Trecho do livro SENHORA DONA DO BAILE

ABRIL DE 1948 Chegaríamos a Lisboa no dia seguinte pela manhã. Enquanto amamentava João Jorge na acanhada cabine de segunda classe, eu fazia planos para o dia que passaria em terra. Navio italiano, de linha regular entre o Brasil e a Europa, o Argentina realizava duas escalas a partir do Rio de Janeiro: Cabo Verde e Lisboa, antes de atingir o porto de Gênova, seu fim de linha, meu destino. Eu embarcara no Rio de Janeiro, havia uma semana, levando nos braços meu filho de quatro meses. Em Cabo Verde não pudera baixar. A ilha de São Vicente, escala do Argentina, não possuía cais de atracação para navios de grande calado. O nosso ficara ao largo; os passageiros que desejassem desembarcar deveriam aventurar-se descendo por uma escada de corda - lembrava as dos trapezistas de circo -, antes de alcançar a lancha que os transportaria à terra. Que vontade tive de descer! A inconfortável escada não seria empecilho para mim, não me assustava. Com uma criança ao colo, porém, a coisa mudava de figura, não podia nem devia me arriscar. Paciência. Ficara contemplando de longe a ilha,uma das dez do arquipélago de Cabo Verde. Na paisagem árida, parda, despida de colorido, terra e casas se confundiam, segundo lera no jornalzinho de bordo, havia anos não chovia em Cabo Verde, nenhuma vegetação resistia à seca e a população era obrigada a servir-se de água importada. Meninos apareceram nadando ao redor do navio, alguns completamente nus; exímios mergulhadores, verdadeiros peixinhos, iam pescar nas profundas do oceano as moedas que os passageiros atiravam à água, trazendo-as presas entre os dentes. Achando que eu ficara frustrada por não ter desembarcado, dra. Janina, minha companheira de cabine, tratou de me consolar. - Não fique triste, você não perdeu nada. Baixei uma vez para nunca mais. Um calor, uma poeira que Deus me livre! Quase tive uma insolação! - Fez um gesto de horror com as mãos. A experiência da doutora não me dizia nada. Eu enfrentaria calor e poeira e, mesmo arriscando uma boa insolação, teria ido a terra. De Cabo Verde eu tinha notícias terríveis. Aprendera desde menina que as ilhas do arquipélago haviam sido importante trampolim, utilizado pelos portugueses, no tráfego de escravos africanos; mancha do passado. No presente, havia ali o campo de Tarrafal - na ilha de São Tiago -, prisão na qual sofriam homens de valor, intelectuais africanos e portugueses, opositores da ditadura salazarista, isolados do mundo, sem possibilidades de defesa, sem perspectiva de liberdade. Ao ver agora, ao longe, aquela terra sofrida, sentia enorme vontade de andar entre seu povo, conhecer um pouco de seus hábitos, rodar pela cidade. Sempre tive fascínio pela geografia humana, muito mais do que pelas paisagens. DRA. JANINA Médica italiana radicada em São Paulo, dra. Janina dividia comigo a cabine nessa viagem de dez dias. Mulher disposta, sacudida, cheia de entusiasmo, animadíssima, beleza marcada por vincos na testa, rugas emoldurando os olhos negros, dra. Janina devia ter idade de sobra para ser minha mãe. Fizera muitas viagens de navio, sabia das coisas de bordo, dos oficiais e dos passageiros, punha-me a par da identidade dos companheiros de viagem, das ocorrências diárias e até do namoro de certa jovem casada, de família sua conhecida, a "se esfregar" pelos escuros do tombadilho com um bonitão italiano. "O marido, poveretto, trabalhando lá em São Paulo para sustentar os luxos e as viagens da mulher... e ela... se me contassem eu não acreditaria..." Naquela noite, enquanto eu amamentava e fazia planos, dra. Janina, que saíra, havia muito, toda em traje de soirée, voltou à cabine, queria saber se eu não desejava dar um pulinho à festa de despedida. Muitos passageiros ficariam em Lisboa, e daí a três dias chegaríamos a Gênova. Aquela, pois, seria a última recepção de bordo. Penalizada por me ver ali sozinha, a doutora propunha-se a ficar com o menino até a minha volta. Tentava entusiasmar-me: "Andiamo! Via! Animo! Vá se divertir um pouco...". Monologava: "Poverina, sempre con questa creatura in braccio... não se diverte...". Vendo que eu não me animava, mudou de tática, começou a contar: "Sabe aquela que eu te contei? A civettona?". Ela mesma ria do adjetivo que arranjara para a pobre moça. "Está cantando, toda romântica, e o bonitão acompanhando no piano; uma cena! Vale a pena você ver!" Imitando a outra, a civettona, dra. Janina botou a mão no peito, meneou o corpo, sapecou um bolero muito em voga. Nosotros, que fuimos tan sinceros y desde que nos vimos amandonos estamos... Essa doutora era uma bola! Não tinha jeito! Tão boa, tão gentil... - Muito obrigada, minha querida - disse-lhe com um sorriso de agradecimento -, não posso aceitar sua gentileza, prefiro dormir cedo, estou cansada e amanhã vamos ter um dia puxado... A senhora é um amor! Eu não tomara parte nas inúmeras festas de bordo, nem participara do entusiasmo dos passageiros, sempre fatiga da com "quella creatura in braccio...", de manhã à noite. Limitara-me a comparecer à insólita cerimônia de batismo, na passagem da linha imaginária do equador. Fomos batizados, João Jorge e eu, com um balde de água na cabeça, clara de ovo batida em neve e chocolatada pelas fuças. Ainda bem que, em meio àquela loucurada toda, sobrara um pouco de lucidez: respeitaram a criança, não nos atiraram à piscina, de roupa e tudo, assim como fizeram aos outros neófitos. Como recordação do acontecimento, nos brindaram com um diploma e nos conferiram um nome de peixe, nome a ser adotado, daí por diante, no reinado de Netuno. Para receber o diploma que seria entregue à noite, na festa do equador, a maior e a mais animada da viagem, com Netuno, seus ministros e sereias - todos a caráter -, desfiz minhas trancinhas, troquei as calças compridas por um elegante vestido. Não me demorei, recebi o batistério e voltei para a cabine em seguida. Minha aparição, assim de repente, no salão do navio, causara surpresa, não fui reconhecida por ninguém. Haviam pilheriado: "Teria a desconhecida embarcado naquele dia?", contou-me mais tarde a doutora rindo. MEU AVÔ PORTUGUÊS Dissera à dra. Janina que desejava dormir cedo. Minha intenção era aquela, mas iria mesmo dormir, na excitação em que me encontrava? Minha emoção às vésperas de conhecer Lisboa era grande. Realizava um sonho, cultivado desde criança. Meus laços afetivos com Portugal vinham de longe. Na escola, mesmo antes de aprender as primeiras letras, eu aprendera a amar Pedro Álvares Cabral. Apenas amar? Amar e muito mais. O hino de exaltação a Cabral e ao descobrimento do Brasil me empolgava. Verdadeira aula de patriotismo!: "Glória àquele varão que primeiro nossa terra do mar avistou...". O varão mencionado era Cabral, óbvio! E ele descobrira minha terra, o Brasil, certo? O fato de eu ser filha de italianos não me impedia de atribuir ao navegante português a razão da minha existência, minhas origens, minhas raízes, como se ele fosse meu ancestral, meu avô. Mas o hino não ficava ali, prosseguia: "Glória a quem o seu nome venera...". Eu levava o hino a sério, ao pé da letra, e, glorificada, mais do que amava, eu venerava o nome de Cabral. Uma única vez discordei da opinião de meu pai - menina acha que o pai sabe tudo, ninguém sabe mais do que ele -, achei que seu Ernesto não sabia nada ao vê-lo declarar que, antes de Cabral, outros navegantes haviam estado no Brasil. Cheguei quase a me sentir ofendida. Passara parte de minha infância a decorar e a declamar longos poemas anticlericais de Guerra Junqueiro; ouvia mamãe repetir trechos dos livros de Thomaz da Fonseca, escritor português, anarquista de longa tradição. THOMAZ DA FONSECA, PATRIARCA DO ANARQUISMO Certa vez, no Rio, depois de nosso regresso da Europa, tive a oportunidade de fazer uma surpresa a mamãe, dando-lhe ao mesmo tempo uma grande alegria, guardo a lembrança desse momento raro. Velho admirador da obra de Thomaz da Fonseca - da obra e do homem -, Jorge foi surpreendido um dia com a visita do ilustre escritor português, de passagem pelo Brasil. Os dois não se conheciam pessoalmente, embora fossem ligados por mútua estima; Jorge era amigo de seu filho Branquinho da Fonseca, conhecido pela sua posição de intransigente adversário do salazarismo; Branquinho, que muitos anos depois também nos visitaria, na Bahia. - Thomaz da Fonseca, o escritor? - perguntei quando, ao abrir a porta, ouvi o nome do visitante. Não havia dúvida, estava diante de um dos heróis de dona Angelina, nome tão presente na minha infância. Senti-me emocionada. Voltaram-me à memória as leituras de mamãe, um livro de Thomaz da Fonseca nas mãos a declamar, em voz alta, anarquismo para os filhos e para quem a quisesse ouvir. - Faça o favor de entrar. Diante de mim uma figura impressionante! Um Dom Quixote, alto, esguio, um homem fino e delicado, as longas barbas brancas quase a alcançar-lhe a cintura, um patriarca. Thomaz da Fonseca, à porta, sorria de meu indisfarçável assombro. Por feliz coincidência, mamãe passava uns dias conosco, chegara havia pouco de São Paulo. Encantada, senti um misto de alegria e de exaltação, antegozando a reação de dona Angelina quando soubesse da presença do escritor em nossa casa. Levei-o até Jorge, que o recebeu com grande efusão. Deixei-os conversando e fui buscar mamãe em seu quarto. Sem fazer qualquer preâmbulo, assim como quem não quer nada, chamei-a: - Venha comigo à sala, mamãe, venha cumprimentar Thomaz da Fonseca. Habituada ao meu espírito brincalhão, às peças que eu lhe pregava a cada oportunidade, dona Angelina voltou-se para mim, ar superior de quem diz: "nesta não caio", e atirou-me uma frase irônica: - Só isso? Thomaz da Fonseca, é? Não quer um tostão pela graça? Nada lhe respondi, apenas continuei, de mão estendida, convidando-a a me acompanhar. Num profundo suspiro de impaciência: "Ufa!", dona Angelina franziu o cenho: - Menina, menina! Não me provoque!... Não brinque comigo!... Insisti: - Vamos, mãe! Ela só deixou de duvidar ao ser apresentada, minutos depois, pelo genro - que foi ao quarto buscá-la -, ao homem das longas barbas brancas que, levantando-se educadamente, beijou-lhe a mão: - Thomaz da Fonseca, muito gosto em conhecê-la, minha senhora. Anarquista, sim, mas cerimonioso e cavalheiro como todo bom português - um fidalgo! Conversaram os dois durante largo tempo, com grande entusiasmo e maior satisfação. Estou certa de que o ilustre escritor saiu de nossa casa igualmente emocionado, comovido às lágrimas, depois de ter ouvido trechos de seus antigos livros recitados por aquela senhora tão simples, a sogra de Jorge Amado. PRESENÇA PORTUGUESA Personagem marcante de minha infância foi a transmontana dona Ana Maria, vendedora de galinhas, mulher sofrida e de grande coração. Dona Ana Maria costumava interromper suas andanças fazendo uma parada em nossa casa a fim de descansar no chão o pesado jacá que carregava às costas, seis dias por semana. Tomavam um café que mamãe lhe oferecia, dava água às galinhas - pobres aves sedentas, com seus bicos abertos, as línguas de fora, os olhos redondos piscando de medo, que pena me davam! - e nos deliciava com histórias ingênuas. Ficávamos cativados sobretudo pela sua maneira de falar, trocando os bês pelos vês, os is pelos us e vice-versa, a pronúncia quase incompreensível para nós. Eu adorava ouvi-la contar os detalhes do acidente que a tornara viúva, e, quando mamãe não estava por perto, eu lhe perguntava: - Como foi mesmo que seu marido morreu, dona Ana Maria? Com uma paciência infinita, ela me fazia a vontade e lá vinha a história sempre narrada com as mesmas palavras. Coisas tolas de criança mas que ficam gravadas para sempre, cheguei a decorar trechos do relato e nunca mais os esqueci. Mamãe me proibira: "Não fique aí a reavivar a dor da pobre...", mas eu bem percebia que ela também gostava de ouvir a história: - Era o meu marido e mais o marido de uma outra. Venderam as galinhas e se foram ao Trianon ver os bailarinos que acolá se armavam (ela se referia a um certo dançarino, Trevise, que, numa maratona espetacular, dançou sem parar, muitos dias e muitas noites, empolgando São Paulo, no salão de festas do Trianon, na avenida Paulista). O meu - continuava dona Ana Maria -, como era mui burro, pôs-se a contar o dinheiro em meio da avenida. Nisso veio aquilo que eu cá nem sei dizeire, e não tocou a gaita e lá se foi o meu... (A gaita em questão era, sem dúvida, a buzina do automóvel que matara o Manuel, seu marido.) Mas dona Ana Maria nos falava também, e sempre com saudades, de sua terra, de seu Trás-os-Montes, das vindimas, das uvas esmagadas com os pés, do vinho, do outono de árvores se desnudando, da neve no inverno... Com dona Josefina Strambi e sua irmã dona Luíza, ambas portuguesas, vindas meninas para o Brasil, vizinhas e amigas de toda a vida de minha família, aprendi muita coisa sobre Portugal. Dona Luíza gostava de cantar e com ela aprendi a canção da Maria da Fonte: Lá vem a Maria da Fonte, a cavalo sem cair Com uma corneta na boca, a tocar a reunir... Aprendi também canções dedicadas a São João: São João fez uma fonte, uma fonte toda de prata As moças não vão a ela, São João todo se mata. Ai ripinica, ripinica, ripinica, e São João a chorar em bicas... Essas canções, eu as repetia, cantando até ficar rouca, em torno das fogueiras da casa de dona Carmelina - portuguesa dos Açores, sogra de minha irmã Wanda -, onde os santos de junho eram festejados à portuguesa, com batatas e bacalhau assados na brasa e garrafões de vinho verde que se esvaziavam rapidamente. Rojões espocavam clareando o céu e, à meia-noite, começavam as sortes. As moças se afobavam preparando simpatias para santo Antônio casamenteiro, para são João das bem-casadas e para são Pedro, o santo das viúvas. Gastavam dúzias de ovos para saber do noivo tão esperado: as claras eram despejadas em copos d'água, postos no sereno. Pela manhã, era aquela alegria! Cada moça encontrava, na imagem - ou escultura? - em que a clara se transformara dentro da água, a resposta positiva a suas perguntas, na medida exata de seus desejos. Para dizer a verdade, eu nunca vi diferença naquela coisa - que chamavam de imagem - dentro de cada copo; para mim elas eram todas iguais: uma espécie de montanha branca. Mas as candidatas ao matrimônio viam as mais diversas coisas, cada qual com seu significado - corações e igrejas: casamentos à vista; mar encapelado: viagem próxima. Ninguém queria saber do cordeirinho branco, mau presságio: destino de solteirona. As irmãs de José Soares, marido de Wanda, se esmeravam nos doces, passavam dias e dias junto ao fogão, na preparação das queijadinhas, do arroz-doce decorado com desenhos de canela em pó, dos pastéis de Santa Clara, de toucinho-do-céu. Os rebuçados de Lisboa eram comprados, aos quilos, na Confeitaria Bussaco, onde seu Joaquim vendia doces portugueses de toda qualidade. Em casa de dona Carmelina aprendi com a garotada uma cantiga que muito me divertiu. Fui cantá-la em casa e mamãe se escandalizou. Proibiu terminantemente que eu a repetisse: "Isso não é coisa pra menina... Se fosse coisa boa, você não aprendia com tanta facilidade, não cantava com tanto entusiasmo...". Nunca esqueci a cançãozinha proibida e engraçada: Era uma velha que andava a varrer, e as badalhocas ao cu lhe bater e quanto mais a velha varria, mais as badalhocas ao cu lhe batiam... Não adiantou explicar a mamãe que cu em Portugal era bunda, segundo me haviam dito. Mamãe não se impressionou com minha explicação, continuou achando que a canção era porca e manteve a proibição. Ao saber de minha viagem e da escala que faria em Lisboa, meu cunhado José Soares me pedira que ao voltar lhe trouxesse um punhado de terra portuguesa. Minhas duas irmãs haviam casado com descendentes de portugueses. Paulo Lima, marido de Vera, era filho de mãe lusitana, e seu pai, dr. Artur Lima, se bem nascido no Brasil, estudara direito e se formara em Coimbra. Casara-se com dona Rita em Portugal e a trouxera para viver em São Luís do Maranhão. Muitos anos depois, divorciada do marido, dona Rita voltara a viver em Lisboa. O filho não a via fazia muitos anos mas tinha pela mãe verdadeiro culto. De tanto ouvi-lo elogiar as qualidades e as virtudes de dona Rita, quase cheguei a tomá-la por uma santa; ela se tornara figura de nossa intimidade e estima. Suas cartas ao filho eram sempre recebidas com ruidosa alegria; lidas em voz alta, provocavam lágrimas de saudades. Ao despedir-se de mim, Paulo Lima pediu-me que fizesse uma visita à sua mãe e lhe entregasse um pacote com presentes que ele e Vera lhe mandavam. Não havia dúvida, visitar dona Rita seria um prazer para mim. Imaginava a surpresa que lhe causaria, já que minha viagem não lhe fora comunicada. Pipo, mestre-cuca do navio, me faria companhia. Certamente eu dormiria mal naquela noite, à véspera da escala no porto de Lisboa; talvez nem dormisse, com tantos fatos a rememorar, tantos planos a fazer.