1. O PASSADO E O FUTURO NUMA COISA SÓ SÉRGIO O gato é um dos bichos mais vulneráveis da natureza. Uma simples mudança de ambiente faz as defesas do organismo despencarem. Uma dose da vacina contra raiva pode ter como efeito um tumor. Um gato pode ser morto por uma aspirina, fechar a glote se comer certas plantas, ter convulsões se ficar trancado por uma hora num banheiro limpo com Pinho Sol. Quando você põe um gato no colo, sente o coração dele batendo rápido, como se pressentisse todas essas formas de perigo, mas eu ainda não tinha consciência disso quando segurei Valesca pela primeira vez. Eram menos de dois quilos na minha mão, uma altura desproporcional ao tamanho do corpo, um filhote sem unhas, sem dentes, a barriga mole. Valesca foi um presente de Márcia. Ela insistiu que me faria bem. Márcia sempre insiste, mesmo quando você deixa claro que não está disposto a ouvir, que não tem mais paciência para alguém dizendo, na porta da sua casa, segurando uma gaiola, vestida daquela maneira, que os primeiros dias seriam uma adaptação mútua. Ela falava de Valesca enquanto eu só conseguia pensar, não acredito que isto está acontecendo. Eu costumava dizer ao abrir os olhos, era como uma resolução diária, é preciso entrar no chuveiro e fazer a barba e pôr o mesmo casaco para enfrentar aqueles vinte e cinco alunos, mas pelo menos eu tinha certeza de que na volta estaria tudo em ordem, e eu poderia jantar em silêncio e ler e dormir. Eu não tinha interesse nenhum por animais, eu me arrepiava só de pensar na maneira como um animal se limpa, naquelas caixas de areia que as pessoas têm em suas cozinhas, na indulgência das pessoas diante de um gato, pessoas que não têm amigos, que tratam o gato como um bebê, mas por educação ou preguiça ou inércia acabei concordando com Márcia, e deixando ela andar pelo apartamento com Valesca, e falar com ela no tom infantil dos veterinários, agora estou feliz porque tenho uma casa e um dono. Muito tempo se passou desde aquele encontro, e parece que estou falando de outro mundo, eu como outra pessoa oferecendo chá para Márcia. Ela continuava imitando Valesca, você precisa me dar banho e colo, botar um laço no meu pescoço, e eu ainda achava que poderia resolver tudo de maneira simples, um telefonema dali a alguns dias, não posso cuidar de um gato, não tenho condições de cuidar de ninguém. Era uma sexta-feira, esta história não era nem sombra do que se tornaria em breve, mas enquanto servia Márcia eu ainda era capaz de me iludir, de ser gentil como se aquela fosse uma situação comum, e não o momento em que a única saída é dizer: nunca mais apareça na minha frente. MÁRCIA Não é fácil admitir que as coisas cheguem a esse ponto. Mas o fato é que sempre chegam. Eu sei que não poderia ter bebido, não numa situação daquelas. Mas naquela noite eu não pude evitar. Eu estava nesta festa, quase todos lá eram professores. Quase todos pareciam saber de mim, era como se todos estivessem cochichando a respeito na sala, nos banheiros, todos me vigiando enquanto eu me servia de uma dose de vodca. Eu bebi a segunda, depois a terceira, aí não aguentei mais e tive de sair dali. Eu inventei a desculpa que me ocorreu na hora, disse que não estava me sentindo bem, que precisava ir para casa, ficar sozinha um pouco, e então fui ao encontro dele. SÉRGIO Depois da visita de Márcia, eu passava os dias olhando para o gato. Ali estava eu, aos quarenta anos, porque é assim que acabaram todas as pessoas que conheço, um apartamento recém-alugado, um boxe de cortina no banheiro, uma conversa sobre o que fazer com o fato de ter lido os russos e franceses e apesar disso almoçar num bufê por quilo, e tomar café num copo plástico enquanto espera na fila do caixa, e depois escrever artigos e corrigir provas e preparar seminários para vinte e cinco pessoas que só querem se livrar de você. Eu passei a observar Valesca, a maneira como um gato se ocupa. A veterinária diz que eles dormem dezesseis horas por dia. O resto do tempo é uma grande investigação: os mistérios por trás de um elástico, de um inseto que pousa na janela. Valesca foi o pretexto para que Márcia voltasse a me procurar. Ela dizia que tinha comprado um remédio, uma pasta de malte para que o gato não vomite o próprio pelo, e em seguida perguntava dos meus planos para o sábado, eu faria o de sempre, passar a tarde escrevendo e abrindo a geladeira. Um sábado no novo apartamento era um monólogo sobre dor de estômago ou o conserto de uma dobradiça, e Márcia associava o fato de eu não sair de casa com uma certa disponibilidade para o mundo, como se tudo que eu esperasse fosse outra vinda dela, apenas uma passada para explicar como um gato é medicado. Você põe o remédio no dedo. Você espalha na pata do bicho. É automático: ele vai passar os próximos cinco minutos se lambendo, cada fio, cada naco. Márcia costumava manter distância ao chegar na minha casa. Aos poucos ela se aproximava, como numa dança de poltronas, até sentar ao meu lado e observar em silêncio aquela fraqueza do gato. Um bicho que sucumbe a uma armadilha simplória, traído por sua própria biologia, e Márcia deixaria Valesca terminar antes de dizer: imagine se alguém puser outra coisa na pata. Imagine se alguém botar purgante. Imagine se puser veneno, se o veneno tiver gosto de peixe, a comida preferida de um gato, aquilo que um gato passa a vida inteira buscando, e nesse momento a voz de Márcia seria outra e ela chegaria mais perto e quando eu me desse conta já estaria encostada em mim. MÁRCIA Ele não sabia como era depois dos nossos encontros. Ele nunca se interessou pelo que eu dizia em casa, uma santa tomando vinho e atravessando as noites em que eu até parecia outra, e não a mulher que faz o que faz à tarde. Eu tinha trinta anos e me sentia exausta, o tempo passa muito rápido, meu corpo não é mais como antes, meu cabelo não é, minhas pernas não são, mesmo que eu ainda viva sendo olhada pelos homens, como todos naquela festa, todos os dias, em todo lugar, os homens que suam e grudam e cospem e usam terno e gravata. Eu devia achar ótimo me ver livre disso, mas não consigo. Tudo o que sinto quando penso nisso é raiva. A mesma raiva que tenho de Sérgio. A raiva com que cheguei à casa dele no dia da festa. A raiva por ele me receber daquele jeito. Sérgio abriu a porta como se estivesse fazendo um favor. Como se a única responsável fosse eu. Naquela noite foi como se eu me olhasse de fora, ela merece ser tratada assim, ela não vale mais do que isso, o que ele sabe que sou, um pano velho que só deixa de ser pano velho se disser uma frase. SÉRGIO Minha relação com Márcia não é exatamente comum, qualquer um pode perceber. Sou escritor, gosto de ler e ficar sozinho, e isso é sempre interpretado como indiferença ou desprezo. Imagine para alguém como Márcia. Eu sempre tomo cuidado com gente assim, os que atraem você com uma fachada pacífica, inicialmente amigável, simpática, disposta, mas que em seguida passam a exigir que você tome conta deles, e acusam você por tudo de ruim que acontece com eles, como se você dependesse disso e esperasse por isso fingindo estar quieto, esquecido, na tocaia para ganhar um presente que inicia todo o ciclo de novo. Apenas um gatinho, claro. Nada que você possa largar na portaria, que se esgote num telefonema de agradecimento. Um gatinho renderá por dias, sempre uma desculpa para trazer ração, xampu, um carpete para afiar as unhas, uma nova coleira antipulgas cujo pacote ficará fechado na cozinha enquanto levo Márcia para o quarto sem nenhuma resistência. É como se aquilo tudo estivesse planejado desde as primeiras visitas, eu atraindo a presença dela com sugestões de novos encontros, novas conversas, tudo para que se sinta à vontade e leve o jogo adiante. Márcia sempre leva. Sempre há uma noite em que isso acaba acontecendo. É uma noite em que estou em casa, me preparando para deitar quando a campainha toca. Eu sei na hora que é ela. Até que eu abra ela não tira o dedo do botão. Eu me espanto ao ver o estado dela, Márcia entra já trocando as pernas, na defensiva porque veio de um encontro com professores, de uma festa, um inferno qualquer de onde ela saiu para me dar a notícia de que estava grávida. MÁRCIA Então a culpa passa a ser inteira minha. Sérgio me olha com espanto, mas sabe direitinho como agir. Alguém acha que ele faz escândalo? Que levanta a voz? Claro que não, esta não é a hora para isso. Ainda não é a hora, e por isso ele diz para eu ficar calma, e me oferece um chá, e enquanto ele vai até a cozinha eu tenho cinco anos de idade e preciso ser cuidada pelo meu papai, Sérgio de bermudas, sem camisa, mexendo na geladeira e nos armários, fingindo que procura uma xícara. Papai ganha tempo porque sabe que é o melhor a fazer. A cada minuto cresce o poder dele sobre mim. É tudo o que ele queria, a chance que estava esperando, e ele volta para a sala e agora não há nenhuma dúvida no rosto dele. A máscara dele já voltou agora. Sérgio é de novo o homem que conheço, aquele que vive para isso, que sente prazer com isso, o homem que vai ser capaz de sentar ao meu lado, de também se servir de chá, de tomar goles sem pressa e esperar que eu me sinta segura antes de olhar para mim e dizer que tem um plano.