Como se constrói o vínculo entre irmãos?

07/07/2021

A relação entre irmãos e irmãs é tão representativa e visceral que já rendeu muitos enredos literários, e a literatura infantil não é exceção. Lançamento de junho da Companhia das Letrinhas, Eu também!, escrito pela Patricia Auerbach e ilustrado pela Isa Santos, é um desses livros.

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Ele traz a história do Tuca e do Lipe, dois irmãos pequenos muito companheiros, que são bem parecidos e também muito diferentes. O Tuca é um craque do futebol, o Lipe também. Se um deles vai salvar o mundo, o outro vai também! E, claro, se o Tuca pega o dragão vermelho de brinquedo, o Lipe vai querer pegar também.

E, como toda relação entre irmãos, essa disputa se estende ao banco do carro, ao último pedaço de pizza e a qualquer outro aspecto da vida em comum que venha a ser dividido. Mas, quando eles se separam, a saudade aperta para os dois, e cada um tem o seu jeitinho de mostrar o quanto ama o outro.

Patricia, que é mãe de dois meninos, contou que a ideia do livro surgiu de uma dinâmica que percebeu na sua própria casa: “A vontade de escrever o livro veio quando um deles me relatou ‘nossa, ele sempre deixa um presente quando está com saudade’. A ideia toda veio dessa percepção, entre eles mesmos, de que cada um tem uma maneira de se expressar e da possibilidade de que um entenda a linguagem do outro, em que um presente ou um cartão significa um pedido desculpa, um jeito de falar que ama ou que estava com saudade”.

A autora revela que várias passagens do livro foram inspiradas na personalidade de seus filhos e nessa maneira diferente que cada um tem de se expressar para o outro. “Foi essa percepção, entre eles, de que as pessoas lidam de maneira diferente com a saudade, com a raiva. Vai ter o que o que grita, o que fica mudo, o que não se posiciona. E cada um tem o seu jeito de dizer o sentimento, o bom e o ruim”, ela explica.

“Tem também o quanto um quer ser igual ao outro e fazer igual ao outro, ao mesmo tempo em que são muito diferentes. E a disputa existe, não tem jeito: pelos pais, pelo lugar no carro, pela comida. Até hoje, eles são maiores que eu, mas continua existindo”, acrescenta Patricia.

Mas afinal, de que maneira se constrói a subjetividade de cada irmão em meio a essa relação de amor e disputa? Como se forma o vínculo entre eles, apesar das diferenças de personalidade?

O Blog conversou com o psicólogo e terapeuta Alexandre Coimbra Amaral sobre esse assunto tão delicado quanto corriqueiro da vida das famílias.

 

Fascínio e disputas

Ele explicou que, para começar, o filho mais velho vive a experiência de perda do privilégio da exclusividade quando tem um irmão mais novo, com quem precisa aprender a compartilhar e dividir tudo o que antes era só seu. Os sentimentos dele em relação ao mais novo são ambivalentes e isso é absolutamente normal. O primeiro nasce com o privilégio da exclusividade, o segundo, com o privilégio de não estar nunca sozinho.

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Ao mesmo tempo, existe um fascínio natural do mais novo em relação ao mais velho. “O primogênito normalmente exerce um certo fascínio sobre o segundo porque ele é uma espécie de spoiler da próxima temporada. O segundo olha para o primeiro e pensa: cara, olha o que ele já consegue, olha o que ele já entende da vida. Isso existe naturalmente porque nós somos seres de aprendizagem. O segundo coloca o primeiro nesse lugar de mestre: esse cara já sabe andar, eu vou atrás dele porque ele já sabe o caminho para conseguir andar”, ele explica.

Alexandre esclarece ainda que, na infância, em especial quando a idade das crianças é próxima, compartilhar brinquedos é uma coisa muito séria – é praticamente compartilhar o mundo. “Ao mesmo tempo, uma coisa que a psicanálise traz que é muito interessante é que eu me interesso pela satisfação que eu vejo o outro tendo; eu quero ter essa satisfação. Não quero necessariamente o brinquedo. Então tem 358.790 brinquedos na casa e, de repente, o mais velho vê aquele brinquedo antigo e arregala o olho: ‘nossa, tem tanto tempo que eu não brinco com esse!’. E o que o segundo quer não é o brinquedo, ele quer o olho arregalado, quer viver essa experiência de satisfação.”

Porém, como a experiência do menor com o brinquedo não é a mesma do mais velho, que construiu uma história com aquele objeto, o mais novo não tem como viver essa mesma satisfação. “Ele percebe que tem alguma outra mágica que ele não entende muito bem o que é, mas entende que o mais velho sabe. Então essa atmosfera de ligação entre esses dois irmãos vai se construindo e se sedimentando. Enquanto isso, o primeiro gosta muito de ser essa referência, mas também se cansa porque tem momentos em que o segundo atrapalha a brincadeira dele”, argumenta o terapeuta.  

 

Espaço para expressar as ambivalências

Alexandre esclarece que a mediação da família precisa ser no sentido de ofertar espaço para que os irmãos possam ser eles mesmos, inclusive para expressar a ambivalência de sentimentos em relação ao outro. O segundo não precisa copiar o primeiro, e o primeiro pode ter o espaço e o direito de não querer o irmão.

Essa é a coisa mais importante, porque a relação acontece quando a gente dá espaço para essas expressões. É paradoxal mesmo porque, quando a gente força, surge a raiva da obrigação de se vincular. E vínculo não é imposto, vínculo é construído e ele só pode acontecer com luz e sombra. É fundamental que se permita a expressão das ambivalências humanas, nós somos feitos disso.

Alexandre Coimbra Amaral

De acordo com o terapeuta, quando a família permite que haja esse espaço de expressão, a criança recebe dos adultos a seguinte mensagem: eu mereço ser amado, apesar e além do que eu sinto pelo meu irmão mais novo; eu não tenho que performar para ser amado.

Na prática, Alexandre explica que essa abertura pode ser uma comunicação simples: “é dizer para a criança assim 'olha, está tudo bem você, às vezes, ter raiva do seu irmão. Eu entendo que, às vezes, ele atrapalha sua brincadeira. Eu entendo que, na hora que você quer ficar só com a mamãe [ou com outro cuidador], eu estou com ele. Isso deve ser muito ruim para você'”. 

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