O amor depois da guerra

05/04/2017

"A história de amor de A febre do amanhecer seria inacreditável se não fosse verdade". É assim que uma resenha do site A. V. Club define o livro de Péter Gárdos, um dos romances mais emocionantes publicados no último ano.

No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o jovem húngaro Miklós, com 25 anos, é resgatado de um campo de concentração e levado até a Suécia para recuperar a sua saúde. Apesar de ter sobrevivido ao Holocausto, os médicos não dão muitas esperanças: seu pulmão está comprometido pelo tifo e pela tuberculose, e dão ao jovem poucos meses de vida.

A previsão pessimista não desvia Miklós da decisão que tomou no hospital: ele quer se casar. Assim, pede aos soldados os endereços de moças com até 30 anos de idade, húngaras, que também estejam nos hospitais suecos se recuperando da guerra. Ele recebe 117 endereços, e escreve para todas elas. Das 117, uma responde: Lili, que se recupera de um problema renal em um outro hospital do país, e resolve responder à carta de Miklós por incentivo de suas amigas e para escapar do tédio do lugar. A resposta de cortesia se transforma, aos poucos, numa troca de cartas inusitada, divertida e esperançosa, e o amor vai se formando através da caligrafia dos dois jovens. Foi assim os pais de Péter Gárdos se conheceram. 

Quando o pai de Gárdos morreu em 1998, sua mãe lhe entregou um punhado de cartas, a correspondência que trocou com o marido durante esse período no hospital. Diretor de cinema e teatro, a primeira ideia que Gárdos teve foi transformar a história de seus pais em um filme, o que acabou sendo feito. O roteiro foi a base para este romance que acompanha Lili e Miklós, uma história envolvente sobre amor, esperança e sobrevivência. Leia a seguir trechos do início dessa história, com tradução de Edith Elek. 

* * * 

Em 7 de julho de 1945, meu pai já estava na província de Gotland, no hospital de uma aldeiazinha chamada Lärbro, deitado numa enfermaria com dezesseis camas, as costas apoiadas na almofada, escrevendo uma carta. A luz do sol borbulhava em raios dourados pela janela. Entre as camas, enfermeirinhas com blusas crocantes de tão engomadas, toucas brancas e saias de algodão ziguezagueavam esfregando o chão. 

A caligrafia de meu pai era linda: letras graciosas, arabescos elegantes, espaço para respiro entre as palavras. Depois de terminar a carta, procurou um envelope, colou?o e o apoiou na jarra cheia de água sobre a mesa de cabeceira. Duas horas depois, uma enfermeira chamada Katrin juntou o envelope com as cartas dos outros doentes e levou tudo ao correio. 

Naquela época, meu pai só podia se levantar da cama vez ou outra. Porém, onze dias depois do episódio da carta já podia sentar no corredor do hospital de Lärbro. Numa manhã, ele recebeu uma carta vinda direto do Escritório Sueco de Registro de Refugiados, que trazia o nome e o endereço de cento e dezessete mulheres. Meu pai tinha em mãos o endereço de cento e dezessete jovens, moças e senhoras que tentavam sobreviver nos diferentes hospitais de campanha espalhados pela Suécia. Conseguira de algum modo um caderninho em cujas páginas qua? driculadas repassava os nomes todo final de tarde. 

Aqui ele já tinha superado havia alguns dias o dramático começo deste texto.

[...]

Duas semanas depois dessa conversa permitiram que meu pai fizesse pequenos passeios no suntuoso jardim do hospital, e ele sentou num dos bancos sombreados pela copa opulenta de uma imensa árvore. 

Quase nem olhava para cima. Escrevia suas cartas, uma depois da outra. Escrevia a lápis, com sua caligrafia encantadora. Sentado no banco, apertava as folhas de papel sobre um romance de Martin Andersen Nexö, uma edição sueca de capa dura. Meu pai admirava a visão política de Nexö e a coragem silenciosa de alguns dos personagens operários no romance. Talvez meu pai pensasse que o grande dinamarquês também sofreu de tuberculose e conseguiu se curar. 

Meu pai escrevia com rapidez. Colocava uma pedra sobre as cartas prontas para não correr o risco de serem levadas pelo vento. 

No dia seguinte bateu na sala do médico?chefe. Calculou que desarmaria a sedutora honestidade de Lindholm. Precisava da ajuda do médico.

Durante o dia, nesse horário, o médico conversava com seus pacientes sentado em um divã de couro. Acomodou?se em uma ponta, de avental branco, e meu pai, de pijama, na outra. 

Lindholm, surpreso, revirava aquela abundância de envelopes. 

— Não costumamos perguntar a nossos pacientes com quem se correspondem e por quê. Agora também o que me move não é a curiosidade… 

— Eu sei. De todo modo gostaria de esclarecer ao senhor. 

— O senhor diz, querido Miklós, que aqui há cento e dezessete cartas. O senhor mantém uma ampla correspondência, parabéns — Lindholm levantava os braços, como se quisesse mostrar que estava impressionado com o peso do monte de envelopes. — Vou logo avisar à irmã para que compre os selos. Se tiver qualquer questão financeira, pode contar comigo. 

Meu pai, com aparência imodesta, cruzava as pernas sem parar. Sorria com uma leve malícia. 

— É tudo mulher. 

Lindholm ergueu as sobrancelhas. 

— Puxa vida! 

— Quer dizer, moças. Moças húngaras. De Debrecen ou de regiões próximas. Eu também nasci lá. 

— Entendo. — O médico balançou a cabeça. 

Não entendia. Não tinha a menor ideia de qual seria o objetivo de meu pai com esse descarregamento em massa de cartas, mas se mostrou compreensivo, afinal estava dialogando com um condenado à morte. 

Meu pai se sentiu livre e continuou. 

— Há duas semanas eu me informei sobre quais são as mulheres espalhadas pela Suécia que nasceram em Debrecen ou na região, e que estão sendo tratadas aqui. Até trinta anos de idade! 

— Nos acampamentos hospitalares? Ah!

Ambos sabiam que, além do Lärbro, havia mais pelo menos algumas dúzias de centros de reabilitação funcionando no país. Meu pai se sentou ereto. Estava sinceramente orgulhoso de seu plano de ação. 

— E nesses lugares há inúmeras mulheres. Moças. Senhoras. Olhe a relação de nomes! — Tirou a lista do bolso do pijama. Corou. Estendeu a lista bem preparada, com marcas de “x”, um tique ou pequenos triângulos desenhados ao lado dos nomes. 

— Ahá. O senhor procura as conhecidas! Estou de pleno acordo! 

— O senhor entendeu mal — explicou meu pai, piscando e sorrindo ao mesmo tempo. — Estou procurando uma esposa. Eu gostaria de me casar. 

Finalmente conseguiu dizer. Encostou o corpo no sofá e esperou pela reação. 

A testa de Lindholm se toldou com rugas. 

— Parece, querido Miklós, que no outro dia não expliquei claramente as coisas. 

— Sim, doutor, explicou. 

— Parece que minha fala me traiu. Seis meses, mais ou menos. Isso é o que resta. Sabe, Miklós, se um médico expressa uma coisa dessas, é terrível para ele. 

— Eu entendo perfeitamente, doutor. 

Qualquer resposta seria difícil. Então permaneceram em silêncio nos dois cantos do divã. Ainda ficaram mais uns cinco minutos sem saber o que fazer, num crescente desconforto. Lindholm pesava internamente se seria seu dever instruir um condenado à morte, se seria seu dever alertá?lo diante das probabilidades para que pesasse a situação com bom senso. Meu pai, por outro lado, refletia sobre se valia a pena introduzir um cientista com tanta experiência na perspectiva de um mundo otimista. Então preferiram deixar um ao outro em paz. 

Naquela tarde meu pai deitou na cama como a terapia exigia, com as costas encostadas no travesseiro. Eram umas quatro da tarde, a hora da sesta, e os doentes precisavam ficar dentro dos alojamentos. Muitos dormiam, alguns jogavam cartas. Harry tocava o último movimento de uma sonata no violino, repetindo sem parar seu trecho mais ardiloso, com irritante dedicação. 

Meu pai colou os selos nos cento e dezessete envelopes. Lambia, colava, lambia, colava. Às vezes a boca secava e ele tomava um gole do copo de água do criado?mudo. Ele sentia que a música de Harry era o acompanhamento exato para a sua atividade. As cento e dezessete cartas poderiam ter sido copiadas com papel?carbono. Elas diferiam umas das outras apenas em um item: no destinatário.

[...]

Querida Nora, querida Elizabeth, querida Lili, querida Suzana, querida Sara, querida Serena, querida Agnes, querida Giza, querida Boneca, querida Catarina, querida Judit, querida Gabriela… 

Provavelmente a senhorita já se acostumou a que se dirijam à senhorita quando a pessoa fala em húngaro — por serem eles também húngaros. Lentamente nos tornamos mal-educados. 

Eu, por exemplo, escrevi confiante o nome acima por sermos da mesma terra. Não sei se me conhece de Debrecen — eu, enquanto não “fui chamado” pela pátria para trabalhos forçados, trabalhei no jornal Független — e meu pai tinha uma livraria no Palácio Episcopal. 

Tenho a impressão, pelo nome e pela idade, que a conheço — será que morava no Gambrinus? 

Perdoe-me por escrever a lápis, mas por ordem médica ainda devo ficar de cama por alguns dias.

[...]

Entre as cento e dezessete cartas, uma era endereçada a certa Lili Reich, de dezoito anos de idade, no acampamento de Smålandsstenar. Abriu o envelope, que recebera pelo correio em agosto, leu com atenção, e quando viu que o jovem de letra bonita da longínqua Lärbro evidentemente a confundira com alguém, esqueceu na mesma hora o assunto. 

[...]

No futuro ela pensará bastante sobre esse evento, de que talvez jamais tivesse conhecido meu pai se não fosse por essa crise renal; se a imensa ambulância branca não a transportasse para o pronto?socorro do hospital militar; se na primeira visita Judit Gold não levasse consigo, junto com sua escova de dentes e seu diário, a carta que ela recebera daquele rapaz de Lärbro; se, nessa mesma visita, Judit Gold não a convencesse de que, apesar da falta de sentido, deveria responder com algumas frases ao jovem simpático, se não por outro motivo, por um gesto de solidariedade; seria aqui que a história teria acabado. 

Assim, em uma daquelas noites intermináveis no hospital, sentada ao lado de um elevador antigo cuja porta rangia de modo ofensivo aos seus ouvidos e de um corredor de onde vinha um som de uma balbúrdia paralisante, Lili Reich procurou uma folha de papel e, após uma pequena reflexão, começou a escrever à luz pálida da lâmpada sobre a cama.

Querido Miklós! 

Provavelmente não sou a pessoa que pensa, pois, embora tenha nascido em Debrecen, fui morar em Budapeste com um ano. Apesar disso, pensei muito no senhor, pois sua carta é tão simpática que continuo a troca de correspondência com prazer…

Isso era verdade apenas em parte. Agora que estava presa a uma cama por causa de uma nova doença, tecia devaneios talvez por medo, como uma fuga ou apenas por tédio.

De mim, só digo que não tenho grande admiração por calças com vinco bem passadas ou por um penteado bem-feito, é o valor interior que me seduz.

* * * 

A febre do amanhecer já está nas livrarias. 

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