Confira o primeiro capítulo de "A serpente e as asas feitas de noite", de Carissa Broadbent

01/04/2024

A serpente e as asas feitas de noite (tradução de Jana Bianchi) é sucesso no TikTok e o primeiro volume da duologia Nascidos da Noite, a saga inicial de Coroas de Nyaxia, uma romantasia repleta de magia das sombras, intrigas e romances perigosos. O livro chegou ao mercado em fevereiro pela editora Suma, o selo de ficção especulativa da Companhia das Letras. Com uma trama permeada por vampiros traiçoeiros e um torneio violento, o livro narra a história de Oraya, uma humana que vive em um clã de vampiros e que precisará vencer um torneio mortal para conquistar aquilo que ela mais deseja.

Carissa Broadbent é motivo de preocupação para pais e professores desde os nove anos, quando começou a criar histórias impiedosamente sombrias. Desde então, suas narrativas ficaram (um pouco) menos deprimentes e (bem) mais envolventes. Agora, ela escreve fantasias com uma boa dose de mulheres duronas e uma pitada generosa de romance. Ela mora com o marido, além de um coelho muito bem-educado, outro coelho muito mal-educado e um gato antipático em Rhode Island.


Leia abaixo o primeiro capítulo de A serpente e as asas feitas de noite

Começou como um treino. Apenas uma brincadeira, um pequeno exercício. Algo que eu precisava provar a mim mesma. Não sabia muito bem quando tinha se transformado em esporte — minha rebelião sórdida e secreta.

Para alguns, podia parecer idiota que eu, uma humana, tentasse caçar à noite, quando ficava em desvantagem considerável em relação à presa. Mas era à noite que eles agiam, então era à noite que eu devia agir também. 

Me espremi contra a parede, a adaga bem apertada entre os dedos. A noite estava quente, o tipo de noite em que o calor do sol perdura na umidade vaporosa do ar por muito tempo além do crepúsculo. O cheiro pairava numa nuvem espessa e pútrida — comida estragada no lixo dos becos, sim, mas também carne podre e sangue coagulado. Os vampiros não se preocupavam em limpar a bagunça nos assentamentos humanos da Casa da Noite.

Humanos deviam estar em segurança ali, dentro das muralhas do rei­no — eram cidadãos, mesmo que inferiores, mais fracos que os Nascidos da Noite em todos os sentidos. Mas a segunda verdade não raro tornava a primeira irrelevante. 

O homem era um Hiaj, as asas encolhidas bem perto das costas. Aparen­temente, não era um grande usuário de magia, porque não as escondera para facilitar a caçada. Ou talvez só gostasse do efeito que a visão delas exercia sobre a presa. Alguns eram exibidos assim. Gostavam de ser temidos. 

Do telhado, vi o homem rondar sua caça — um garotinho de uns dez anos, talvez, embora pequeno devido à evidente má nutrição. Estava no quintal cercado de uma casa de pau a pique, chutando uma bola pela terra batida, totalmente alheio à morte que o espreitava. 

Era muito, muito idiota da parte do menino estar sozinho no quintal àquela hora da noite. Mas, enfim, eu sabia melhor do que ninguém como era cansativo crescer com a constante sensação de perigo iminente. Talvez a família tivesse mantido a criança dentro de casa após o pôr do sol, todos os dias, pelos últimos dez anos. Um único lapso já seria suficiente, uma mãe distraída que esquecia de chamar o filho para dentro, um menino emburrado enrolando para entrar e jantar. Uma única noite em uma vida inteira.

Acontecia com muita frequência.

Mas não aconteceria naquela noite.

Quando o vampiro se moveu, eu me movi também.

Desci do telhado e aterrissei nos paralelepípedos. Apesar de ter sido silenciosa, a audição dos vampiros era impecável. O homem se virou, identi­ficando minha presença com olhos gélidos e lábios curvos revelando o brilho de marfim afiado.

Será que ele tinha me reconhecido? Às vezes acontecia. Mas nem dei chance ao sujeito.

Já era quase rotina àquela altura. Um sistema que eu aperfeiçoara ao longo de centenas de noites idênticas àquela.

As asas primeiro. Dois cortes, um em cada — o suficiente para impedir o vampiro de voar. Era fácil no caso dos Hiaj, cuja pele membranosa das asas era delicada feito papel. Às vezes eu pegava vampiros Rishan, e as coi­sas ficavam um pouco mais complicadas — era mais difícil perfurar as asas emplumadas. De uma forma ou de outra, eu havia refinado a técnica. Aquele passo era importante, e era por isso que vinha primeiro. Precisava manter os vampiros no chão comigo. Uma vez cometi o erro de pular essa etapa e quase não sobrevivi para contar a história.

Não havia como eu ser mais forte do que eles, então tinha de ser mais precisa. Sem tempo para erros.

O vampiro deixou escapar um som entre um arquejo de dor e um rugi­do de raiva. Minha pulsação parecia um tamborilar rápido, o sangue fluindo próximo à superfície da pele. Me perguntei se ele porventura conseguia sentir o cheiro. Eu tinha passado a vida inteira tentando esconder o pulsar do meu sangue, mas, naquele momento, estava grata por minha natureza. Aquilo os deixava idiotas. O babaca não estava nem sequer armado, mas saltou na minha direção sem nem pestanejar.

Eu amava — amava mesmo, de verdade — quando me subestimavam.

Um golpe na lateral do corpo, entre as costelas. Outro na garganta. Não o suficiente para matar. Mas o suficiente para fazê-lo sair cambaleando.

Empurrei o vampiro contra a parede, a adaga espetando seu corpo para mantê-lo imóvel. Eu havia besuntado a arma com dhaivinth — um parali­sante de ação rápida, potente, embora de curta duração. O efeito só duraria alguns minutos, mas eu não precisava mais do que isso.

Ele conseguiu infligir apenas alguns arranhões em minha bochecha com as unhas afiadas como lâminas antes de seus movimentos começarem a enfraquecer. E, no instante em que vi seus olhos piscando rápido, como se estivesse tentando despertar a si mesmo, golpeei.

Você precisa empurrar com força para atravessar o esterno.

E assim o fiz — com força o bastante para trincar o osso, para abrir passagem até o coração. Vampiros eram mais fortes do que eu em todos os aspectos — com corpos mais musculosos, movimentos mais rápidos, dentes mais afiados.

Mas seus corações eram tão frágeis quanto os dos humanos.

No instante em que minha lâmina penetrava o peito da vítima, eu sem­pre ouvia a voz do meu pai.

Não desvie o olhar, serpentezinha, sussurrava Vincent em meu ouvido.

E nunca desviei. Nem na época, nem depois. Porque eu sabia o que veria ali na escuridão. Veria o belo rosto de um garoto que eu havia amado muito, e também os detalhes de minha adaga sendo enterrada em seu peito.

Vampiros eram filhos da deusa da morte. Então, para mim, era meio en­graçado que temessem o descanso final tanto quanto os humanos. Eu ficava olhando todas as vezes, e sempre via o terror se espalhar por seus semblantes quando entendiam que havia chegado a hora de partir.

Pelo menos nisso éramos iguais. Pelo menos, no fim da vida, éramos todos covardes pra caralho.

O sangue vampírico era mais escuro que o humano. Quase preto, como se tivesse escurecido camada a camada pelo consumo de sangue humano e animal ao longo dos séculos. Quando deixei minha vítima cair, estava co­berta pelo fluido.

Recuei um passo para longe do cadáver. Foi quando vi a família me en­carando — eu tinha sido silenciosa, mas não o bastante para evitar atenções indesejadas, considerando que estava quase na soleira da porta deles. A mãe agora apertava o garoto com força contra o ventre. Havia um homem com eles também, além de outra criança, uma menininha mais nova. Eram magros, vestiam roupas simples e puídas, manchadas após longos dias de labuta. Os quatro estavam parados à porta, os olhos fixos em mim.

Congelei, como um cervo avistado por um batedor na floresta.

Era estranho que fossem aqueles humanos famintos, e não o vampiro, que tivessem me feito passar de caçadora à caça.

Talvez a razão fosse o fato de que eu sempre sabia o que era quando es­tava entre os vampiros. Mas, quando olhava para aqueles humanos, a linha ficava mais borrada e indefinida — como se eu estivesse observando um reflexo distorcido de mim mesma.

Ou talvez eu fosse o reflexo.

Eles eram como eu. Mesmo assim, não conseguia encontrar similaridades entre nós. Minha impressão era a de que, se eu abrisse a boca para falar, nem sequer entenderíamos os ruídos emitidos uns aos outros. Pareciam animais aos meus olhos.

A verdade cruel era que talvez parte de mim tivesse nojo deles, a mesma parte que tinha nojo de minhas próprias falhas humanas. Mas outra parte — talvez a que lembrava que eu já havia morado numa casa muito parecida com aquela — tinha vontade de se aproximar.

Eu não faria algo assim, óbvio.

Não, eu não era uma vampira. Era algo que ficava mais claro a cada se­gundo que passava. Mas tampouco era como aquelas pessoas.

Senti algo gelado em minha bochecha. Toquei a pele, e meus dedos vol­taram úmidos. Chuva.

As gotas dispersaram nosso silêncio contido. A mulher deu um passo adiante, como se quisesse dizer algo, mas eu já me esgueirara de novo para a proteção das sombras.

 

***

 

Fui incapaz de resistir ao atalho. Normalmente, teria escalado o castelo e seguido direto para o meu quarto nas torres a oeste. Em vez disso, subi pelo lado oposto, pulando os muros do jardim antes de continuar para a ala dos criados. Entrei pela janela, que dava para um arbusto avantajado repleto de botões azuis de índigo, cintilando prateados sob o luar. Assim que meus pés to­caram o piso, soltei um palavrão, quase caindo quando senti o que parecia um monte de tecido fluido deslizando contra a madeira lisa sob as minhas botas.

A risada soou mais como o grito de um corvo, que em seguida se trans­formou em uma cacofonia de tossidas.

— Seda — resmungou a idosa. — A melhor armadilha pras ladrazinhas.

— Este lugar está um caos do caralho, Ilana.

— Ah, pronto.

Ela surgiu de trás de uma parede e me encarou com os olhos semicerra­dos, puxando a fumaça do cigarro com uma inspiração funda e chiada antes de soltá-la pelo nariz. Estava usando uma cascata de saiotes de chiffon tingidos em diferentes cores. O cabelo, preso num coque de volume admirável no topo da cabeça, alternava mechas pretas e grisalhas. Pingentes dourados pendiam das orelhas, e os olhos enrugados estavam pintados com uma sombra azul­-acinzentada e delineados com uma camada generosa de kohl.

A morada dela era tão colorida e caótica quanto a própria mulher — com roupas, joias e tintas brilhantes espalhadas por todos os lados. Eu tinha entrado pela janela da sala de estar, que fechei para evitar a chuva. O lugar era minúsculo, mas muito mais agradável que os barracos de pau a pique dos assentamentos humanos.

Ela me olhou de cima a baixo, esfregando o pescoço.

— Não vou tolerar críticas de uma ratinha encharcada como tu.

Olhei para baixo para analisar minha situação e me sobressaltei. Só ali, sob a luz cálida do lampião, notei como estava péssima.

— Não dá nem pra desconfiar como tu é bonita por baixo disso tudo, Oraya — prosseguiu ela. — Determinadíssima a assumir a aparência menos atraente possível. O que me lembra que… tenho uma coisinha pra ti. Aqui. — Com mãos encaroçadas e artríticas, ela vasculhou uma pilha amarrotada a seu lado e depois atirou um punhado de tecido para mim. — Pega.

Consegui agarrar o volume no ar, e depois o desenrolei. O comprimento do corte de seda era quase igual à minha altura; o pano era de um tom pro­fundo de violeta, com as barras bordadas em dourado.

— Me fez pensar em ti — continuou Ilana, buscando apoio no batente da porta antes de baforar de novo a fumaça do cigarro.

Nem perguntei de onde ela havia afanado aquele tipo de coisa. A idade não tinha tornado seus dedos nem um pouco menos leves e hábeis — ou ávidos.

— Melhor a senhora ficar com o tecido. Eu não uso esse tipo de coisa. A senhora sabe.

No dia a dia, eu vestia apenas preto, peças simples que chamavam pouca atenção e me davam uma amplitude completa de movimentos. Nunca usava roupas vibrantes (o que atrairia olhares indesejados), esvoaçantes (o que per­mitiria que me segurassem) ou restritivas (o que reduziria minha habilidade de lutar ou fugir). Vestia peças de couro na maior parte do tempo, mesmo no calor opressivo do verão. Era um material que protegia bem e atrapalhava pouco.

Claro que eu admirava coisas bonitas como qualquer outra pessoa. Mas estava cercada de predadores. A sobrevivência vinha acima da vaidade.

Ilana bufou.

— Também sei que ama essas coisas, ratinha. Mesmo tendo medo de usar. Que peninha… Jovem só desperdiça a juventude. E a beleza também. A cor combina contigo. Usa esse troço pra dançar pelada lá no seu quarto, não ligo.

Franzi a testa e olhei para a miríade de cores.

— É o que a senhora faz com suas sedas?

Ela deu uma piscadela.

— Isso e muito mais. E nem vem fingir que tu não faz o mesmo.

Ilana nunca estivera em meu quarto — ainda assim me conhecia bem o bastante para saber que eu, de fato, tinha uma gaveta cheia de quinquilharias coloridas que vinha coletando ao longo dos anos. Coisas que eram desne­cessariamente ostentosas para usar naquele tipo de vida, mas que talvez eu pudesse sonhar em usar em outra realidade.

Por mais que eu tentasse explicar, Ilana não entendia minha cautela. A idosa já deixara claro várias vezes estar farta — “Farta!”, proclamava ela — de ter cautela.

Eu honestamente não sabia como a velha morcegona sobrevivera tanto tempo daquele jeito, mas era grata por isso. Os humanos que eu tinha visto nos cortiços naquela manhã não eram nada parecidos comigo, e os vampiros que me cercavam, menos ainda. Apenas Ilana se encontrava no meio-termo, assim como eu.

Embora por razões muito diferentes.

Eu tinha sido criada naquele mundo; Ilana, por outro lado, se juntara a ele por vontade própria, dez anos antes. Quando adolescente, eu era fascinada por aquela mulher. Tinha conhecido poucos humanos. Não entendia na época que Ilana era, mesmo entre humanos, um tanto… peculiar.

A idosa tocou o pescoço de novo. Percebi então que o lenço que segurava entre os dedos não era vermelho — não originalmente, ao menos. Cheguei mais perto e vi os ferimentos em sua garganta: três conjuntos de dois furos. Além da atadura no pulso, só Nyaxia sabia quantas outras feridas mais ela tinha.

Minha expressão devia ter mudado, porque ela soltou outra risada.

— Um jantar dos grandes esta noite — explicou ela. — Fui bem paga. Paga pra passar a noite com homens bonitos chupando meu pescoço. A Ilana jovem teria achado o máximo.

Não consegui me forçar a abrir um sorriso.

Sim, eu não tinha ideia de como Ilana sobrevivera tanto tempo. A maior parte dos fornecedores voluntários de sangue humano — que já eram poucos — acabavam mortos em menos de um ano de trabalho. Eu sabia muito bem quanto autocontrole os vampiros precisavam ter quando estavam com fome.

Em algumas coisas, Ilana e eu jamais concordaríamos.

— Vou ficar um tempo longe — falei, mudando de assunto. — Só queria avisar, assim a senhora não fica preocupada.

Ilana fechou a cara. Mesmo na penumbra, dava para ver as pálpebras pintadas com a sombra clara. 

— Aquele maldito. Tu vai mesmo participar.

Eu não queria ter aquela conversa, mesmo sabendo que o assunto era iminente.

— A senhora devia cogitar a ideia de sair da cidade por um tempo — continuei. — Ficar nos assentamentos. Sei que a senhora odeia, mas pelo menos lá…

— Que se foda.

— É o Kejari, Ilana. Aqui não vai ser seguro para a senhora. Nem para qualquer outro humano fora dos assentamentos protegidos.

— Assentamentos protegidos… Quer dizer aquele bando de cortiços. Tem uma razão pra eu ter ido embora de lá. O lugar cheira a miséria. — Ela franziu o nariz. — Miséria e mijo.

— É seguro.

Não me passou despercebida a ironia de estar falando aquilo coberta de sangue justamente depois de ter retornado do local.

— Ah, pronto. Segurança é um negócio superestimado. Que tipo de vida é essa? Quer que eu vá embora quando o evento mais empolgante dos últimos dois séculos tá prestes a acontecer bem na soleira da minha porta? Não, meu bem. Nem ferrando.

Eu já tinha dito a mim mesma que precisava ficar calma — já sabia que Ilana provavelmente não me daria ouvidos. Mesmo assim, não consegui evitar o tom de frustração na voz.

— A senhora está sendo tola. São só alguns meses. Talvez até alguns dias! Se for embora para evitar nem que seja só a abertura…

— Tola! — cuspiu ela. — É ele falando, por acaso? É assim que ele te chama sempre que quer fazer alguma coisa que foge ao controle dele?

Bufei entredentes. Sim, Vincent de fato me chamaria de tola se eu es­tivesse me recusando a buscar proteção sem um bom motivo. E ele estaria correto, inclusive.

Os assentamentos humanos podiam ser um bando de cortiços, mas ali as pessoas ao menos tinham um verniz de proteção. Já na cidade? Eu não sabia o que seria de Ilana — ou de qualquer humano dentro das muralhas — depois que o Kejari começasse. Em especial uma humana que já tinha fornecido sangue antes.

Eu ouvia as histórias sobre como os humanos eram usados naquele tipo de torneio. Não sabia se era verdade ou exagero, mas os relatos faziam meu estômago revirar. Às vezes, tinha vontade de perguntar a Vincent, mas sabia que ele acharia que eu estava temendo por minha própria seguran­ça. Não queria que se preocupasse comigo mais do que já fazia. Além do mais… ele não sabia exatamente quão próxima de Ilana eu ficara ao longo dos últimos anos.

Vincent não sabia de muitas coisas. Partes de mim que não correspon­diam à visão que ele tinha da filha. Da mesma forma que havia coisas sobre mim que Ilana jamais entenderia.

Ainda assim, não saberia o que fazer caso perdesse qualquer um deles. Eu não tinha família ali. Quem quer que estivesse na casa comigo quando Vin­cent me encontrara havia morrido. Caso eu ainda tivesse parentes distantes, estariam presos em algum lugar fora do meu alcance — até que eu vencesse o Kejari, ao menos. Mas eu tinha Vincent, e tinha Ilana, e eles haviam se tor­nado tudo o que eu imaginava que fosse uma família, mesmo que nenhum dos dois pudesse compreender todas aquelas partes contraditórias dentro de mim.

Agora que a possibilidade de perder Ilana repentinamente parecia tan­gível demais, o medo pressionava meu coração e se recusava a soltar.

— Ilana, por favor. — Minha voz saiu estranhamente embargada. — Por favor, vá embora.

A expressão da mulher se suavizou. Ela apagou o cigarro num cinzeiro abarrotado e se aproximou de mim a ponto de eu conseguir enxergar as ru­gas ao redor de seus olhos. Com a mão áspera feito couro, acariciou minha bochecha. Ela cheirava a cigarro, misturado com um perfume de rosas pun­gente demais — e a sangue.

— Tu é uma doçura — disse ela. — Espinhosa, mas uma doçura. E meio ácida, de certa forma. Tipo um… tipo um abacaxi.

Mesmo sem querer, o canto da minha boca se curvou em um sorriso.

— Um… abacaxi?

Que palavra ridícula. Se eu a conhecia bem, provavelmente Ilana tinha inventado o termo.

— Eu tô cansada, meu bem. Cansada de ter medo. Fui embora dos cor­tiços porque queria ver como era aqui, e vem sendo tão aventuresco quanto eu imaginava. Arrisco a vida todo dia pra estar aqui. Como tu.

— A senhora não precisa agir tolamente.

— Não ligar acaba virando uma forma de rebelião. Sei que tu sabe disso tanto quanto eu. Mesmo escondendo as cores lá no fundão do teu guarda­-roupa. — Ela ergueu as sobrancelhas, indicando com a cabeça minhas rou­pas sujas de sangue. — Mesmo se escondendo nas sombras dos becos entre os assentamentos.

— Por favor, Ilana. É só por uma semana. Não precisa ser durante o Ke­jari inteiro. Aqui. — Estendi o lenço de seda em sua direção. — Pegue esse troço brega e me devolva quando eu voltar. Prometo até que uso.

Ela ficou em silêncio por um longo tempo, depois pegou o pano e o en­fiou no bolso.

— Certo. Vou embora amanhã de manhã — afirmou, e soltei um suspiro de alívio. — Mas tu… tu, ratinha cabeça-dura… — Ela levou as mãos ao meu rosto, apertando minhas bochechas. — Toma cuidado. Não vou te dar um sermão aqui sobre o que ele tá te obrigando a fazer, mas…

Me desvencilhei do aperto impressionantemente forte da mulher.

— Ele não está me obrigando a fazer nada.

— Sei! — Eu tinha me afastado na hora certa, porque ela bufou com tanta fúria que fez gotículas de saliva voarem por todos os lados. — Não quero ver tu virar um deles. Seria… — Ela fechou a boca de supetão, analisando meu rosto enquanto uma onda perturbadoramente intensa de emoções varria sua expressão. — Seria chato pra cacete.

Não era o que ela queria dizer, e eu sabia. Mas Ilana e eu tínhamos aquele tipo de relacionamento: a honestidade nua e crua e a ternura desagradável ficavam ambas subentendidas nas coisas que não falávamos. Do mesmo jeito que eu não falaria com todas as palavras que competiria no Kejari, ela não diria em voz alta que temia pela minha segurança.

Ainda assim, me assustou ver a mulher à beira das lágrimas. Só então entendi que eu era a única pessoa que Ilana tinha na vida. Eu ainda tinha Vincent, ao menos; já ela, estava sozinha.

Meu olhar recaiu sobre o relógio, e soltei um palavrão.

— Preciso ir — resmunguei, avançando até a janela. — Não encha a cara até cair, sua biruta.

— E vê se não acaba empalada com aquela adagazinha enfiada na bun­da — retrucou ela, enxugando os olhos, sem resquício algum da vulnerabi­lidade de antes.

Bruxona doida, pensei com carinho.

Abri a janela e deixei a névoa da chuva de verão bater no meu rosto. Não planejei hesitar — mas algo pesado jazia na ponta da minha língua, pala­vras que eu só havia dito em voz alta uma vez, para uma pessoa que merecia muito menos que Ilana.

Mas ela já tinha desaparecido quarto adentro. Engoli em seco o que quer que estivesse prestes a dizer e mergulhei de volta na noite.

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