PARIS, 6 DE SETEMBRO DE 1984 Três pancadas no chão, secas e compassadas, precederam a voz forte e solene do huissier a anunciar: "Monsieur le président de la République!". Quem conversava deixou de conversar, quem andava parou de andar, fez-se silêncio. Ao fundo do salão denominado Jardin d'Hiver - devido talvez ao imenso teto de vidro a cobri-lo -, abriu-se uma porta de par em par, e por ela o presidente François Mitterrand entrou, passos lentos, rosto pálido. Aproximou-se do microfone instalado no salão iluminado pela claridade do dia a atravessar a transparência do vidro. Nessa tarde de outono, no Palais de l'Elysée, o presidente da França faria a imposição da Legião de Honra, no grau de comendador, ao brasileiro Jorge Amado. Amigos e admiradores do escritor, convidados para a cerimônia, lá se encontravam sem faltar nenhum. Mesmo quem estava distante de Paris veio, como foi o caso de Georges Moustaki, compositor e cantor, amigo fraterno de Jorge que, ao receber o convite, interrompeu a tournée que realizava nos confins do oceano Índico, na ilha da Reunião, tomou um avião e chegou a tempo de assistir à solenidade. No começo daquele ano o presidente Mitterrand outorgara a comenda da Legião de Honra aos romancistas Alberto Moravia, Jorge Amado, Norman Mailer e Yachar Kemal, e aos cineastas Federico Fellini e Joris Ivens, uma constelação. Em janeiro de 1948, premido por circunstâncias políticas, Jorge fora constrangido a sair do país. O Brasil sofria um retrocesso na vida política. A democracia conquistada a duras penas, após dez anos de ditadura, escapava-nos entre os dedos. O Partido Comunista Brasileiro, ao qual na ocasião Jorge era filiado, obtivera sua legalidade em princípios de 1945 e concorrera em dezembro do mesmo ano às eleições, elegendo um senador, dezesseis deputados à Assembleia Nacional Constituinte, entre os quais Jorge, eleito por São Paulo. A legalidade do partido, no entanto, durou pouco mais de dois anos; seu registro foi cassado em 1947 e, em consequência, seus representantes no Senado, na câmara federal e nas câmaras estaduais tiveram seus mandatos também cassados em janeiro de 1948, após longa e dura batalha parlamentar. As perseguições não se fizeram esperar, ameaçando ainda uma vez a liberdade de Jorge, preso várias vezes anteriormente, não lhe dando outra opção senão a de sair do Brasil. Escolheu a França para viver, país que aprendera a amar através de sua literatura, país da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Não pude viajar com ele: acabara de dar à luz, João Jorge estava apenas com um mês, não tinha condições de sair mundo afora. Aguardei no Rio de Janeiro a hora certa de ir ao seu encontro. Moramos em Paris quase dois anos, vivíamos felizes até que um dia, sem essa nem mais aquela, fomos postos para fora; nos retiraram o permis de séjours e nos deram quinze dias para deixar a França. Não houve explicações, indesejáveis não merecem explicações. Estávamos em plena Guerra Fria,e intelectuais de esquerda, como, por exemplo, o poeta Pablo Neruda, os cientistas Mário Schenberg e Jacques Danon, e o pintor Carlos Scliar, sofreram igual violência, postos para fora. Não eram bem-vistos pelo governo francês de então. Durante dezesseis anos o nome de Jorge Amado figurou na lista negra, lista dos perigosos, em todas as fronteiras da França, proibido de entrar no país, impedido de caminhar pelas ruas de Paris, cidade de sua paixão. A interdição foi revogada nos começos de 1965, graças à intervenção do escritor Guilherme Figueiredo - então adido cultural do Brasil na França -, que levou o fato ao conhecimento do ministro da Cultura, André Malraux. Ao ser informado da medida discriminatória imposta ao escritor e militante da causa da paz durante a Guerra Fria e o macarthismo, Malraux, escandalizado, tomou providências imediatas para que fosse anulada a interdição. A partir daquele ano, as portas da França se abriram novamente para Jorge Amado e sua família. A cerimônia no Elysée começara. Jorge não escondia sua emoção. Extremamente comovida, também eu não conseguia desviar os olhos de seu rosto, adivinhando o que lhe ia no coração. De repente nossos olhares se encontraram e sorrimos. Para ele e para mim, aquele ato tinha um significado muito especial: naquele dia, somente naquele dia, ali na solenidade festiva, em meio a tanto carinho, se daria a reparação pública e completa da injustiça e da violência que sofrêramos nos fins de 1949. Ao condecorar Jorge Amado com a Légion d'Honneur, no alto grau de comendador, o presidente Mitterrand referiu-se, com duras palavras de condenação, à arbitrariedade de que fora vítima o escritor, proclamando-o mestre do romance contemporâneo, grande e provado amigo da nação francesa. "ÇA ALORS!..." Na atropelada partida de Paris não tivemos tempo para nada. Nem tempo e nem condições de desmontar nosso apartamento no Hotel Saint-Michel. Era impossível embalar, assim de repente, tanta coisa acumulada durante dois anos... Mas arrumações, embalagem e transporte não chegaram a nos preocupar: conduziríamos conosco o que pudéssemos para a Tchecoslováquia, nosso destino, neste segundo exílio. Misette arrumaria tudo o mais, calmamente, após a nossa partida, e levaria com ela, dias depois, na viagem de trem Paris-Praga. Pessoa de confiança e da nossa maior estima, Misette morava em nossa companhia, cuidando de João, havia mais de um ano, e, sem dúvida alguma, nos acompanharia para onde quer que fôssemos. Tudo estava acertado. Quando Misette foi ao consulado tcheco apanhar seu visto, voltou aflita: o visto de entrada na Tchecoslováquia lhe fora negado. "Ça alors! Ça alors!...", re-petia a moça, sem encontrar outra expressão para extravasar a sua revolta. Ao pedir uma explicação ao funcionário tcheco que a atendera, obtivera uma resposta seca, sem margem de encompridar conversa: "Estão suspensos, até segunda ordem, vistos para cidadãos franceses". Por essa não esperávamos. E se Jorge fosse pessoalmente à embaixada e recomendasse Misette? Talvez dessem um jeito... Foi o que ele fez, e então soubemos que a atitude do governo tcheco era tomada em represália à do governo francês, que vinha negando vistos a cidadãos tchecos. A medida era estrita, em Paris não havia jeito a dar. Jorge devia tentar em Praga. Hóspedes da União de Escritores Tchecos, fomos recebidos no aeroporto, em Praga, por um grupo de escritores, entre eles Jan Drda, nosso amigo e presidente da entidade. Kuchválek, companheiro desde a primeira visita à Tchecoslováquia, nosso tradutor, também lá estava, firme. Mesmo antes de irmos para o hotel, Jorge apresentou-lhes o problema de Misette, e ficou acertado que a União de Es cri tores cuidaria do assunto. Passamos uma semana em Praga antes de nos instalarmos no Castelo dos Escritores, junto a uma pequena cidade, Dobris, a uns quarenta e tantos quilômetros de Praga. HISTÓRIA MADURA O outono partira, o inverno chegara, a neve caía e cadê o visto de Misette? A União de Escritores nada pudera fazer e, a conselho de Kuchválek, Jorge encaminhou o pedido, numa carta, à autoridade que poderia resolver o problema. A carta foi entregue e passamos a aguardar a resposta. No silêncio do castelo imenso e deserto, livre de telefonemas e de visitas, isolados do mundo, Jorge começara a escrever um romance. Ainda em Paris ele me falara nesse projeto: "O livro está maduro em minha cabeça...". Tema palpitante, Os subterrâneos da liberdade contaria da luta do povo brasileiro contra a ditadura do Estado Novo, ditadura cujas consequências Jorge sofrera na própria carne, problema que vivera intensamente. Tratei logo de conseguir uma máquina de escrever, indispensável para o meu trabalho de passar a limpo e tirar cópias dos originais do livro. Mas, ao sentar-me pela primeira vez diante da máquina emprestada, me senti perdida. O danado do teclado, além de ter as letras em posições diferentes daquelas a que eu estava habituada, não possuía til nem cê cedilhado, substituídos por outros acentos estranhos à nossa língua. Até conseguir dominá-la eu ia ter que apanhar muito. O pior eraque eu só podia trabalhar à noite, depois de adormecer João, já cansada de correr atrás dele o dia todo. Misette me fazia falta, e enquanto ela não chegasse eu teria que me virar sozinha. Chovesse ou fizesse sol - e fazia muito frio no início daquele inverno -, eu pulava da cama ao primeiro resmungo de meu filho, habituado a acordar cedo. Rápida, tratava de vesti-lo e saíamos do quarto num passo de gato, evitando fazer barulho para não despertar o pai, muitas vezes varando a noite no trabalho. Nas andanças com João Jorge por ali tudo, fui tomando intimidade com o castelo, descobrindo seus segredos, seus meandros; já identificava seus habitantes, conhecia mais de perto a cidade. FIM DE OUTONO Certa manhã, ainda no fim do outono, ao voltarmos do passeio habitual no bosque, nos deparamos com uma grande movimentação no jardim. Sob o olhar vivo e atento de Marvan, gerente do castelo, homens carregando tábuas, munidos de martelos e pregos, pregavam as tábuas em torno das esculturas de pedra que enfeitavam o jardim. Em três tempos, o enorme touro atacado por cães, os cavalos, a figura de Hércules exibindo sua força e os anjos sobre pedestais nos topos das escadarias desapareceram dentro dos imensos caixões que iam sendo fabricados, com uma rapidez incrível, pelos competentes operários. De repente tudo ficou triste e desolador com aqueles monstrengos levantados em meio aos canteiros, canteiros ressentidos pelo frio, despidos de plantas e de flores. Não consegui descobrir o que significava aquele rebuliço no jardim; Marvan não falava outra língua a não ser o tcheco, e sua habilidade na mímica não era das mais brilhantes. De Marvan não arrancaria nada, devia bater noutra freguesia se quisesse matar minha curiosidade. Divisei ao longe o velho Otokar Suhy caminhando lentamente, apoiado na bengala, na sua costumeira elegância, de sobretudo preto, chapéu de aba reta, as longas barbas brancas. Otokar Suhy chegava na hora certa. Não tive paciência de esperar que ele se aproximasse; fui ao seu encontro. O velho então me contou que a revolução no jardim se repetia todos os anos, no início do inverno, antes que a neve tombasse; providência tomada a fim de evitar rachaduras nas esculturas, decorrentes do frio e do contato com a neve. Aposentado, homem fino, o velho Otokar exercera, quando jovem, funções diplomáticas em Paris, o que lhe rendera um francês impecável e maneiras cavalheirescas. O velho escritor - ele escrevia livros infantis - residia em Praga mas costumava passar os meses frios de inverno no Castelo dos Escritores, onde teria calefação garantida. O carvão andava escasso e racionado em todo o país, e quem dependesse do aquecimento de radiadores a carvão não podia contar com calor permanente; já o zámek - castelo, em tcheco - era quase todo equipado com chauffage central. Eu nunca ousei perguntar ao meu fidalgo amigo a sua idade, mas comentava-se que ele já passara, havia muito, dos oitenta anos. Nos encontrávamos em passeios matinais e trocávamos gentilezas. O velho era a minha tábua de salvação, sempre às ordens para servir de intérprete e explicando-me coisas que por vezes me intrigavam.