Fazer um bolo ou um prato especial com alguém querido é uma grande experiência para a criança. De um lado, ela desenvolve confiança e autonomia, além de ampliar seu paladar e sua aceitação para comer. De outro, cozinhar em família também é afetivo: tem conversa, talvez algum episódio engraçado que vai virar uma lembrança boa, histórias sobre receitas que passaram de geração em geração - e a leitura desse tipo de texto ainda pode ajudar a consolidar a alfabetização.
Trazendo ainda mais histórias para a experiência das crianças na cozinha, a autora Katia Canton acaba de lançar de A cozinha curiosa das fábulas, da Companhia das Letrinhas. O livro reúne 14 fábulas que se desenrolam em torno de algum alimento, como “A raposa e as uvas”, “A galinha dos ovos de ouro” e “A cigarra e a formiga”. Cada história tem uma receita deliciosa e fácil, para que a criança possa fazer com um adulto.
Esse formato, que apresenta textos literários clássicos a partir de sua relação com a alimentação, acompanhados de uma receita, já é um sucesso da autora, iniciado com o livro A cozinha encantada dos contos de fada.
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Livro reúne 14 fábulas acompanhadas de receitas fáceis para as crianças cozinharem
Cozinha é lugar de criança, sim!
“Quando uma criança se propõe a fazer uma receita até o final e se delicia com o bolo, o suco ou a sobremesa, ela tem a clareza da sua habilidade, porque ela viveu aquilo e se percebeu capaz”, explica Isa Minatel, psicopedagoga especialista no método Montessori. Ela argumenta que, apesar da nossa cultura de cuidado com a criança na cozinha, quando são bem orientadas e bem conduzidas, podem aprender muito nesse ambiente.
A fábula "A moça e a vasilha de leite" traz a receita do pudim de leite para a criança fazer
Existem objetos perigosos na cozinha, é óbvio, mas é um lugar de muitas oportunidades, até para a criança aprender a se cuidar, por exemplo, pedindo ajuda quando perceber que tem algo mais perigoso. Aprende a preparar o próprio lanche ou uma refeição e a lidar com a sujeira no final. Há muito mais experiências positivas em relação a isso do que a gente imagina, então vale repensar sobre essa ideia preconcebida de que cozinha não é lugar de criança e se abrir para essa nova possibilidade.
Isa Minatel, psicopedagoga
De acordo com ela, a cozinha permite criar a crença de capacidade: quando a criança age e vê o resultado da sua ação, ela se percebe potente, passa a ter certeza de que consegue.
Outro aspecto importante é a naturalização das tarefas domésticas, como cozinhar, organizar, lavar, guardar e limpar, que deixam de ser percebidas como um grande peso na vida. “Isso vai fazer parte do ser humano que ela vai ser, vai ser de grande valia para a vida dela.”
A psicopedagoga aponta ainda que, a partir do preparo dos alimentos, o cardápio a que a criança tem acesso se amplia muito. “Ela começa a manipular alimentos que ainda não come, por exemplo, e começa a sentir curiosidade e a se apropriar de sabores novos”, aponta Isa.
Outro ótimo motivo para levar as crianças para cozinhar é ficar longe das telas. “Às vezes a gente coloca as crianças nas telas para ir à cozinha, mas a verdade é que, se a gente levá-las conosco, elas saem das telas e vivem uma experiência de vínculo, autonomia, autoestima.”
As receitas e a alfabetização
Além de todos esses aprendizados, as receitas são um gênero textual que pode ajudar muito as crianças em processo de alfabetização. Para a pedagoga e formadora de professores Jacqueline Magalhães, a receita combina uma função muito clara de instrução com o objetivo de preparar algo para comer, que é uma experiência.
“O texto de receita é um texto de instrução, tem uma boa função social da língua escrita. O adulto, à medida que traz a receita para ser lida para a criança, se torna um usuário da escrita, um modelo leitor”, explica Jacqueline. O adulto que lê a receita se torna uma referência para que a criança compreenda a função desse texto para a sua vida, o que ele mobiliza a fazer.
Esse momento de cozinhar a partir de uma receita é afetivo. Muitas vezes as famílias conversam enquanto leem a receita, conversam sobre ela, sobre os ingredientes. Às vezes é uma receita que a mãe fazia com a avó ou com a bisavó ou aprendeu com uma pessoa querida e conta para a família essas memórias afetivas. Vão-se criando narrativas - narrativas orais, que não são menos importantes que as narrativas escritas.
Jacqueline Magalhães, pedagoga
Assim, antes da criança se tornar leitora ou escritora convencional, ela já está envolvida em uma experiência de linguagem que é riquíssima e plena de significado. “O processo de alfabetização começa pelos sentidos, pelo uso social da escrita.”
De acordo com a pedagoga, o uso social é fundamental para a alfabetização porque explicita o que a escrita representa na nossa sociedade, por isso é preciso oportunizar essas situações de uso, tanto na escola como em casa. “A linguagem escrita está presente em muitas situações, e a culinária é uma delas. É uma situação potente de aprendizagem dos usos da cultura escrita para as crianças.”
Jacqueline argumenta que, especialmente na Educação Infantil e nos anos iniciais do Fundamental, se a alfabetização foca apenas a aprendizagem do sistema e a fazer a escolha das letras, o processo fica tão minimizado que as crianças não têm sobre o que escrever, apesar de muitas vezes já dominarem o sistema.
“Quando se fala em alfabetização, os adultos costumam pensar logo na aprendizagem das letras, na grafia dos sons que elas produzem, na ordem em que aparecem na palavra. Esse é o sistema de escrita convencional, é uma aprendizagem importante, que instrumentaliza as crianças para a escrita de bons textos”, diz a professora. “Mas é só uma parte da alfabetização. Existe essa outra parte muito maior que envolve a apresentação e a leitura de bons textos, que mostram para as crianças o quanto a escrita é importante, o quanto a leitura é importante na nossa sociedade.”