou a lâmpada teimosa de seu receptáculo. Havia dentro do vidro um quadrado metálico, ligado a fios pequeníssimos. A eletricidade corre pelos fios, pensou ela vagamente. Primeiro, entretanto, precisava entrar na lâmpada. Um dos dentes parecia torto, e com um pouco de esforço ela conseguiu endireitá-lo. Recolocando a lampadazinha no lugar e tornando a ligar o aparelho à tomada, ela ficou feliz ao vê-la começar a brilhar, e um mar de estática se agitou em torno dela. Olhando para a porta fechada com um sobressalto, ela abaixou o volume. Virou o botão em que estava escrito "sintonia" e encontrou uma voz falando de modo muito agitado; até onde ela conseguia compreender, falava de uma máquina russa que estava no céu, girando interminavelmente em torno da Terra. Interminavelmente, pensou ela. Tornou a girar o botão, procurando outras estações. Depois de algum tempo, temendo ser descoberta, desligou o aparelho, aparafusou a tampa traseira sem apertar muito e, com maior dificuldade ainda, levantou o rádio e o repôs na prateleira. Ao sair do quarto de hóspedes, um pouco sem fôlego, encontrou a mãe e se sobressaltou novamente. "Tudo bem, Ellie?" "Tudo bem, mamãe." Simulava naturalidade, mas seu coração estava descompassado e suas mãos suavam. Instalou-se num de seus lugares prediletos no quintalzinho, com a cabeça apoiada nos joelhos, e se pôs a pensar no interior do rádio. Seriam todas aquelas lâmpadas realmente necessárias? Que aconteceria se a gente retirasse as lâmpadas, uma a uma? Certa vez ouvira o pai chamá-las de válvulas. Que acontecia dentro de uma válvula? Estariam realmente vazias de ar - o pai dissera "válvulas de vácuo"... Como é que a música das orquestras e a voz dos locutores entravam no rádio? Gostavam de dizer: "Está no ar". O rádio era carregado pelo ar? Que acontece dentro do aparelho de rádio quando a gente muda de estação? Que era "sintonia"? Por que é preciso ligar o aparelho à rede elétrica? Seria possível desenhar uma espécie de mapa mostrando como a eletricidade corre pelo rádio? Uma pessoa poderia desmontar o aparelho sem se machucar? Poderia montá-lo de novo? "Ellie, que você andou fazendo?", perguntou a mãe, passando em direção ao varal com roupas na mão. "Nada, mamãe. Só estou pensando." Por ocasião de seu décimo verão, foi levada, nas férias, para visitar dois primos que detestava, num grupo de cabanas junto a um lago na península setentrional de Michigan. O motivo pelo qual pessoas que viviam à beira de um lago no Wisconsin eram capazes de perder cinco horas viajando de carro até um lago no Michigan era para ela algo incompreensível. Sobretudo para ver dois garotos bobos, que mais pareciam nenéns. Só tinham dez e onze anos. Uns verdadeiros chatos. Como era possível que seu pai, que tanto se interessava por ela em outros assuntos, pudesse desejar que a filha brincasse dia após dia com idiotas? Ellie passou o verão a evitá-los. Numa noite sem luar, quente e abafada, saiu caminhando depois do jantar, sozinha, na direção do atracadouro. Uma lancha tinha acabado de passar, e o bote do tio estava amarrado ao cais, balançando de leve nas águas iluminadas apenas pelas estrelas. Com exceção de cigarras distantes e de um grito quase subliminar que ecoava do outro lado do lago, tudo era silêncio. Ellie ergueu os olhos para o céu pontilhado de estrelas e sentiu o coração disparar. Sem olhar para baixo, e com apenas a mão estendida a orientá-la, encontrou uma área de relva macia e se deitou. Havia no céu uma fogueira de estrelas. Milhares delas, na maioria piscando, algumas brilhantes e firmes. Olhando com cuidado, era possível distinguir ligeiras nuances de cor. Aquela brilhante lá... não era azulada? Ellie novamente tateou o chão sob si, sólido, firme... tranqüilizante. Cautelosamente, sentou-se, olhando para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, cobrindo toda a vasta extensão do lago. Podia avistar ambas as margens. O mundo só é plano na aparência, pensou ela. Na verdade, é redondo. É uma imensa bola... girando no meio do céu... uma vez por dia. Tentou imaginá-lo a rodar, com milhões de pessoas coladas a ele, falando em línguas diferentes, usando roupas engraçadas, todas presas à mesma bola. Estendeu a mão outra vez e tentou sentir a rotação. Poderia, quem sabe, senti-la só um pouquinho. Do outro lado do lago, uma estrela brilhante piscava entre as copas mais altas das árvores. Se a pessoa apertasse os olhos, veria raios de luz saindo dela. Apertando um pouco mais, os raios mudavam, obedientemente, de comprimento e de forma. Estaria apenas imaginando coisas ou... A estrela estava agora, sem nenhuma dúvida, sobre as árvores. Somente alguns minutos antes, estava aparecendo e sumindo entre a galharia. Agora estava mais alta, disso não restava dúvida. Era isso que queriam dizer quando falavam que uma estrela estava subindo, disse ela consigo mesma. A Terra estava girando na direção oposta. Num dos extremos do céu, as estrelas estavam subindo. Aquele lado era chamado de leste. No outro extremo do céu, atrás dela, além das cabanas, as estrelas se punham. Aquele lado chamava-se oeste. A cada dia, a Terra dava uma volta completa ao redor de si própria, e as mesmas estrelas surgiam de novo, no mesmo lugar. Mas, se uma coisa grande como a Terra fazia uma rotação por dia, tinha de estar girando a uma velocidade espantosamente alta. Todas as pessoas que ela conhecia deviam estar rodopiando com uma rapidez inacreditável. Naquele momento ela teve a impressão de poder verdadeiramente sentir a Terra girando - não apenas imaginar aquilo em sua cabeça, mas realmente senti-lo na boca do estômago. Era como descer num elevador veloz. Virou a cabeça ainda mais para trás, de modo a que seu campo de visão não fosse contaminado por nenhuma coisa terrena, até não enxergar nada senão o céu negro e as estrelas coruscantes. De maneira agradável, foi tomada pela sensação atordoante de que o melhor a fazer seria agarrar-se aos tufos de grama de ambos os lados de seu corpo e segurar-se com força, do contrário cairia no céu, seu corpinho minúsculo se perderia na imensa esfera lá embaixo. Chegou mesmo a emitir um grito antes de conseguir abafá-lo com o pulso. Foi assim que seus primos conseguiram encontrá-la. Descendo a encosta aos pulos, encontraram no rosto dela uma inusitada mistura de vergonha e surpresa, que prontamente assimilaram, ansiosos que estavam por achar algum pequeno malfeito que pudessem levar de volta e oferecer aos pais dela. O livro era melhor que o filme. Para começar, tinha muito mais coisas. E algumas das figuras eram bem diferentes das imagens do filme. Em ambos, porém, Pinóquio - um boneco de pau, de tamanho natural, que por artes mágicas ganhava vida - usava uma espécie de gibão, e parecia haver cavilhas em suas juntas. No momento em que Gepeto está dando os toques finais em Pinóquio, ele vira as costas ao boneco e é imediatamente atirado ao chão por um chute bem colocado. Naquele instante chega o amigo do carpinteiro e lhe pergunta o que está fazendo prostrado no chão. Gepeto responde, com dignidade: "Estou ensinando o alfabeto às formigas". Ellie achava isso extremamente gozado, e tinha enorme prazer em contar o episódio aos amigos. No entanto, a cada vez que narrava o caso, pairava uma pergunta não formulada na fímbria de sua consciência: seria realmente possível ensinar o alfabeto às formigas? E alguém desejaria fazer isso? Deitar-se junto a centenas de insetos capazes de rastejar por toda a pele da pessoa, e até mesmo picá-la? De qualquer maneira, o que as formigas poderiam saber? Às vezes ela se levantava no meio da noite para ir ao banheiro e lá encontrava o pai, só com as calças do pijama, com o pescoço virado para cima, e uma espécie de aristocrático desdém acompanhando o creme de barbear em seu lábio superior. "Oi, Prinça", ele dizia. Era um diminutivo de Princesa, e ele adorava chamá-la daquele jeito. Por que o pai fazia a barba de noite, quando não havia ninguém para ver se estava com a barba por fazer ou não? "Porque", explicava ele, sorrindo, "sua mãe vai saber." Anos depois ela descobriu que só havia entendido essa resposta jocosa pela metade. Seus pais na época estavam apaixonados um pelo outro. Depois da aula, fora de bicicleta até um parquinho à beira do lago. De uma bolsa presa à bicicleta tirou o Manual do amador de rádio e Um ianque na corte do rei Artur. Depois de um instante de reflexão, decidiu-se pelo segundo. O herói de Mark Twain levara uma pancada na cabeça, acordando na Inglaterra arturiana. Talvez fosse tudo um sonho ou um delírio. Mas talvez fosse verdadeiro. Seria possível retroceder no tempo? Com a cabeça enfiada nos joelhos, Ellie procurou uma de suas passagens favoritas; aquela em que o herói é, pela primeira vez, capturado por um homem de armadura, que o toma por um doido que fugiu do hospício do lugar. Ao chegarem ao topo da colina, vêem uma cidade diante deles: "Bridgeport?", perguntei... "Camelot", disse ele. Ela olhou para o lago azul, tentando visualizar uma cidade que poderia passar tanto pela Bridgeport do século XIX como pela Camelot do século VI, quando a mãe correu até ela. "Procurei você por toda parte. Por que nunca está num lugar em que possa encontrá-la? Ah, Ellie", murmurou a mãe, "aconteceu uma coisa terrível." Na sétima série estavam estudando o "pi". Era uma letra grega parecida com a arquitetura em Stonehenge, na Inglaterra: dois pilares verticais ligados por uma barra em cima - p. Se alguém media a circunferência de um círculo e depois a dividia pelo diâmetro desse círculo, isso era pi. Em casa, Ellie pegou a tampa de um vidro de maionese, passou um barbante em sua volta, esticou o barbante e, com uma régua, mediu a circunferência do círculo. Fez a mesma coisa com o diâmetro e, efetuando uma longa conta, dividiu um número pelo outro. Obteve 3,21. Aquilo pareceu bastante simples. No dia seguinte, o professor, sr. Weisbrod, ensinou que p era igual a aproximadamente 22/7, ou cerca de 3,1416. Na verdade, porém, se a pessoa desejasse exatidão, era um número decimal que continuava crescendo a vida toda, sem parar, nunca repetindo a seqüência de algarismos. A vida toda, pensou Ellie. Levantou a mão. Estavam no começo do ano letivo e ela não havia feito nenhuma pergunta naquela aula. "Como é que se pode saber que os decimais continuam a vida toda, sem acabar?" "É assim porque é", disse o professor, com certa rispidez. "Mas por quê? Como é que o senhor sabe? Como se pode contar casas decimais a vida toda?" "Srta. Arroway." O professor estava consultando a lista de chamada. "Essa pergunta é boba. Está nos fazendo perder tempo." Ninguém jamais dissera antes que uma pergunta de Ellie era boba, e ela rompeu em lágrimas. Billy Horstman, que se sentava a seu lado, teve um gesto de simpatia e lhe segurou a mão. Pouco tempo antes seu pai havia sido processado por mexer nos hodômetros dos carros usados que vendia, de modo que Billy era sensível a humilhações públicas. Ellie saiu da sala aos prantos. Depois de terminadas as aulas, ela foi de bicicleta à biblioteca de uma universidade próxima, a fim de consultar livros de matemática. Pelo que pôde discernir do que leu, a pergunta que fizera não era tão boba assim. Segundo a Bíblia, os antigos hebreus haviam considerado que pi era exatamente igual a três. Os gregos e romanos, que sabiam muitas coisas de matemática, não tinham nenhuma idéia de que os algarismos de pi prosseguiam eternamente, sem repetição. Na verdade, isso só havia sido descoberto há 250 anos. Como se poderia esperar que ela soubesse se não podia fazer perguntas? Entretanto, o sr. Weisbrod tinha razão com relação aos primeiros algarismos. Pi não era 3,21. Talvez a tampa do vidro de maionese estivesse um pouco amassada e não constituísse um círculo perfeito. Ou talvez ela não houvesse realizado a mensuração com o cuidado necessário. No entanto, mesmo que tivesse exercido todo o cuidado possível, não poderiam esperar que ela fosse capaz de medir um número infinito de decimais. Havia, porém, outra possibilidade. Podia-se calcular pi com a exatidão que se desejasse. Conhecendo uma coisa chamada cálculo, podiam-se determinar fórmulas de pi que permitiriam calculá-lo com qualquer número de decimais que se desejasse, desde que houvesse tempo para isso. O livro fornecia fórmulas de pi dividido por quatro. Algumas dessas fórmulas eram absolutamente ininteligíveis para Ellie. Outras, no entanto, a deixaram deslumbrada: p/4, dizia o livro, era o mesmo que 1 - 1/3 +1/5 - 1/7..., com as frações continuando eternamente. Rapidamente, ela procurou fazer o cálculo, somando e subtraindo as frações alternadamente. A soma saltava de um lado para outro, desde um pouco mais que p/4 até um pouco menos que p/4, mas depois de algum tempo ela pôde perceber que essa série de números seguia uma trilha lenta em direção à resposta correta. Nunca se poderia chegar exatamente ao objetivo, mas se podia chegar tão próximo quanto se desejasse, desde que se tivesse uma paciência enorme. Pareceu a Ellie um milagre que todos os círculos do mundo estivessem ligados a essa série de frações. Como era possível que os círculos conhecessem frações? Ellie tomou a resolução de aprender cálculo. O livro dizia mais uma coisa: pi era chamado de número "transcendental". Não existia nenhuma equação, contendo números comuns, que fosse capaz de dar pi, a menos que essa equação fosse infinitamente longa. Ellie já havia aprendido por si mesma um pouco de álgebra e sabia o que significava isso. E mais: pi não era o único número transcendental. Na realidade, existia uma infinidade de números transcendentais. Mais ainda: existiam infinitamente mais números transcendentais do que números ordinários, mesmo que pi fosse o único deles de que ela já havia ouvido falar. Em mais de um sentido, pi estava ligado ao infinito. Ellie tinha captado um vislumbre de algo majestoso. Oculta entre todos os números ordinários, havia uma infinidade de números transcendentais de cuja presença uma pessoa jamais suspeitaria se não sondasse a matemática a fundo. A todo momento um deles, como pi, surgia inesperadamente na vida cotidiana. Entretanto, a maioria deles - um número infinito deles, ela frisou para si mesma - estava escondida, cuidando da própria vida, e quase certamente passava despercebida ao irascível sr. Weisbrod. Ela compreendeu John Staughton logo que o viu. Constituía para Ellie um mistério impenetrável que sua mãe chegasse a pensar em se casar com ele - não importa que só tivessem passado dois anos desde a morte do pai. Staughton era um homem razoavelmente bem-apessoado, e era capaz de fingir, quando se dispunha a isso, que realmente se interessava pelas pessoas. No entanto, era um déspota. Nos fins de semana, obrigava os alunos a trabalharem no jardim da casa nova para onde se haviam mudado, e depois, quando iam embora, zombava deles. Disse a Ellie que ela estava apenas começando o segundo grau e não deveria olhar duas vezes para nenhum daqueles rapazes. Staughton era um homem muito cheio de si. Ellie tinha certeza de que, sendo professor, ele secretamente desprezava seu falecido pai, que fora apenas um lojista. Deixara claro que o interesse por rádio e eletrônica não ficava bem a uma moça, que com aquilo ela não conseguiria marido, que pretender aprender física era uma idéia tola e disparatada. "Pretensiosa", foi como se referiu a ela. Ellie simplesmente não tinha talento para aquilo. Eis um fato objetivo ao qual era melhor habituar-se. Ele lhe dizia isso para seu próprio bem. Mais tarde haveria de lhe agradecer por isso. Afinal de contas, ele era professor-adjunto de física. Sabia que tipo de pessoa se saía bem nessa atividade. Esses sermões sempre a deixavam furiosa, muito embora nunca - apesar de Staughton recusar-se a acreditar nisso - tivesse pretendido seguir uma carreira científica. Ele não era um homem delicado, como fora seu pai, nem fazia idéia do que fosse senso de humor. Quando alguém a supunha filha de Staughton, Ellie se sentia ofendida. Nem a mãe nem o padrasto jamais sugeriram que ela mudasse o nome para Staughton; sabiam qual seria a reação. Vez por outra o homem demonstrava certo calor humano, como na época em que ela se achava convalescendo de uma operação de amígdalas num quarto de hospital e ele lhe levara um magnífico caleidoscópio. "Quando é que vão fazer a operação?", perguntara ela, um tanto sonolenta. "Já fizeram", respondera Staughton. "Você vai ficar bem." Para Ellie, era inquietante que blocos inteiros de tempo pudessem ser roubados sem seu conhecimento, e jogou a culpa nele, mesmo percebendo que aquela era uma atitude infantil. A possibilidade de que sua mãe realmente o amasse era-lhe inconcebível. Devia ter se casado com ele por solidão, por fraqueza. Precisava de alguém que cuidasse dela. Ellie jurou que jamais aceitaria uma situação de dependência. O pai de Ellie tinha morrido, sua mãe se distanciara e Ellie sentia-se exilada na casa de um tirano. Não havia mais ninguém que a chamasse de Prinça. Ela ansiava por escapar. "Bridgeport?", perguntei. "Camelot", disse ele.