1. A dispersão Os primeiros exploradores: das culturas coletoras aos grandes impérios Tantos deuses, tantos credos, Tantos caminhos que serpeiam, serpeiam [...] Ella Wheeler Wilcox, "The world's need" A História conta duas grandes histórias. A primeira é a do longuíssimo processo pelo qual as culturas humanas divergiram - como se separaram e se diferenciaram, sem se conhecerem ou se menosprezando mutuamente. A segunda constitui o tema principal deste livro: uma história relativamente curta e recente de convergência - como os grupos humanos voltaram a se pôr em contato, trocaram dados culturais, copiaram os modos de vida uns dos outros e se tornaram novamente mais parecidos entre si. A primeira narrativa ocupa a maior parte da história, cobrindo cerca de 150 mil anos, pois se estende, em linhas gerais, desde o surgimento do Homo sapiens até o presente: a crônica do modo como as culturas humanas se formaram, diferenciaram-se umas das outras, distanciaram-se e se tornaram mais díspares e dessemelhantes, até chegarmos onde estamos: um mundo transbordante de diversidade, em que, paradoxalmente, o pluralismo é o único grande valor comum a que não ousamos renunciar. Imaginemos uma observadora cósmica (digo uma observadora porque, com base em minha própria experiência de vida doméstica, considero que a onisciência e a onipresença são atributos femininos) a contemplar a humanidade de um espaço e um tempo imensamente remotos. Ela nos vê com uma objetividade que nós - enredados em nossa própria história - somos incapazes de alcançar. Imaginemos que lhe perguntássemos como ela descreveria a história de nossa espécie na Terra. Sua resposta seria breve, pois criaturas insignificantes como nós, habitantes de um fragmento minúsculo do universo, não mereceriam muitos comentários. A observadora cósmica com certeza diria que nossa história era, acima de tudo, a experiência de uma crescente diversidade. A segunda história, que para nós é tão importante, mas que, desconfio, a observadora cósmica talvez mal notasse, tem-se sobreposto à primeira durante os últimos 10 mil anos, mais ou menos. Aos poucos ela foi se tornando a história predominante, à medida que os intercâmbios culturais se aceleravam e cresciam em abrangência, até que, na atualidade, o modo como a cultura global parece tornar-se cada vez mais homogênea - até mesmo mais uniforme - transformou-se para nós no aspecto da experiência humana, em todo o mundo, que mais chama a atenção. Ambas as histórias, sustento, tratam de explorações. Mas sobre a primeira sabemos muito pouco para que ela mereça mais que algumas páginas neste livro. As sociedades jamais teriam se distanciado umas das outras se não fossem os desbravadores que, por rotas divergentes, as conduziram para ambientes contrastantes e regiões separadas. Elas nunca teriam restabelecido relações entre si - e se modificado mutuamente - sem gerações posteriores de exploradores, que descobriram as rotas de contato, de comércio, de conflitos e de contágio responsáveis por reuni-las. Os exploradores foram os engenheiros das infra-estruturas da história, os construtores das estradas da cultura, os forjadores de vínculos, os tecedores de redes. A convergência gerou grande quantidade de indícios que chegaram até nós; a era de divergência, quase nenhum. A convergência é aquilo que chamamos de nossa história: os fatos de que necessitamos para explicar a nós mesmos o mundo em que vivemos, a fim de compreendê-lo e planejar seu futuro. É o que justifica dedicar todo um livro a explicar como isso aconteceu. Antes, porém, vale a pena examinar sucintamente o trabalho dos desbravadores que lideraram as comunidades humanas e as separaram umas das outras, pois também isso foi um triunfo da exploração. Traçar um esboço desse trabalho nos ajudará a avaliar melhor as realizações dos exploradores que vieram depois e a compreender até que ponto aqueles desbravamentos foram importantes para a formação do mundo em que vivemos hoje. COMEÇA A DIVERGÊNCIA A pergunta fundamental feita pelos historiadores é a seguinte: "Por que a história acontece?". Percebe-se o sentido dessa pergunta comparando os seres humanos com outros animais sociais e culturais. As sociedades humanas mudam muito mais depressa que a de outras espécies. O processo de mudança, a que chamamos história, é tão sutil e lento para a maioria delas, ou tão uniforme ou repetitivo, que é quase impensável a história de uma colônia de baleias ou formigas. É difícil, mas possível, escrever a história de uma tribo de chimpanzés. Jane Goodall registrou as crises e conflitos de liderança entre chimpanzés selvagens que ela estudou, e sua narrativa não difere da crônica do jogo político de alguns grupos humanos simples - a história de uma quadrilha, digamos, ou de uma tribo ou clã. Outro pioneiro da primatologia, Frans de Waal, descreveu as estruturas da política do poder entre os chimpanzés e comparou os princípios da política desses primatas com os de Maquiavel: os pretendentes à liderança conspiram em busca de apoio, montam campanhas de subversão e dão golpes. No entanto, até onde o atual estágio da pesquisa nos permite saber, nem mesmo as sociedades de chimpanzés - que entre as não-humanas são as que mais se assemelham à nossa - nada têm da impressionante volatilidade da cultura humana. Entre os chimpanzés e outros animais sociais não-humanos, as mudanças políticas ocorrem segundo parâmetros previsíveis. Os líderes se sucedem, as alianças se formam, dividem-se e voltam a se formar, mas os modelos são sempre os mesmos. Tampouco os grupos de chimpanzés diferem tanto entre si em outros aspectos culturais quanto os grupos humanos. O mesmo é válido para os grupos de outras espécies culturais. Não obstante, sem dúvida os chimpanzés e muitos outros animais têm uma cultura: adquirem novos métodos, técnicas e estratégias para adaptar-se a seus ambientes, sobretudo coletar e distribuir alimentos. Ensinam e aprendem essas estratégias e as transmitem de geração a geração. Em certos aspectos e em alguns casos raros, até faz sentido dizer que os chimpanzés ritualizam a distribuição de alimentos: os caçadores, por exemplo, distribuem o alimento que conseguem segundo modelos bastante fixos, determinados sobretudo pela hierarquia do indivíduo na tribo e pelas estratégias sexuais dos caçadores líderes. Depois de adquiridas inovações culturais, os animais culturais as transmitem por meio da tradição. E assim começa a divergência. Por exemplo, nas florestas do Gabão, alguns grupos de chimpanzés capturam cupins com varetas; outros racham cocos com pedras que usam como marretas e bigornas. Nas planícies da África oriental, algumas sociedades de babuínos mantêm relações monogâmicas sucessivas, ao passo que, em outras, machos polígamos dispõem de haréns. Em Bornéu e Sumatra, orangotangos divertem-se com diferentes jogos. No caso mais bem documentado, de que primatologistas no Japão foram testemunhas oculares, uma macaca genial, Ima, descobriu uma maneira de lavar batatas-doces e ensinou o método à sua tribo. Isso ocorreu em 1950. Desde então, os macacos vêm utilizando a técnica, que permanece circunscrita à sua colônia. Diante desse pano de fundo, não surpreende que também as culturas humanas se modifiquem e, por conseguinte, divirjam. Afinal, os seres humanos são primatas e devemos esperar que nossa história revele características de primatas. Todavia, o que queremos investigar é por que as sociedades humanas divergem tanto e por que mudam tão depressa. Para responder a essas perguntas, o melhor ponto de partida é nosso ancestral comum mais recente: a mulher - ou melhor, a seqüência de DNA - que os paleantropologistas conhecem como a "Eva mitocondrial", a quem se atribui aproximadamente 150 mil anos. Na época dessa Eva, é plausível supor que os habitantes da África oriental, cujo número não passava de alguns milhares, partilhassem a mesma cultura: viviam dentro da mesma economia, valiam-se da mesma tecnologia, consumiam os mesmos alimentos e, presumivelmente, se essas coisas já existiam em data tão recuada, praticavam o mesmo tipo de religião e usavam a mesma linguagem. De início lenta e intermitentemente, algumas pessoas de espírito aventureiro começaram a tirar suas comunidades da área da Eva mitocondrial e levá-las para novos ambientes, a que tiveram de se adaptar, o que gerou mudanças. Essas comunidades perderam contato entre si e, em relativo isolamento, passaram a apresentar diferenças cada vez maiores. Os primeiros problemas da história da exploração, portanto, são os seguintes: Como as pessoas se espalharam pelo mundo? O que possibilitou tal migração? Quem as conduziu e por quê? Como se transformaram durante o processo? Trata-se de problemas realmente fundamentais e complexos, para os quais não dispomos de comparações que nos ajudem a elucidá-los. Outras espécies mantêm-se resolutamente adstritas aos ambientes a que melhor se adaptaram. Quando migram, fazem-no sazonalmente, em busca de estabilidade ambiental. Quando se dispersam, permanecem em áreas contíguas e muitas vezes retornam ao antigo habitat ao fim da crise que as impeliu a migrar. As raposas apresentam uma dispersão geográfica quase igual à humana, mas suas diferentes espécies mostram variações genéticas muito maiores, de um habitat para outro, que as variações mensuráveis dos grupos humanos. Outros casos de espécies que passaram de um ambiente para outro ajudam um pouco a explicar como e por que as populações humanas migraram: um caso recente e bem estudado é o dos gorilas das montanhas de Ruanda, que parecem ter procurado seu atual habitat, alto e relativamente frio, para fugir do ambiente competitivo das florestas tropicais das planícies. Ali eles desenvolveram um modo de vida viável, embora ao preço de uma alimentação escassa, o que talvez tenha contribuído para que eles, exclusivamente vegetarianos, se tornassem menores e mais fracos que os outros gorilas. Mas trata-se de um caso de reassentamento muito limitado, num ambiente adjacente ao antigo habitat dos gorilas. Não pode ser tomado como modelo para explicar o enorme âmbito das transposições dos primeiros colonizadores humanos. Mesmo as populações humanas raramente ou nunca procuram novos ambientes de boa vontade, ou se ajustam a eles com facilidade. Em casos recentes e bem documentados, no transcurso dos últimos quinhentos anos, aproximadamente, as colonizações mais bem-sucedidas em geral tiveram como destino ambientes semelhantes aos do ponto de partida dos migrantes. Quando os grupos humanos migram, costumam recriar a atmosfera da pátria no país adotado. Assim, os colonizadores fundaram a Nova Inglaterra, a Nova França, a Nova Zelândia, a Nova Gales do Sul e outras versões ligeiramente modificadas de seus locais de origem. Criaram a Nova Espanha e, uma vez aclimatados ali, passaram para o Novo México. Buscavam reconforto em sua cultura e transportavam consigo o máximo que podiam de seu ambiente físico. Levavam animais e plantas com que estavam familiarizados - e em geral isso exigia que as áreas novas fossem semelhantes às que tinham deixado. Na grande era da colonização européia de muitas áreas pouco conhecidas do mundo, nos séculos XIX e XX, os migrantes procuraram e transformaram "Novas Europas" - áreas com clima semelhante aos de suas pátrias em regiões temperadas da América do Norte, América do Sul, África do Sul e Austrália. No fim desse período, abandonaram a maioria dos ambientes tropicais onde haviam se instalado essencialmente como elites temporárias, administrando, defendendo, desenvolvendo ou explorando territórios imperiais. Esses são ainda os habitats principais de comunidades migrantes. Atualmente, colonizadores chineses transformam partes da Ásia central em simulacros da China - com seu aspecto, seus cheiros e sons. E em certa medida fazem o mesmo em bairros chineses de cidades ocidentais. Toda nossa atual ansiedade com relação às possibilidades da manutenção do êxito do multiculturalismo advém do fato de que, quando grupos humanos se transferem para um novo ambiente, normalmente não rejeitam o antigo. O torrão natal da Eva africana não era nenhum Éden, mas convinha a nossa ancestral e sua prole. Ali podiam compensar as deficiências com as quais tinham evoluído. Subiam mal em árvores, mas, nas savanas e florestas, compensavam essa debilidade com a postura ereta e a capacidade de enxergar longe. Podiam utilizar o fogo para delimitar as áreas de pastagem dos animais que caçavam. Podiam encontrar materiais com que fabricar armas e ferramentas, principalmente os dardos e lanças, endurecidos a fogo, que usavam para abater os animais, e as pedras afiadas com que os retalhavam. Comparados com as espécies competidoras, nós, os seres humanos, contamos com sentidos menos desenvolvidos de visão, olfato e audição, movimentos lentos, dentes e unhas nada ameaçadores, pouca capacidade de digestão e corpos fracos que nos confinam ao chão. Só dispomos - pelo menos os espécimes humanos saudáveis - de duas importantes vantagens físicas: primeiro, nossa capacidade de manter uma atividade enérgica durante longas perseguições, suando profusamente para impedir a elevação da temperatura: segundo, nossa perícia no uso de projéteis - braços certeiros e boa coordenação entre olhos e mãos - para manter afastados predadores rivais. Por todos esses motivos, seria de esperar que o Homo sapiens se mantivesse na savana. No entanto, suas migrações o reassentaram em ambientes bem diferentes: densas florestas e pantanais, onde suas técnicas habituais eram de pouca utilidade; climas frios, aos quais eram ainda menos adequadas; desertos e mares, que exigiam tecnologias que não tinham sido adquiridas. Em todos esses novos ambientes, pode-se presumir que grassassem doenças antes desconhecidas. Entretanto, os migrantes continuaram a se embrenhar neles e a atravessá-los, conduzidos pelos primeiros exploradores da história. Ainda estamos tentando compreender como essa dispersão se deu. Essa migração - ou algo parecido - já tinha ocorrido anteriormente. Há cerca de 1,5 milhão de anos, hominídeos da espécie que chamamos Homo erectus começaram a deixar o leste da África e parecem ter-se espalhado pela maior parte da África e da Eurásia. Esse movimento civilizatório foi mais lento e mais irregular do que o realizado por nossa própria espécie. Durou pelo menos 300 mil anos e, mais provavelmente, cerca de meio milhão de anos, ao passo que o Homo sapiens chegou mais longe - igualando os limites da penetração do Homo erectus na Ásia e na África, ocupando uma área muito mais ampla da Europa e atingindo até a Austrália em apenas um terço desse tempo e talvez, segundo os cálculos mais favoráveis, em somente um décimo dele. Em certo sentido, a dispersão do Homo erectus prefigurou a do Homo sapiens: deu-se em grande parte do mesmo território. Além disso, de alguma forma, tal como no caso do Homo sapiens, os viajantes conseguiram transpor mares abertos, pois têm sido encontrados fósseis do Homo erectus em partes da Indonésia que na época dessa colonização estavam separadas do continente asiático. É até possível que o Homo erectus tenha contado com um corpo de exploradores especializados - é tentador dizer "profissionais". Clive Gamble aventou a hipótese de que, nas sociedades dos hominídeos, machos jovens tivessem a incumbência de percorrer o território em busca de caça, em parte para mantê-los afastados das fêmeas dos mais velhos e em parte devido à sua maior mobilidade. Essa especialização levaria a outras: primeiro, a procura de rotas para as migrações sazonais; depois, investigações mais audaciosas sobre a possibilidade de coleta de alimento em áreas distantes. Mas é arriscado levar longe demais as possíveis analogias entre o caso do Homo erectus e o do Homo sapiens. O Homo erectus se manteve na África durante cerca de meio milhão de anos antes de começar a dispersão - o dobro ou o triplo de toda a duração (até hoje) da existência do Homo sapiens. Há aproximadamente 250 mil anos, uma expansão semelhante foi realizada por grupos migrantes de uma espécie aparentemente ancestral do homem moderno, em geral chamada de Homo helmei. Entretanto, uma glaciação posterior de grandes proporções dizimou todas as colônias do Homo helmei fora da África, e os grupos que lá permaneceram logo desapareceram, talvez expulsos ou aniquilados por nossos próprios ancestrais. O quadro geral das áreas e épocas em que ocorreram as migrações do Homo sapiens no processo de povoamento do planeta pode ser reconstituído - ainda que os dados arqueológicos sejam muito irregulares e, no estado atual da análise, às vezes pareçam contraditórios - medindo-se as diferenças entre as atuais populações no tocante ao tipo sangüíneo, ao dna e, em certa medida, à língua. Em termos simples, quanto maiores as diferenças, maior será o tempo em que os ancestrais das populações estudadas estiveram sem contato com o restante da humanidade; por conseguinte, há mais tempo migraram para sua localização atual. É difícil efetuar esses cálculos com confiança ou precisão. É raro o isolamento durar muito tempo. Na maior parte da Eurásia e da África, onde os movimentos populacionais foram extremamente intensos nos tempos históricos, as miscigenações têm sido submetidas com freqüência a novas interações. No caso das línguas, não existem meios consensuais para medir suas diferenças, e julgamentos subjetivos podem distorcer as conclusões baseadas em dados tão duvidosos. No entanto, com certa reserva, pode-se situar, com base nos mais cuidadosos estudos disponíveis atualmente, uma progênie de Eva no Oriente Médio há aproximadamente 100 mil anos. Mas essa colônia fracassou e foi refeita cerca de 20 mil ou 30 mil anos depois. Todos os seres humanos extra-africanos provêm desse único grupo migrante, cujos descendentes se espalharam pelo mundo com surpreendente rapidez. Parecem ter alcançado as vizinhanças de Penang, na Malásia, há 74 mil anos, quando uma erupção vulcânica recobriu de cinzas seus assentamentos. Os mais antigos indícios arqueológicos do Homo sapiens na China têm pelo menos 67 mil anos (embora, enigmaticamente, algumas escavações tenham levado a datações anteriores para ossadas estranhamente parecidas com as do Homo sapiens). O povoamento parece ter avançado, de início, ao longo das costas da África e da Ásia, provavelmente por mar, num processo em que os migrantes se mantinham junto ao litoral ou saltavam de ilha em ilha. Pode parecer surpreendente que o homem já houvesse desenvolvido uma tecnologia náutica em data tão remota; mas os primeiros colonizadores da Austrália, há cerca de 60 mil anos, certamente a conheciam, pois naquela época os territórios que hoje formam a Austrália e a Nova Guiné já tinham se separado da Ásia. De certa forma, o que há de estranho em relação aos povos da Austrália não é que tenham chegado ali tão cedo, mas sim que depois disso tenham permanecido isolados por tanto tempo. Mares estreitos e varridos por monções, facilmente navegáveis, os separavam de Java e da Nova Guiné. É seguro afirmar que havia um comércio com a Nova Guiné durante muitos séculos antes da chegada de novas ondas de exploradores, vindos de mais longe, nos tempos modernos. É difícil crer que não existisse contato com Java, embora não haja comprovação disso. O fato de terem os primeiros habitantes da Austrália chegado ali por mar já é em si instigante - mas torna ainda mais misteriosa a exigüidade da história da navegação naquela área. De acordo com uma teoria vista com desdém pela maioria dos paleantropologistas (e que, se verdadeira, explicaria nossa vocação para o mar), o Homo sapiens teria evoluído a partir de um "macaco aquático". Mas os argumentos a seu favor são, no melhor dos casos, fragílimos e baseados inteiramente em semelhanças inconclusivas entre os seres humanos e mamíferos aquáticos. Assim que se criavam assentamentos em novas terras, os migrantes embrenhavam-se pelo interior. Parece remota a probabilidade de que um dia possamos reconstituir o trabalho dos batedores de rotas, mas dois pressupostos são razoáveis: eles seguiam a caça e mantinham-se próximos à costa. É de presumir, portanto, que tenham começado explorando as bacias hidrográficas dos rios que deságuam no oceano Índico. Mas, ultrapassados esses limites, como foram além? Talvez tenham percorrido os trechos superiores dos rios Indo e Amarelo, à sombra das montanhas da Ásia central, seguindo os caminhos que mais tarde seriam conhecidos como as Rotas da Seda; ou, mais provavelmente, pelas cabeceiras do Amur, atravessando a estepe siberiana, ao norte do deserto de Gobi: aqui, a região do lago Baikal e os vales de alguns dos maiores rios da Sibéria são pontilhados de sítios arqueológicos que têm mais de 30 mil anos. A Europa recebeu o Homo sapiens há cerca de 40 mil anos apenas: ali e nessa época, nossos antepassados encontraram os neandertalenses e a eles sobreviveram - ou os exterminaram. Os colonizadores da Europa não saíram da África por uma rota direta e independente: também eles eram descendentes dos mesmos migrantes que iniciaram o povoamento da Ásia. Partiram das nascentes do Tigre e do Eufrates, provavelmente seguindo a orla litorânea doplanalto da Anatólia e avançando pela costa do Mediterrâneo ou subindo o vale do Danúbio. Indícios genéticos apontam para uma outra rota, aberta talvez 10 mil anos depois, que partia da estepe russa e cruzava a planície européia. O norte da Ásia e o da América - regiões na época isoladas pela barreira impenetrável do frio - foram colonizados, provavelmente, muito depois. A cronologia é debatida acaloradamente e, como veremos, ainda não existem dados arqueológicos amplamente aceitos que indiquem uma colonização do Novo Mundo antes de 15 mil anos atrás. Não obstante, os dados genéticos parecem inequívocos: os migrantes que ocuparam a América eram também, em última análise, descendentes do mesmo grupo proveniente da África. Do mundo atualmente habitado, somente a Polinésia permanecia na época despovoada: chegar ali exigia o domínio da navegação de alto-mar, que só se tornou possível há mais ou menos 3 mil ou 4 mil anos. Sendo correto, esse sumário da expansão do Homo sapiens implica um espantoso crescimento demográfico. Não temos nenhuma idéia - afora palpites - do número real de pessoas envolvidas nas migrações, mas podemos postular um número da ordem de milhões no fim do processo. Os filhos de Eva se multiplicaram de tal forma que puderam se espalhar pela maior parte do Velho Mundo em menos de 100 mil anos. Mas isso foi a causa ou um dos efeitos das migrações? Na época, ao que tudo indica, todos coletavam alimentos. Os coletores em geral limitam o tamanho de suas famílias: ou impõem regras rigorosas quanto a quem pode casar com quem, a fim de reduzir o número dos casais procriadores, ou praticam formas de controle da natalidade. O principal método de contracepção é a lactação prolongada - enquanto amamentam os filhos, as mães são relativamente inférteis. Um grande número de filhos não condiz com uma sociedade coletora, uma vez que a vida nômade dificulta para as mães levar consigo, de um lado para outro, mais que umas poucas crianças. Por conseguinte, as comunidades coletoras têm populações estáveis. O crescimento demográfico que povoou o planeta parece contrariar o padrão de estabilidade populacional próprio daquelas comunidades. A busca de uma explicação para esse fenômeno tem de considerar duas características inter-relacionadas da população na época: a multiplicação demográfica e a mobilidade. É possível que o emprego do fogo para cozinhar contribua para uma explicação. O uso do fogo encerrava um enorme potencial para melhorar a nutrição das pessoas e aumentar a população, pois facilitava a digestão dos alimentos e os tornava mais saborosos. Para criaturas como nós - que temos vias digestivas curtas, mandíbulas fracas, dentes pouco afiados e apenas um estômago, sendo por tudo isso restritos às fontes de energia que podemos mastigar e digerir - tudo que aumentasse o leque dos alimentos disponíveis representava uma importante vantagem evolucionária. Mas simplesmente não sabemos quando o homem começou a empregar o fogo para cozinhar. Dados incontestáveis apontam para 150 mil anos atrás, o que coincide à perfeição com os primórdios da explosão populacional; no entanto, é muito provável que os fogos que arderam em cavernas há meio milhão de anos, e dos quais restam vestígios, tenham sido acesos por hominídeos, deliberadamente, para cozinhar. O sítio de Zhoukoudian, na China, oferece um exemplo muito convincente. Ali, o padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, um dos pais da moderna ecologia, desenterrou indícios numa escavação feita em 1930. Um herói da moderna arqueologia, o Abbé Breuil, identificou-os logo como os restos de uma lareira. "Impossível", disse o jesuíta, "essa peça vem de Zhoukoudian." "Não me importa de onde ela vem", replicou o Abbé. "Isso foi feito por um homem, e esse homem conhecia o uso do fogo." Mais recentemente, um dos mais insignes paleantropologistas do mundo, Richard Wrangham, afirmou que o emprego do fogo para cozinhar teve início há mais de 2 milhões de anos; entretanto, sua argumentação não se baseia em indícios diretos, mas sim em inferências a partir do modo como evoluíram os dentes humanos, que, segundo se afirma, se tornaram menores e menos afiados naquele período, supostamente como resultado da ingestão de alimentos modificados por chamas. Não se conhece nenhum vestígio de fogo doméstico em tempos tão antigos. A mesma incerteza ronda a cronologia de outras tecnologias que, por facilitarem as caçadas, podem ter melhorado a dieta: a fabricação de lanças endurecidas a fogo (os mais antigos exemplos conhecidos têm apenas cerca de 150 mil anos), a manutenção de currais e a construção de corredores de pedras pelas quais impelir a caça a fim de capturá-la. Se não foram novas técnicas que possibilitaram ao Homo sapiens migrar, talvez ele tenha sido levado a isso por novas tensões. O esgotamento das fontes de alimento ou desastres ecológicos poderiam explicar essa necessidade, mas não há nenhuma prova que fundamente especulações nesse sentido. Carência de alimentos e catástrofes parecem incompatíveis com uma população crescente. Em todos os demais casos de que temos conhecimento, qualquer que seja a espécie, a população diminui com a redução das fontes de alimento. No entanto, existe outra possível fonte de tensão: a guerra. Entre os cavaleiros do Apocalipse, a guerra é o elemento estranho: as epidemias, a fome e as catástrofes naturais tendem a inibir a ação humana, ao passo que a guerra nos incita e impulsiona à inovação. Mas quando tiveram início as guerras? Esse é um dos mais fascinantes problemas da história. De acordo com uma respeitável tradição liberal, a guerra é "natural" para os seres humanos. O comandante das forças britânicas na Segunda Guerra Mundial, o marechal-de-campo Montgomery, costumava recomendar a quem lhe perguntava como ele explicava as guerras que lesse A vida das formigas, de Maeterlinck. Vários antropólogos eminentes do século XX expressaram a mesma opinião, argumentando, em analogia com outros animais, que o homem tinha instintos agressivos e violentos nele implantados pela evolução. Os primitivistas românticos discordavam: a natureza humana era em essência pacífica, antes de ser corrompida pela competição. Margaret Mead, a grande antropóloga liberal das décadas de 1920 e 1930, afirmava que a guerra era "uma invenção, não uma necessidade biológica". De início, os dados pareciam duvidosos. Ainda não dispomos de nenhuma comprovação arqueológica de um conflito armado em grande escala antes da mais recuada batalha de que se tem notícia, que foi travada em Djebel Sahaba, perto da atual fronteira egípcio-sudanesa, há cerca de 11 mil anos, num contexto em que a agricultura era incipiente. O morticínio foi de absoluta ferocidade, com a intenção não de selecionar as vítimas a serem mortas, mas de massacrá-las e exterminá-las de modo indiscriminado. Muitas vítimas foram lanceadas repetidamente. Além disso, o que ocorreu ali foi uma guerra total, voltada não somente contra os combatentes do inimigo, mas também contra mulheres e crianças. O corpo de uma mulher apresentava 22 ferimentos perfurantes. A estratégia de massacre é encontrada hoje tanto entre povos que praticam a agricultura rudimentar quanto entre aqueles tidos na conta de representantes da "modernidade" e da "civilização". Esses fatos induzem à tentação de imaginar que as guerras mais antigas se davam entre comunidades sedentárias que competiam por recursos. Ao menos, parece que as guerras adquiriram maior intensidade ou passaram a ser travadas de maneira mais sistemática assim que as pessoas criaram assentamentos físicos para poder cuidar de lavouras. No entanto, ao que parece, a guerra organizada entre comunidades deve ter surgido muito antes. Jane Goodall relatou guerras entre comunidades de chimpanzés, nas florestas do Gabão, na década de 1970. Os animais usavam de uma selvageria total para eliminar "grupos dissidentes" que se separavam de suas comunidades de origem. Isso pode representar uma pista para explicar o processo que deu início às migrações humanas: conflitos podem ter tornado obrigatório ou conveniente que grupos dissidentes migrassem em busca de segurança. Se correta, tal hipótese suscita novos problemas: Que tensões ocasionaram guerras há 100 mil anos? Mais uma vez, o aumento da população? Maior competição por fontes de alimentos em declínio? Ou temos de reverter a afirmações referentes à onipresença da agressividade "animal"? O povoamento da Terra levou tanto tempo que o processo certamente teve múltiplas causas, em diferentes combinações, em diferentes lugares e épocas. Algumas migrações foram seguramente sui generis: episódios singulares, não influenciados nem motivados por causas rotineiras. Como hoje consideramos que os pioneiros são revolucionários e inovadores, é provável que subestimemos a força do conservadorismo para induzir algumas comunidades a pôr-se em marcha. Entre as migrações recentes e documentadas estão as de minorias religiosas e ideológicas - dos amish nos Apalaches a nazistas no Chaco - que se dispuseram a mudar para um novo ambiente a fim de preservar seu modo de vida. Imagino os primeiros "boat people" que colonizaram a Austrália como os não-conformistas de 150 mil anos atrás, que optaram porabandonar mundos em transformação a fim de se instalar num novo continente em que pudessem manter seu modo de vida tradicional. De maneira geral, se as pessoas se transferiam de suas terras para novos ambientes, deviam ser atraídas por estes, e não expulsas daquelas. Não era devido a uma escassez de recursos em suas terras que se punham em marcha, e sim porque uma abundância de novos recursos em outras áreas as seduziam. As novas oportunidades tinham como fatores predisponentes, e talvez causais, mudanças ambientais inescapáveis: novas tendências no quadro climático global.