PREFÁCIO O nome e o sangue narra a história de uma manipulação genealógica destinada a esconder, no Pernambuco colonial, o costado sefardita de importante família local. Genealogia e genealogista são atualmente palavras que fazem sorrir complacentemente o leitor, sujeito de um ordenamento jurídico teoricamente igualitário, agente de uma economia de mercado teoricamente competitiva e motivado por uma escala de estima social em que o currículo profissional substituiu a carta de brasão. Que ele suspenda, contudo, o seu sorriso. Numa sociedade como a do Brasil colonial, para onde, como se não bastasse o pecado original da escravidão, se haviam transplantado os valores vigentes na versão ibérica das sociedades européias do antigo Regime, caracterizada pela fenda étnica, social e religiosa entre cristãos-velhos e cristãos-novos, a genealogia não podia constituir o passatempo inofensivo que é hoje. Ela era, na realidade, um saber crucial, pois classificava ou desclassificava o indivíduo e sua parentela aos olhos dos seus iguais e dos seus desiguais, reproduzindo assim os sistemas de dominação. O valor que legitima este saber, a "honra" ou "reputação", é objeto de abundante literatura desde os trabalhos de Américo Castro, cujo feitio ensaístico não nos deve induzir a descartar, como se costuma ultimamente, suas agudas percepções sobre o passado ibérico como produto da convivência e conflito de três castas (cristãos, mouros e judeus), embora, como ocorre muitas vezes a quem atina com uma idéia seminal, Castro tenha levado demasiado longe a utilidade explicativa da sua concepção, querendo nela incorporar mais história do que ela podia comportar. Parafraseando o que já se disse a respeito de Burckhardt, ele nos ensinou mais com seus grandes equívocos do que outros com suas pequenas verdades de filólogo. Desmontar o mecanismo de uma fraude genealógica, como se tenta fazer neste livro, é o gênero de investigação que, mais que nenhum outro, diz respeito a "um passado que se estuda tocando em nervos, um passado que emenda com a vida de cada um", "uma aventura da sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa nos arquivos", para usar a fórmula de Gilberto Freyre. Ao procurar reconstituir as tramóias que viciaram o processo de habilitação de Felipe Pais Barreto a cavaleiro da Ordem de Cristo, defrontou-se o autor, em primeiro lugar, com a questão do sangue judaico que corria nas veias de vários dos troncos que haviam povoado a nova Lusitânia, isto é, o Pernambuco que vai da fundação da capitania por Duarte Coelho à ocupação holandesa (1535-1630), tema prudentemente ocultado pelos genealogistas coloniais e ignorado pelos atuais e, em segundo lugar, com a necessidade de narrar a história da família a que Felipe pertencia pelo costado da sua avó materna, os Sá e Albuquerque, do engenho Santo André, cujo caráter paradigmático em termos da história genealógica da oligarquia pernambucana da Colônia e do império logo se impôs. Fundada por um colono meio cristão-novo, a linhagem ligou-se à prole de Jerônimo de Albuquerque, praticou a endogamia com os Pais Barreto e, em meados do século XVIII, recebeu o aporte de sangue plebeu de uma família de mercadores enriquecidos na terra. O nome e o sangue não é obra sobre cristãos-novos no Brasil colonial, tema que já mereceu a atenção de vários historiadores, embora o autor se tenha visto obrigado a algumas excursões pela documentação inquisitorial relativa a Pernambuco de finais do século XVI. A historiografia dos conversos vem, aliás, privilegiando, por moda ou bom tom intelectual, os contestatários, ou seja, os que continuaram a judaizar, recusando-se a se integrar plenamente na sociedade colonial. Destarte, comete-se a injustiça de esquecer os outros, mais numerosos, que se converteram ao catolicismo ou que aceitaram a conversão que os pais e avós haviam feito por eles. A história não se faz apenas com a elite dos rebeldes mas também com a multidão dos conformistas. O autor só pode esperar que se lhe perdoe a preferência politicamente incorreta por estes últimos, como também a opção por um estudo que, transgressão indesculpável para muitos, ocupa-se não das classes dominadas mas das dominantes, cuja análise detida, inclusive quanto ao seu recrutamento e composição, parece-lhe indispensável à compreensão do nosso passado regional. Pretende um lugar-comum - herança da historiografia oitocentista, mas nem por isso menos verdadeiro - que a história não se escreve sem documentos. Recordando-se da infância, Abraham Lincoln aludiu aos "uneventful annals of the poor", mas melhor teria dito "[unrecorded] annals of the poor", pois, como os ricos, os pobres também têm história, carecendo apenas de registro escrito. Glosando a conhecida observação de romancista norte-americano segundo a qual os ricos são diferentes dos pobres porque têm dinheiro, pode-se aduzir que também o são porque, ao menos antigamente, produziam bem mais documentos. Tanto pior para os historiadores, pois dada a disponibilidade atual das fontes é de duvidar que, no tocante por exemplo à escravidão nas áreas canavieiras do nordeste, eles possam oferecer muito além do que ofereceu Stuart Schwartz no seu livro admirável sobre o recôncavo baiano, verdadeiro vade mecum para quem quer que se interesse pela economia e sociedade açucareiras coloniais. O que remete a outro lugar-comum, não menos verdadeiro porém recente: o de que o documento é função do poder e instrumento de dominação. Os historiadores da velha escola pegavam o passado pelos chifres. A partir da certeza acerca da veracidade da fonte, esta como que se desvanecia, deixando o estudioso sozinho, frente a frente com a realidade nua e crua do que havia efetivamente ocorrido. Inocência epistemológica que se perdeu mercê do êxito do marxismo, da psicanálise e do estruturalismo, os quais, entre os historiadores e o passado, vieram interpor, como um biombo, a exasperante opacidade do texto. O autor também pede desculpas à voga do dia no Brasil por ter buscado recapturar a dimensão narrativa ostracizada pela escola dos Annales, mas a que, na verdade, sua revolução historiográfica veio enriquecer como que por tabela, ou em conseqüência do que seus discípulos mais aferrados à história das estruturas econômicas devem considerar um efeito perverso. Contudo, diante da página em branco e das suas notas de pesquisa, o historiador não tem como fugir ao dilema muito bem definido por um oficial de outro ofício, Lévi-strauss, quando assinalou que ele deve sempre optar "entre uma história que informa mais e explica menos e uma história que explica mais e informa menos", pois dependendo do nível em que se coloque "ele perde em informação o que ganha em compreensão e vice-versa". Em virtude dessa intenção narrativa, O nome e o sangue pode ser lido como uma parábola genealógica, tanto no sentido geométrico de trajetória quanto na acepção literária de conto moral. Deste, contudo, não precisa sair machucado o sentimento de família de ninguém, donde a escolha da epígrafe, o belíssimo soneto no qual d. Francisco de Quevedo aconselhava um amigo, que estava na posse pacífica da reputação de fidalgo, a não requerer d'el-rei a correspondente carta de brasão, de vez que a investigação de praxe, caso desvendasse a existência de ascendente queimado pela inquisição, transformá-lo-ia em outro Faetonte, que ardera sob o calor do sol de quem se tinha por filho. O poema encerra ainda hoje uma útil lição, na medida em que se recorra à genealogia com intenções vãs e não com a mera e natural curiosidade de saber de quem se veio. Ademais, se a historiografia deve ser um esforço sem concessão visando à desmistificação do passado, isso não significa que o historiador deva assumir uma atitude agressiva de pregador evangélico. À tarefa calha não a ira dos justos, não o historiador assepticamente colocado fora da história, mas a dose de empatia que lhe permita calçar os sapatos alheios para tentar compreendê-la por dentro, não pela graça de uma iluminação súbita que freqüentemente não resistirá à prova documental, mas mediante o convívio aturado com o passado. Trata-se daquele mesmo estado de espírito de Tito Lívio quando confessava que "ao narrar estas velharias [do passado republicano da Roma clássica] eu me torno, não sei como, o contemporâneo delas". Por fim, o trabalho deve ser levado a cabo sem hipocrisia. se a verdade, a da história inclusive, faz o homem livre, como o ar da cidade aos camponeses da idade média, nem por isso a mentira histórica é destituída de um charme secreto. Duas palavras sobre palavras. ao leitor que, como também o autor, não compartilha as escalas de estima social que vigeram em outras épocas solicita-se que, todas as vezes em que se deparar com elas, coloque mentalmente aspas nos termos relativos à limpeza ou pureza ou defeito de sangue, como também dos demais que igualmente destoem das categorias atuais em matéria de raça, classe ou religião. Se eles foram empregados neste livro foi precisamente no propósito de mergulhar neste mundo que já não é o nosso e cuja diferença pode chocar. O substantivo "mascate" e o adjetivo "mascatal" são utilizados não no sentido etimológico e ainda corrente, de bufarinheiro, mas no de comerciante recifense do período colonial, que era então pejorativo. Quanto ao vocabulário nobiliárquico (linhagem, estirpe etc.), não tem ao longo destas páginas qualquer conotação apologética, seu uso sendo meramente instrumental, de vez que a prática genealógica o impinge a quem quer que se aventure pelos seus labirintos sem querer dar-se ao esforço de inventar uma "terminologia neutra", que não feda nem cheire, se é que essa expressão possa jamais fazer sentido no campo das ciências humanas. O autor deve a J. A. Gonsalves de Mello o lhe haver chamado a atenção em madri, na primavera de 1977, para o processo de habilitação de Felipe Pais Barreto à Ordem de Cristo, processo consultado naquele mesmo ano no arquivo nacional da Torre do Tombo em Lisboa, sem que, contudo, o beneficiário da informação se tivesse dado conta do seu valor para o estudo da manipulação genealógica, que não estava então no horizonte dos seus interesses. Sylvio Pais Barreto poupou-o de se perder nos meandros oitocentistas da genealogia dos Sá e Albuquerque, que desnorteiam o incauto devido à presença na capitania e depois província de Pernambuco de duas famílias coetâneas com o mesmo sobrenome. Gilberto Freyre sustentava que os pesquisadores têm, além do anjo da guarda, um anjo da vanguarda, que os leva a tesouros insuspeitados. No caso do autor, o anjo foi antes o da retaguarda, que desempenhou a função igualmente importante de cobrir-lhe a retirada. Os historiadores padecem de um tipo de ansiedade que consiste em que o terreno não tenha ficado inteiramente limpo e que ainda subsista, escondido em algum desvão de arquivo, uma fonte por consultar, insegurança, aliás, bem pueril, pois como dizia Lucien Febvre ao jovem Georges Duby, que preparava sua tese sobre o Mâconnais na Idade Média: "não se preocupe; você não verá jamais todos os documentos, sempre haverá alguns que lhe escaparão". Quando o autor já concluía a redação de O nome e o sangue, o livreiro-antiquário almarjão, de Lisboa, que nada sabia a respeito, lhe mandou perguntar se estaria interessado no traslado de manuscrito do século XVIII relativo a famílias pernambucanas. era a genealogia dos Sá e Albuquerque escrita por Afonso de Albuquerque Melo e acompanhada dos comentários de um sacerdote da Congregação do Oratório, fonte desconhecida até mesmo pelo linhagista Borges da Fonseca e pelo cronista D. Domingos do Loreto Couto, também muito curioso desses papéis de família. Não era o documento ideal com que sonha todo historiador. mas qual deles o achará jamais? esta terceira edição de O nome e o sangue foi revista e atualizada. Lisboa,1989-Rio, 2008. PARTE I O CAPITÃO-MOR DO CABO I. 1700-7 O novo século, que era o XVIII, começou bem para o sargento-mor Felipe Pais Barreto, senhor do engenho Garapu no Cabo: sua majestade, que Deus guardasse como todos os seus vassalos haviam mister, concedera-lhe a mercê de cavaleiro da Ordem de nosso senhor Jesus Cristo, com 12 mil réis anuais de pensão efetiva. era a coroação de uma carreira que iniciara como soldado da tropa de primeira linha da capitania de Pernambuco e que prosseguira na milícia como capitão e sargento-mor das ordenanças da freguesia do Cabo, além dos cargos honrosos da gestão municipal de Olinda. Pelos estatutos da Ordem, cumpria-lhe agora passar pelas "provanças", isto é, a investigação sobre sua ascendência, destinada a averiguar se preenchia os requisitos indispensáveis, entre outros a limpeza de sangue. Só então Felipe tornar-se-ia freire, membro de pleno direito da instituição religiosa e militar fundada em 1315 por el-rei d.Diniz ao nacionalizar os bens que possuía em Portugal a Ordem dos Templários, extinta na França ao cabo de uma feroz perseguição contra o que constituía uma organização supranacional quase tão poderosa quanto o papado ou o sacro império Romano, numa era em que os nascentes estados territoriais já não queriam tolerá-las, em que a feudalidade cansara-se de combater os infiéis na Terra santa e em que o sonho de libertar os lugares sagrados da Palestina esvaíra-se como se esvaem os arcaísmos, quase sem ser sentido. Em Portugal, há muito, desde que no século XVI d. João III reunira em suas mãos o grão-mestrado das três ordens militares, Cristo, Aviz e Santiago, suas comendas e seus hábitos estavam reduzidos a meros instrumentos de clientelismo e de promoção social. Na segunda metade do século XVII e ao longo do XVIII, "muitos dos que se armavam cavaleiros [...] nunca tinham pegado numa arma para combater"; e muitos não possuíam sequer cavalo, malgrado as tentativas da Coroa, ainda durante a regência e o reinado de d. Pedro II (1668-1706), de fazê-la retornar à aspiração inicial de constituir uma força militar de reserva. A primazia da Ordem de Cristo sobre as duas outras era, aliás, incontestável em termos de estima social. A que maior honraria poderia aspirar o filho segundo de uma rica família colonial que deitara raízes em Pernambuco no terceiro quartel do Quinhentos? Nem a títulos nobiliárquicos, que não eram conferidos aos habitantes da América portuguesa, ao contrário dos da hispânica, nem sequer às rendosas comendas das Ordens, atribuídas, no caso do Brasil, apenas a alguns chefes militares da guerra holandesa. Felipe Pais Barreto ordenou portanto, a seu procurador em Lisboa (os homens principais da terra tinham sempre seu procurador na corte), que requeresse a abertura das provanças, que, consoante a praxe, deveriam ser realizadas no lugar de nascimento de seus pais e avós, todos naturais da capitania. Felipe era filho do 4o. morgado do Cabo, o capitão-mor Estêvão Pais Barreto, e de sua mulher, Maria de Albuquerque, um matrimônio endogâmico, de vez que seu avô paterno fora irmão do materno, de quem ele, Felipe, herdara o prenome. Na segunda metade do século XVII, generalizara-se na açucarocracia a tendência às alianças entre primos ou entre tios e sobrinhos. Felipe mesmo era casado com uma prima, margarida Barreto de Albuquerque, filha do sargento-mor Antônio Pais Barreto, mas seus avós Estêvão e Felipe ainda se haviam consorciado fora da parentela, o primeiro, com a filha de um reinol casado com mulher da terra; o segundo, com Brites de Albuquerque, por quem o escândalo chegou, descendente de um colono fixado na capitania no século XVI. Como informava Sylvio Pais Barreto,as presunções mais fortes indicavam que Felipe Pais Barreto fora o senhor do engenho Garapu, no Cabo. Embora o genealogista não tivesse encontrado "em nenhum documento clara informação sobre a posse do engenho Garapu pelo referido Felipe Pais Barreto", este, como se acentuou, fora casado com uma prima, filha única de antônio Pais Barreto, proprietário do Garapu e do Petimbu, a qual poderia ter levado de dote a primeira dessas fábricas. Tal suposição foi confirmada pela relação em que Cristóvão Pais Barreto de Melo narra sua participação na guerra dos mascates e em especial no socorro ao Recife, sitiado pelo partido da nobreza durante o governo do bispo Manuel Álvares da Costa. Relata Cristóvão que ao marchar com seu contingente de milícias para os Prazeres, fizera uma parada no "Garapu, engenho de Felipe Pais, a quem achamos". É provável ademais que Felipe Pais Barreto tivesse herdado do pai, o segundo e já aludido estêvão Pais Barreto, o engenho Pirapama, também localizado no Cabo. Havendo Estêvão sucedido no morgadio o irmão que falecera sem descendência, entrara na administração dos engenhos Velho e da guerra, transmitindo a Felipe, seu filho segundo, o Pirapama, de vez que o primogênito, João Pais Barreto, passara a ser o herdeiro presuntivo do vínculo. A favor dessa hipótese há o fato de um genro de Felipe encontrar-se à frente do Pirapama em meados do século XVIII. Segundo Afonso de Albuquerque melo, a Estêvão teriam pertencido nada menos de sete engenhos (o que não significa que os tivesse possuído simultaneamente), ademais de "toda a freguesia de una, muito ouro, prata, gado e escravos; destes, por sua morte, se acharam mais de trezentos", "fazendo-o Deus, entre seus parentes ricos, o mais rico". Felipe nascera portanto em berço esplêndido. Por fim, Felipe será designado pela tia, Brites Barreto de Albuquerque, viúva de d. João de Souza, administrador do engenho são Francisco ou dos algodoais (Cabo), que, com outros bens do casal havia sido legado ao hospital do Paraíso, no Recife, administração que além de proporcionar a Felipe uma pensão anual ele poderia transmitir aos herdeiros. O engenho Garapu, cuja capela, com seu alpendre de três águas, ainda está de pé, fora originalmente uma das dez fábricas fundadas pelo tronco da estirpe, o velho João Pais Barreto, o primeiro colono a concretizar a aspiração, dificilmente realizável, de uma açucarocracia prolífica: a de deixar um engenho a cada filho. Joaquim Nabuco, seu descendente pelo lado ma terno, orgulhava-se do ancestral rico, de quem, no fim da vida, diria dever a atração atávica pelas paisagens do rio Lima. Natural de Viana (Minho), oriundo da pequena nobreza municipal, João Pais veio para Pernambuco por volta de 1557, com apenas treze anos, um dos muitos rebentos que os morgadios minhotos destinavam inexoravelmente à aventura ultramarina. Tendo participado das expedições contra os índios da mata sul da capitania, tocou-lhe em recompensa uma sesmaria na várzea do Pirapama, no Cabo de santo agostinho. nela e noutra data de terra na ribeira do una ergueu oito ou dez engenhos, que legou aos filhos após ter instituído em favor do primogênito o morgadio de nossa senhora da madre de Deus (1580), ao qual vinculou o engenho Velho; anexo a este, o da guerra coubera ao primeiro morgado como seu quinhão da herança. João Pais casou na terra com Inês Guardês de Andrade, filha de senhor de engenho na várzea do Capibaribe. Através dessa ascendente já pernambucana procedia o remoto sangue indígena que ainda no século XVIII atribuía-se à família Pais Barreto. Duzentos anos depois, uma descendente do casal recolheu a tradição e o texto de carta régia, quem sabe apócrifa, que a autorizava a usar o título de dona, então reservado às mulheres de qualidade mas que já começava a ser empregado sem licença régia. Como ela se recusasse a ser assim tratada, "dizendo o não admitiria sem ser concedido por el-rei", obteve-o o marido para lhe fazer as vontades. "Não falta quem diga [comentava Afonso de Albuquerque melo] foi isto [...] uma vaidosa presunção, porém os menos críticos têm que fora uma prudente e modesta singeleza". Apesar de acaudalado, João Pais foi homem terra-a-terra e morreu em odor de santidade, ganhando a distinção de ingressar no hagiológio de varões santos ou virtuosos de Portugal e de suas conquistas que Jorge Cardoso escreveu em meados do século XVII. Para a fama de piedoso concorreu sobretudo o ter sido provedor e grande benfeitor da santa Casa de misericórdia de Olinda. Filho segundo, Felipe Pais Barreto assistiu a chefia do clã e a parte do leão do patrimônio familiar irem parar nas mãos do primogênito, seu irmão João Pais Barreto, 5o. morgado do Cabo. O 1o. morgado, João Pais Barreto, o moço, para distingui-lo do pai, o velho João Pais, morrera sem descendência, passando o vínculo ao irmão Estêvão. O primogênito de Estêvão tampouco teve filhos, de modo que novamente o morgadio ficou para o segundão, também chamado Estêvão e pai de nosso Felipe. Estêvão II colocou no seu primeiro filho o nome ritual do fundador da estirpe. Este 4o. João Pais e 5o. morgado do Cabo ainda teve tempo de casar e de procriar em detrimento de Felipe, antes de ser assassinado por causa de adultério com mulher principal da terra. Felipe foi portanto preterido pelo sobrinho, o 5o João Pais e 6o. morgado. Um psicanalista não perderia a ocasião de explicar por essa frustração a atitude ambivalente de Felipe durante a guerra dos mascates, quando seria severamente criticado por se reconciliar com os assassinos do irmão. [...]