O processo de escrita do meu primeiro romance

21/06/2023

 

Por Mayra Cotta

            Desde que correu a notícia que eu havia escrito um romance, tenho recebido perguntas a respeito do processo de tornar-me escritora. Muitas mulheres, animadas pelo desejo de colocar no mundo uma história, têm me procurado para dicas a respeito de como passar da vontade ao ato. E, porque quero que tenhamos cada vez mais romances escritos por mulheres, compartilho aqui algumas ideias, que funcionaram para mim, para incentivar a produção literária feminina. Espero que elas sejam úteis!

 

1. Leia os primeiros romances de autoras mulheres e pessoas não-binárias

            Antes de começar a escrever meu primeiro romance, passei dois anos lendo apenas os primeiros romances de autoras mulheres e pessoas não-binárias. Foi essa iniciativa que me deu ânimo para me aventurar na escrita criativa. Na época, eu morava em Nova Iorque e as livrarias que frequentava tinham seções específicas para títulos de estreia de escritoras diversas e das mais variadas partes do mundo. Isso me permitiu conhecer uma diversidade impressionante de estilos, histórias, temas, angústias e inquietações que circulam entre nós, mulheres, atualmente.  Às vezes, eu pegava livros aleatoriamente nessas seções; ou escolhia pela biografia da autora na orelha; ou, ainda, pedia recomendações às livreiras – aliás, aqui vai uma pequena declaração de amor às livreiras, que exercem uma profissão especial e necessária, ainda (ou especialmente) nos dias de hoje. Por fim, também fui atrás de ler alguns primeiros romances de nomes femininos consagrados da literatura.

            Nesse período, conheci autoras brilhantes, textos fortes, estilos criativos, histórias fantásticas e personagens originais. Mesmo tento sido uma leitora ávida desde a época da adolescência, jamais tive um período de tamanho encantamento com a literatura. Entendi neste processo que a pretensa universalidade dos grandes gênios literários funciona mais para reafirmar nossa exclusão do que para nos convidar a nos juntar a eles. Por outro lado, a identificação com o texto das mulheres – mesmo aqueles cuja genialidade certamente jamais serei capaz de atingir – e a sensação de estar junto a uma amiga no momento da leitura me mostraram um caminho que já não conseguia mais resistir em tomar. Posso afirmar com segurança que este foi o passo mais definitivo para me estimular a escrever o romance. Pela primeira vez na literatura, senti que havia um clube ao qual eu poderia eventualmente pertencer.  

 

2. Estude textos literários que te agradem

            Eu não sou uma estudiosa da literatura, nem tenho pretensão de me passar por uma. Costumo consumir teoria literária, mas jamais em quantidade suficiente para ultrapassar o diletantismo. Ainda assim, da mesma forma que você não precisa ser um crítico profissional de arte para apreciar arte, acredito ser possível a todas interagir de maneira crítica com textos literários. Assim que você começa a ler um livro, logo nas primeiras páginas o texto já é capaz de te despertar algum tipo de sentimento: incômodo, atenção, curiosidade, repulsa, tédio. Algumas autoras são tão geniais que percebemos quase que imediatamente ao abrir o livro que estamos diante de um texto brilhante e único.

            Estude esses textos. Volte nos livros que te marcaram de alguma forma, livros que te envolveram mais intensamente, livros cujos trechos mais impactantes você ainda se lembra, e aborde o texto a partir de uma perspectiva analítica: o que faz esse texto ser tão bom? Como é a estrutura das frases? Quais são as figuras de linguagem presentes? E o estilo da escrita, como poderia ser definido? A partir daí, tente incorporar em sua escrita alguns desses elementos, sem, é claro, pretender escrever igual a uma outra autora. Inspirando-nos em tantas outras que vieram antes de nós, aos poucos, vamos encontrando a nossa própria personalidade de escritora.    

 

3. Encontre uma premissa que te desafie

            Antes de começar a escrever, não sabia aonde a história iria me levar. As tramas não estavam organizadas completamente, nem na minha cabeça, nem em algum papel ou arquivo. Também não sabia quais personagens seriam necessárias para contá-las. Seguindo o conselho de uma professora de escrita criativa, passei algumas semanas pensando sobre uma premissa que me incomodasse e me desafiasse a lidar com ela. Por isso, escolhi o tema do pedido de ajuda de um antigo amigo que é acusado de estupro. Apesar de eu não ter lidado diretamente com uma situação exatamente nos termos em que é apresentada no livro, achei que esta premissa era capaz de concatenar algumas das angústias que circulavam de maneira difusa entre mulheres do meu círculo social mais amplo.

            A partir desta premissa, pude explorar em profundidade as ambivalências que constantemente me atormentam quando estou na intersecção entre as minhas relações com os homens e minhas convicções político-feministas. Quando comecei a escrever, eu não sabia como a Alma, a narradora da história, iria lidar com a situação que se apresentava diante dela. Fiz questão de não facilitar a minha vida e aprofundar a complexidade da premissa: o amigo é um cara legal que a Alma já amou e com quem compartilhou sonhos de juventude; o relato do estupro se encontra em uma zona cinzenta; e a ambivalência está desconfortavelmente presente na relação entre os dois. Quando pensei nessa premissa, tive a certeza de que seria possível escrever um livro consistente a partir dela. 

 

4. Decida a sua voz

            Há diversas maneiras de se narrar uma história. A voz que você vai usar é uma decisão que precisará tomar logo no momento de começar a escrever. Certamente, não é uma decisão neutra. A consciência da narradora sobre o que acontece, como as personalidades das personagens são reveladas e a quais informações a leitora terá acesso são elementos que influem diretamente no desenvolvimento do livro. Você precisa refletir bastante sobre isso para decidir que tipo de voz a narradora da sua história terá.

            Foi-me dito que o caminho mais seguro para uma escritora iniciante era o uso da narradora onipresente em terceira pessoa. Mas eu percebi que o que mais me fascinou nos romances de estreia das mulheres que eu havia lido era como a maioria deles usava a primeira pessoa e cada um trazia uma voz original e autêntica. Optei pela primeira pessoa porque quis fazer da escrita um exercício que fosse – como diz Octavia Butler – de criação de uma história e, simultaneamente, de criação de mim mesma. Não que isso não seja possível com o uso da terceira pessoa, mas só encontrei a intimidade que eu buscava com as páginas quando assumi a voz da narradora que escreve em primeira pessoa.

 

5. Definidas a premissa e a voz, crie um mapa mínimo para guiar a escrita

            Depois que encontrei a minha premissa e decidi a voz da narradora, testei o formato e escrevi a primeira cena do livro. Gostei. Passei, então, a um segundo momento ainda preparatório: definir os elementos mínimos que guiariam a escrita. Quais personagens seriam necessários para contar a história e o papel deles nela; as tramas secundárias e como elas seriam costuradas à principal; o tempo no qual se passa o livro; e por aí vai. Foi nesse momento que decidi, por exemplo, que a história seria contada no presente, ao longo de uma semana, mas retornaria ao passado constantemente; que eu só precisaria de três personagens masculinos e nenhum deles teria nome ou falaria por meio de discurso direto; que a Alma era uma feminista cheia de contradições e perturbada por elas e que precisaria de amigas próximas para lhe ajudar a lidar com aquela situação; que as relações da Alma com cada amiga precisariam ser bem aprofundadas e que essas personagens seriam complexas e inteligentes.

            Eu tinha um caderninho de apoio à escrita do livro que era uma espécie de diário. Lá, eu desenvolvia as características das personagens – desde os traços físicos até as características mais sutis de sua personalidade. Eu também anotava ideias de cenas e diálogos que eu gostaria de colocar no livro. Em um determinado momento, quando a escrita já havia começado, organizei o desenvolvimento da trama principal e das tramas secundárias por capítulos. Eu não sabia, contudo, aonde a história me levaria, muito menos como a Alma resolveria suas questões com o ex-amigo – e até mesmo com o amante esporádico. Eu jamais teria começado a escrever um livro se precisasse, desde o início, saber como ele terminaria.     

  

6. Escreva todos os dias

            Esse é o conselho mais importante – e o único que me parece inegociável. A escrita em si, seja ela para qualquer fim, já é um exercício que demanda prática. Quanto mais escrevemos, escrevemos cada vez melhor e com mais destreza. Quando se trata de um romance, escrever todos os dias passa a ser necessário não apenas por isso, mas também para que consigamos acessar partes de nós mesmas que nem sabíamos que estavam lá. Com a rotina diária, abrir o computador e começar a digitar passa a tomar formas semelhantes a estarmos deitadas em um divã. Nem todos os dias serão incríveis. Alguns dias serão frustrantes: você vai escrever e apagar diversas vezes, vai sentir que o fluxo empacou e vai ficar com medo de ter secado a fonte de inspiração. Alguns dias serão protocolares: você vai escrever bem, vai dar andamento à história devidamente e vai colocar no papel exatamente as cenas que você gostaria de representar. E aí virão, eventualmente, os dias sublimes: os momentos em que você não entende bem quem tomou conta das palavras, que passam a revelar ideias que você não sabia ter, sentimentos que você jamais foi capaz de elaborar e até monstrinhos que você nunca conseguiu admitir que estavam lá.  

            Eu entendo que para muitas mulheres tomar esse conselho como inegociável pode significar jamais conseguir de fato começar a escrever – especialmente para as mulheres que são sobredemandadas nas tarefas relacionadas ao trabalho de cuidado. Dificilmente, nas configurações laborais do estágio atual do capitalismo tardio, alguém consegue separar três horas diárias para escrever. Mas há de se tentar, testando a maneira que funcionar melhor na sua rotina. Se não três, pelo menos uma hora – quarenta minutos que seja – todos os dias. Todos os dias.

 

7. Coloque no papel a história em seu estado bruto e prepare-se para trabalhar bastante sobre o texto

            Sei que cada uma tem um jeito diferente de escrever. Apesar de ser uma escritora estreante, estou há anos na academia convivendo muito de perto com a infame agonia da escrita da tese. Tem escritoras que demoram muito tempo para elaborar uma frase, pois só a colocam no papel quando está perfeita. Outras, por sua vez, vão escrevendo sem muitas preocupações estéticas e, depois, trabalham bastante sobre a revisão do texto. Na escrita acadêmica, eu era do primeiro time, mas rapidamente percebi que não poderia seguir com essa prática para a escrita do romance.

            Encare desta maneira: a história precisa sair de você e ir para o papel. Depois, você terá bastante tempo para retornar ao texto, revisá-lo, passar dias pensando em um frase específica e lembrar, no meio do banho, a palavra com a carga semântica exata que você buscava. Mas, durante os seis primeiros meses – ou até que você tenha por volta de sessenta mil palavras –, escreva sem voltar ao texto. Passado esse período, releia tudo e veja por onde você precisa começar a trabalhar, quais pontos das tramas estão fracos, como os personagens precisam ser melhor desenvolvidos e quais tensões precisam ser exploradas para que o livro fique instigante. Este trabalho de retorno ao texto é diferente do da escrita inicial, mas precisa igualmente ser feito todos os dias. 

 

8. Não tenha medo nem vergonha de ir aonde a escrita te levar

            Um dos aspectos que mais me ajudou durante a escrita do livro foi ter gerado o primeiro terço da obra sem sequer poder imaginar que um dia seria publicada. Mesmo depois que obtive uma boa sinalização da editora, me parecia tão irreal publicar um romance que segui o escrevendo como se ninguém fosse jamais ler as páginas onde eu deixava tanto de mim. Já com o contrato assinado e a certeza da eventual publicação do livro, resisti arduamente à tentação de retirar partes que pudessem fazer eu me sentir exposta. Resignei-me ao fato de que escrever um romance é necessariamente se expor, ainda que você queira se esconder em personagens fictícios e tramas mirabolantes.

            Sei que as pessoas próximas podem estar tentando estabelecer o tanto da Mayra que está na Alma – especialmente as fraquezas e as atitudes contraditórias com os preceitos feministas. Mesmo o livro estando distante de uma autobiografia, acredito que um dos elementos que o torna – modéstia à parte – um bom livro, é o fato de que, realmente, eu o escrevi de maneira autêntica. A voz da Alma, mesmo as partes mais vergonhosas e incômodas, é de alguma forma a minha voz também. Acredito que escrevi um livro sobre acontecimentos fictícios, mas sentimentos reais. E isso foi o que permitiu a criação de uma história capaz de instigar e conectar-se à sua leitora.  

            Por fim, lembro mais uma vez que as sugestões aqui compartilhadas são as que funcionaram para mim. Isso não significa que elas servirão para você, mas espero que ao menos parcialmente elas possam ter utilidade. Tem tantas histórias incríveis que ainda precisam ser contadas, tantas personagens interessantes que merecem ser trazidas ao mundo e tantas páginas em branco que poderiam ser preenchidas com o talento e a força das mulheres. Obviamente, nem todas as mulheres precisam escrever um livro, mas, pelo o que tenho visto, tem muito mais escritoras talentosas em potencial do que capas de livro com nomes femininos em livrarias. Precisamos mudar isso.   

 

 

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