“A vida irá, você vai ver
Aos poucos te ensinando
Que o certo você vai saber
Errando, errando, errando”
Os versos são da música Errar é humano, de Toquinho. É uma pena que Theo, personagem do livro Errinho, errão (Brinque-Book, 2024), de Estevão Azevedo, talvez não tenha escutado essa canção. E se escutou, talvez não tenha prestado atenção nos versos ou compreendido que errar é algo bem comum na nossa espécie. E que o melhor a fazer, quando percebemos o erro, é não apenas aceitá-lo, reconhecê-lo e tentar corrigi-lo - quando possível for. Mas, principalmente, olhar de frente para a a falha que cometemos e pensar: o que eu posso aprender com isso?
Em Errinho, errão (Brinque-Book, 2024), de Estevão Azevedo, um errinho vai puxando outro erro, depois outro, até que a situação fica insustentável
No livro, o menino percebeu que adotar um bichinho de estimação, sem a permissão de sua mãe, não tinha sido lá uma ideia das melhores e que poderia causar muitos problemas. Porém, em vez de corrigir o erro, conversando com a família, ele tentou encobrir o bicho - que nada mais era do que um grilo encontrado no jardim - com outro erro ainda maior, outro bicho que causou ainda mais confusão. E depois outro... e outro... e mais outro. Um errinho virou uma bola de neve - ou de pelos e penas. Tudo isso porque em vez de abrir o jogo e encarar o primeiro erro de frente, o menino preferiu esconder o que fez - e a situação foi ficando cada vez mais complicada.
Essa divertida história acumulativa, indicada para crianças a partir de quatro anos, pode ser uma boa desculpa para conversar com os pequenos sobre formas de lidar com os erros. Valorizá-los, como ferramenta de aprendizagem, pode ser muito mais simples do que sentir vergonha, tentar escondê-los ou querer resolver uma situação muito difícil sem contar com a ajuda de quem mais amamos.
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As crianças precisam errar, sim
Se a gente só aprende o que que é certo errando, como canta Toquinho, as crianças precisam errar. Por si mesmas, lidando com as consequências de suas escolhas. E assistir a isso pode ser muito difícil para pais e cuidadores - afinal, ninguém quer que o filho sofra, se frustre ou se machuque.
Quantas vezes mães e pais são taxados de chatos por insistirem em cuidados básicos? Um clássico é o "Filho, põe uma blusa que está esfriando". Atire o primeiro casaco quem nunca teve que vestir praticamente à força uma criança que se recusava a colocar uma peça mais pesada de roupa.
É claro que crianças pequenas não têm condições de decidir o que vestir - e nem de saber o que é frio. Mas muitas vezes esse cabo de guerra entre clima e vestuário adequado se arrasta por anos nas famílias. E talvez só acabe no dia em que a criança ou adolescente realmente passar frio e entender que não era chatice, mas um cuidado dos pais. Sim, talvez, seja preciso sentir o corpo tilitando para aprender na prática a consequência de não estar com um traje apropriado para o clima.
No livro, Theo tenta esconder um erro, cometendo outros, ainda maiores - e mais barulhentos, bagunceiros, ferozes...
É claro que nem todo mundo tem que passar frio para aprender que é preciso, sim, colocar um casaco quando a temperatura cai. Mas muitas vezes, por mais difícil que seja para os pais, é preciso deixar que a criança lide com as consequências das próprias escolhas - e, assim, aprenda com elas. Em outras palavras: tentar resolver todos os problemas pela criança tira dela a oportunidade de aprender com os próprios erros. “A partir das consequências é que as crianças conseguirão observar se cometeram algum erro”, aponta a psicóloga Nathalia Heringer, sócia-fundadora do Instituto de Neuropsicologia e Psicologia Infantil (INPI). Se isso não acontecer, ou seja, se a criança não perceber que errou, o adulto pode ajudá-la a identificar o que houve e a entender sua responsabilidade naquela situação. Depois disso, é preciso direcionar a conversa para a busca e elaboração de estratégias para solucionar o problema, se for o caso.
Quando não há uma forma de resolver o problema gerado pelo erro e ou quando não há nada que possa ser feito para minimizar o estrago, o ideal é trabalhar a aceitação e normalizar que todos nós erramos, segundo a psicóloga Ariádny Abbud, também sócia-fundadora do INPI. “São oportunidades para que, em uma próxima situação, possamos fazer escolhas diferentes”, indica.
Uma relação de confiança e apoio - para toda a vida
Dependendo da situação, pode ser desafiador para o adulto acolher a criança diante do erro. Mas essa é uma atitude fundamental. “Um dos grandes problemas da mentira é o medo da consequência que virá depois. Se a criança sabe que tem pais que a escutam e acolhem quando ela erra, a primeira atitude é pedir ajuda. Se está acostumada a receber punições severas, a tendência é tentar esconder”, explica Ariádny. Em Errinho, errão, Theo, teme que a mãe fique brava e, por isso, tenta esconder um erro com outro – em vez de expor sua angústia e pedir ajuda. Será que ela ficaria mesmo tão brava se ele contasse a ela como se sente?
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A missão dos adultos deve se equilibrar entre não resolver tudo pela criança nem puni-la severamente, sem ajudá-la a entender sua atitude e os resultados que vieram a partir dela. Quando os pais escutam, nomeiam, acolhem a criança e a direcionam para a resolução dos problemas, o vínculo familiar se fortalece, diante de situações difíceis e desafiadoras. Isso também permite que os pequenos explorem mais, se arrisquem mais e busquem maneiras criativas para resolver os problemas. No livro, não dá para negar que Theo sabe usar a imaginação para ir longe, pensando em soluções.
O importante é que a criança saiba que há uma base, um apoio, que sempre estará lá quando ela precisar. Mas, atenção: “apoiar não significa isentar a criança de possíveis consequências. E, sim, deixar claro que o comportamento é que está sendo punido, não a criança”, destaca a psicóloga Ariádny.
É preciso que os adultos sejam fontes seguras, a que as crianças podem recorrer quando erram
Como você, adulto, lida com seus erros?
É importante lembrar que as crianças aprendem mais com o exemplo do que com as palavras. Então, na hora de ajudar seu filho a lidar com os próprios erros, vale prestar atenção em como você lida com os seus. Você se frustra e desconta a irritação em algo ou alguém? Você se culpa excessivamente? Desiste? Relembra o tempo todo do erro que cometeu. “Um dos princípios da aprendizagem das crianças é a observação”, diz Ariádny. Talvez, seja um bom momento para reavaliar, se necessário, a forma de encarar as suas próprias falhas.
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Aceitar que erramos não é fácil, nem para os adultos e nem para as crianças. Aceitar as emoções que nos invadem, diante da constatação de uma atitude que não foi tão legal, é um primeiro passo importante. “A frustração é uma emoção bastante comum na infância e, de forma geral, incomoda muito os cuidadores porque costuma ser acompanhada de comportamentos como choro, irritação etc.”, lembra Ariádny. “No entanto, se entendermos as emoções como ondas passageiras, sabemos que logo irão embora. Por isso, os pais devem acolher com frases como ‘Eu imagino que você esteja frustrado, isso realmente não aconteceu como você gostaria, mas estou aqui para te ajudar’. Nomear a emoção e aceitar que esse sentimento é normal e esperado diante de um erro ajuda a onda a passar mais rápido”, acrescenta.
Como criar em casa uma “cultura do erro”
Encarar os próprios erros e entender o que é possível aprender com eles pode se tornar uma prática comum para a família inteira. Para criar essa “cultura do erro” em casa é importante:
Acolher - quando a criança erra, se sente frustrada e muitas vezes envergonhada. Por isso, é importante tranquilizá-la e reforçar que está tudo bem, que errar é algo quem acontece com todo mundo. Assim, a criança entende que não precisa esconder nada. E você mostra para seu filho que, quando ele errar, pode correr para você, não de você. Que ele pode, sim, pedir ajuda!
Focar em resolver - quando alguma coisa dá errado, além de segurar a frustração, é preciso ser prático. Imagine que um copo de vidro de espatifa no chão. Antes de chamar a atenção da criança porque ela “não tomou cuidado”, mostre que a preocupação é com a consequência, não com o erro em si. Alguém se machucou? Tem alguém descalço? Quem pode ajudar a recolher os cacos? O foco é na resolução, não em encontrar um culpado.
Ajudar a criança a entender a própria responsabilidade - Depois que a poeira baixar e as consequências forem controladas dentro do possível, pode ser que a criança precise de ajuda para entender qual foi a responsabilidade dela nisso tudo. Retomando o exemplo do copo de vidro: qual era o combinado? Tem que segurar o copo com as duas mãos? Não pode ficar andando com ele? Ela encheu o copo demais?
Aprender, sempre - Como evitar que o erro se repita em uma próxima vez? Ajude a criança a pensar em medidas simples que possam minimizar os riscos e reforce que você confia nela.
Vale lembrar que, em alguns casos, a criança pode apresentar mais dificuldade de lidar com o erro - e pode ser necessário buscar algum tipo de ajuda. “De forma geral, as crianças aprendem por três vias: observando, pela própria experiência e através das consequências”, diz Nathalia. “É difícil que ela não reconheça o erro, mas se, mesmo sabendo e tendo acesso às consequências, o comportamento persista, uma avaliação com um psicólogo pode ser útil”, aponta. O profissional poderá ajudar a família a entender o comportamento e oferecer orientações adequadas.
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