Você já se sentiu “mundiado”?
Se tivesse presenciado uma pororoca, que é o encontro das águas do rio com as águas do mar, com certeza diria que sim, ainda que nunca tivesse ouvido essa palavra antes. Para Claudia A. Flor D’Maria, autora de A Pororoca (Brinque-Book, 2024), a palavra “mundiar” é “mais do que assombrar; significa encantar, arrebatar”. “A pororoca mundia os olhos de quem a vê passar, trazida pelos braços do mar", diz um trecho do livro, que conta ilustrações da artista Liu Olivina. Pelas páginas, por onde as águas escorrem, vemos açaizais, andirobas, jacitaras. Vemos tucanos, araras, onças, preguiças. E vemos a gente que habita as margens dos rios e testemunha o processo de encontro das águas que traz assombro, mas também renovação da vida naquelas bandas.
Capa de A pororoca (Brinque-Book, 2024) de , Claudia A. Flor D'Maria com ilustrações de Liu Olivina
A pororoca deixa mesmo qualquer um extasiado. Também provoca mudanças profundas, arrasta e assusta. Mas faz parte da natureza e do cotidiano de quem vive perto dos rios. O Brasil conta até com uma Rota Turística da Pororoca, que atrai visitantes para o Amapá, Maranhão e Pará - deixando um monte de turistas “mundiados”.
Mas para além do turismo, há algo envolvendo a região Norte, sobretudo o território amazônico, que tem chamado a atenção do mundo. Só que ao contrário da pororoca, não se trata de um fenômeno natural empolgante e, sim, de uma consequência da ação exploradora humana: uma grande nuvem de fumaça.
Nas últimas semanas, uma nuvem densa e escura cobriu milhares de quilômetros do Brasil, sufocando vários estados. Foram mais de 11 milhões de hectares atingidos pelo fogo só em 2024. E quase metade deles estão concentrados em três estados da Amazônia – o que fez com muita gente subitamente olhasse para essa região, tão importante para o mundo e tão esquecida pelos próprios brasileiros.
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“Precisamos de um olhar aqui para a Amazônia não só quando chegam as notícias de desmatamentos, queimadas, desmoronamentos. É preciso que sejamos vistos como uma população que contribui com o Brasil, com o planeta, que contribui para que Amazônia ainda esteja de pé”, diz Valcléia Solidade, 56, que nasceu na comunidade quilombola Murumuru, no Pará. Ela atua há quase 30 anos em projetos socioambientais na região, 16 deles na Fundação Amazônia Sustentável (FAS), na qual atualmente é superintendente de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades. Valcléia defende que o restante do país precisa enxergar o potencial da Amazônia e o compromisso que as populações que ali vivem têm com o bioma. “As comunidades fazem esse papel de cuidar da floresta não só para eles, mas para todos”, afirma.
Há muitas vidas e culturas para além da floresta
Quem vive em outras partes do país, sobretudo em grandes centros urbanos, costuma enxerga a Amazônia de uma maneira estereotipada, que não faz jus à pluralidade que existe ali. “Muitas vezes, as pessoas acham que tudo aqui é igual, que é tudo mato, que todo mundo é indígena”, resume Valcléia. Ela lembra até de uma música de um grupo paraense, chamado Mosaico de Ravena, dos anos 1980, que diz assim: ‘Quem quiser, venha ver, mas só um de cada vez, não queremos nossos jacarés tropeçando em vocês’.
A visão que as pessoas têm é de que no Norte, na Amazônia, só tem peixe, jacaré, onça. Acham que aqui não tem civilização, que temos baixa cognição, que não somos inteligentes o suficiente para legislar em causa própria, para defender o nosso território e os nossos interesses”, Valcléia Solidade
Mas a realidade é bem diferente. Na região amazônica, há uma pluralidade imensa. A população da Amazônia Legal, formada pelos nove estados que abrigam a bacia amazônica, representa 13% da população brasileira, com 28,1 milhões de habitantes. A Amazônia Legal é dividida em duas partes: a Amazônia Ocidental, que inclui os Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, e a Amazônia Oriental, que tem os Estados do Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso. Não dá para dizer que é “tudo igual”.
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“Na realidade, cada estado tem uma particularidade. Além disso, existem as peculiaridades de cada município e de cada comunidade”, diz Valcléia. Ainda que seja possível chegar a muitos lugares por estradas, os rios são as principais artérias de circulação, que permitem o acesso à maior parte das comunidades. "Nossas estradas são os rios. À margem desses rios, tem os ribeirinhos, os quilombolas, os extrativistas... Indo para o Maranhão, temos as quebradeiras de coco, os pescadores, as mulheres que se identificam como pescadoras e como extrativistas. Estamos falando de uma diversidade de populações que se identificam de uma forma que não é única”, explica. Ela lembra ainda que existem as populações migratórias, como as pessoas que foram do Nordeste para o Norte, para fugir da seca, em busca de segurança, oportunidades e conforto. “São comunidades ribeirinhas, de estrada, que vivem em assentamentos... Estamos falando de uma gama muito grande e diversa, com culturas diversas, ancestralidades diferentes”, reforça.
A floresta cuida de quem cuida dela
Mesmo todas as diferenças e particularidades, as comunidades do território têm, também, muito em comum. Uma dessas convergências é o papel de conservação e cuidado com a Amazônia. Quem vive na floresta sabe da importância do bioma e encontra na natureza sua segurança alimentar. “Ali estão os produtos que eles consomem de forma gratuita. Não há um caixa de supermercado ou alguém para comprar os peixes que você pegou, ao voltar com a canoa cheia. Não há ninguém no caixa cobrando pelo açaí ou pelo tucumã que você colheu e com o qual se alimenta todos os dias”, exemplifica Valcléia.
Ela também chama atenção para uma diferença crucial entre quem vive na floresta e quem mora nos centros urbanos. Nas cidades, existe uma mentalidade do acúmulo. “Eu mesma, quando meu freezer está cheio, passo no supermercado e compro alguma coisa”, diz ela. “Esse hábito não existe nas comunidades”. Nem poderia, porque não há estrutura de armazenamento. Além de as pessoas não terem freezer, nem sempre há energia elétrica disponível. Então, o trabalho de caçar, pescar e coletar alimentos é diário. “É claro que, se pudessem armazenar, também fariam, mas o nosso olhar sobre a riqueza é diferente do olhar de quem mora na comunidade”, explica. Enquanto, na cidade, existe o hábito de acumular e guardar, a comunidade pensa e age de forma diferente - e não apenas em relação a armazenar alimentos.
“A riqueza de quem mora na comunidade não é ter uma conta cheia de dinheiro. É ter a segurança de que amanhã o filho vai para a escola, de que poderá ter acesso à água, à segurança. É diferente da gente, que pensa: ‘Eu vou guardar dinheiro porque preciso comprar um carro’. Um carro aqui na comunidade é uma canoa. Eles 'têm esse olhar de compartilhar", explica Valcléia.
É difícil ver, na comunidade, alguém passar fome. Não passa porque as pessoas em volta não deixam. Se alguém está precisando de alguma coisa, o outro vai lá e compartilha. Enquanto nós adoecemos por excesso de trabalho, excesso de ansiedade, o cidadão que mora na comunidade almoça às 11h, coloca a rede debaixo de uma árvore, faz aquele sono de meia hora, uma hora, às vezes acorda às 15h, e pode ir para o roçado de novo, porque é a hora que o sol já diminuiu”, Valcléia Solidade
Outra diferença notável é que nas comunidades há muitas famílias grandes. Quem olha de fora, às vezes, se espanta, questionando se não há planejamento familiar. Mas a questão é outra: não há dinheiro para pagar pela mão de obra que a comunidade necessita diariamente. É preciso contar com os filhos para ajudar. “Existe uma divisão de tarefas: um vai buscar água, outro vai para o roçado, outro vai apanhar açaí, outro vai para pesca. É mão de obra para poder dar conta das atividades. A tecnologia não chega, então, é preciso pescar todos os dias”, explica Valcléia. Desde pequeninas as crianças acompanham os pais no trabalho. Aprendem a pescar, a colher frutos, a cuidar do peixe, a fazer farinha, a trepar no açaizeiro. “As crianças vivem muito livremente”, conta.
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Desde cedo, a relação das crianças com a floresta é de muito respeito. “Você vê crianças pequenas, de três anos, que nadam muito bem no rio”, aponta Valcléia. Os pais precisam ensiná-las desde cedo porque nem sempre há a possibilidade de contar com uma bica ou um chuveiro. O banho é no rio - de novo, por uma questão de sobrevivência. “É um processo de aprendizado, com toda a segurança. Os pais mostram que a floresta é um ambiente de alimento, mas também tem seus perigos. Precisamos ensinar nossos filhos a transitar nesse ambiente que compartilhamos com outras espécies, da fauna e da flora”, afirma. É um vínculo de troca de proteção e respeito com a natureza.
O Brasil precisa conhecer a Amazônia
Para Valcléia, o que o restante do país precisa entender sobre a Amazônia é que a ganância está afetando a vida das pessoas, poluindo rios, causando desmatamento. E que é urgente se tornar consciente do proble a. “Isso gera insegurança não só para quem vive aqui, mas para todos nós”, apela.
Não conhecer como a região funciona, como as comunidades se organizam, como se percorre o imenso território só complica essa tomada de consciência. “É tudo grandioso, mas difícil. Por vezes, se torna mpossível chegar a alguns lugares, sobretudo nos tempos de seca extrema, como agora”, ressalta Valcléia, que gostaria que cada brasileiro pudesse ver de perto o que é, de fato a Amazônia, e ter uma ideia de como se vive ali. Não é só uma questão de se deslumbrar - ou se "mundiar" -com a exuberância da fauna e da flora. Estamos falando de pessoas. "É fundamental valorizar o trabalho que essas populações da Amazônia fazem para proteger a fauna e a flora, essenciais para a vida de todos nós”, conclui.