Por Mauricio Santana Dias*
Chico Buarque lança um romance feito a partir de suas lembranças de infância, quando morou em Roma com a família entre 1953 e 1954. A história começa com a partida dos Buarque de Holanda do porto do Rio de Janeiro para Gênova, travessia marcada por sucessivos vômitos do menino Chico no tombadilho do Giulio Cesare, em parte pelo mal de mar, em parte pela ânsia do desconhecido.
Todo o romance é narrado com grande atenção aos detalhes espaciais, como se a memória ganhasse forma ao se fixar em lugares, objetos, gestos. O apartamento da Via San Marino 12, no bairro do Corso Trieste, é descrito de modo a dar o tom de todo o livro: “Ao rés do chão de um prédio amarelo de quatro andares, o apartamento 2 era antiquado, sombrio, e estava gelado porque tinham se esquecido de ligar a calefação […] Estava tudo confuso na minha cabeça, endereços se misturavam nos meus sonhos, e mesmo acordado permaneci num ambiente de sonho por um bom tempo”.
Uma vez instalada, a família começa a viver o cotidiano: o pai dando aulas na Universidade de Roma, os filhos estudando em escolas americanas, a mãe a cuidar da casa com a ajuda de uma empregada sarda — e todos observados pelo olho atento do menino Chico, que logo arranja amizades e se apaixona por uma garota.
São muitas as histórias que se cruzam neste breve romance, histórias que se passam dentro e fora da casa. As fantasias de criança, as paixões, o futebol e a bicicleta vão sendo marcados em contraponto pelos casos de morte: Stálin e Vargas, o corpo explodido do papa Pio XII e o assassinato de Wilma Montesi, famoso caso daqueles anos. Mas, como não podia deixar de ser, os fatos se misturam à ficção: “eu não conseguiria descrever honestamente o que se passava à minha volta no dia a dia, pois mesmo as memórias mais recentes seriam retocadas à medida que eram escritas. Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho. No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido”.
Nos últimos capítulos, um Chico na maturidade decide voltar a Roma para visitar a casa e o bairro onde tinha vivido aos dez anos de idade, e o choque entre esses dois tempos, que são dois mundos, provoca no leitor um estranhamento quase fantasmagórico. Trata-se de um duplo retorno ao passado: como memória voluntária de quem conta a história de infância e como quem volta, no presente, ao quarteirão romano onde viveu décadas antes.
“Meu sonhado livro de memórias poderia ser bem isso, um papel de parede reproduzindo o que ele ao mesmo tempo esconde”, anota o narrador, que lamenta não sem humor: “Minha irmã mais velha morreu sem saber que a espiei pelo buraco da fechadura”.
Bambino a Roma retoma, depois de dez anos, uma linha ficcional que tinha sido aberta por O irmão alemão, inclusive na “italianidade” do autor (lá, a mãe do protagonista era uma italiana). Nesta nova escavação da história familiar, porém, são as fantasias e pulsões da infância que sobressaem, revelando talvez o avesso da vida.
Bambino a Roma tem nas memórias de Chico Buarque a matéria-prima para sua ficção (foto: Desenho Editorial)
*Mauricio Santana Dias é tradutor, mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (USP), e pós-doutor em Italianística pela Università degli Studi di Roma La Sapienza. Suas traduções de O mal obscuro e 40 novelas de Pirandello foram finalistas do prêmio Jabuti. Em 2008, o volume 40 novelas de Pirandello (Companhia das Letras) recebeu o Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional.
Sobre Chico Buarque
Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1944. Em 1946, mudou-se com os pais, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e Maria Amélia Cesário Alvim, e os irmãos para São Paulo, onde o pai passou a atuar como diretor do Museu do Ipiranga. Em 1953, Chico e a família se mudam novamente, dessa vez para a Itália, onde moram por dois anos.
Compositor, cantor e ficcionista, é autor das peças Roda viva (1968), Calabar, escrita em parceria com Ruy Guerra (1973), Gota d’água, com Paulo Pontes (1975), e Ópera do malandro (1979); da novela Fazenda modelo (1974) e do livro infantil Chapeuzinho amarelo (1979). Ao publicar Estorvo (1991), seu primeiro romance, Chico se consagrou como um dos grandes prosadores brasileiros. Dele, a Companhia das Letras lançou Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009), O irmão alemão (2014), Essa gente (2019) e Anos de chumbo e outros contos (2021). Em 2019, venceu o prêmio Camões pelo conjunto da obra.