"Eu sou professora de língua portuguesa, estou no Colégio Santa Cruz há 17 anos e atualmente trabalho com os alunos numa aula de leitura. Minha história com os livros começou desde que me entendo por gente. Quando era pequena, depois do jantar, meus pais liam pra gente – meus três irmãos mais novos e eu. Era uma delícia, uma das melhores lembranças da infância. Assim que aprendi a ler, comecei a frequentar uma biblioteca do bairro e lia um livro por semana. Viajava, sonhava, sofria e adorava, sempre. A leitura me deu suporte para enfrentar todas as grandes dificuldades que tive – pouco sociável, até hoje, eu tinha nos livros os melhores amigos... Entrei na USP para estudar literatura, sânscrito e grego, mas no meio do caminho me apaixonei e fui morar no Rio, onde cursei a UERJ. Sempre cercada de livros, acabei me tornando professora."
Assim começamos a entrevista com a educadora Silvia Catunda, que por email bateu um papo com o
Blog da Brinque-Book e revelou temas, memórias e caminhos inspiradores sobre ser leitor. Silvia, além de professora de língua portuguesa com 17 anos de Colégio Santa Cruz, em São Paulo, garimpa boas leituras para a biblioteca do colégio e resenha livros em seu blog,
Caldo Literário.
Brinque-Book: O que as crianças desenvolvem por meio da leitura, da literatura e da contação de histórias?
Silvia Catunda: O que eu vejo na prática lá na escola é que a leitura é uma decodificação do universo em que vivemos. Ler é o jeito mais simples de entender, sem ter tido a experiência ainda, por N motivos, de vivenciar os nossos problemas, os dos outros, em diversas perspectivas. Acho que a leitura socializa, insere e também diverte, acolhe.
Vejo meninos e meninas na escola que têm questões de relacionamento e sobrevivem na leitura. O emocional vai se desenvolvendo de maneira diferente, mas eles vão ganhando respaldo, exemplos sem fim e acabam se arriscando mais. Ao longo do ano, a gente vê que mesmo aquele que é considerado meio nerd demais, acaba sendo admirado pela visão que apresenta de um ou outro fato, da segurança que apresenta ao falar de universo que muitos desconhecem, mas depois vão em busca de conhecer. Então, quando eles contam histórias, ou os populares contam, ou os reles mortais da zona do agrião, todos somos os mesmos: queremos saber mais, o que aconteceu, como assim? E se... Mas e depois?
É uma delícia, porque eles se apropriam das histórias, viram coautores e os ouvintes ficam ávidos para ouvir o restante. Muitas vezes, uma situação acaba se destacando, as perguntas vêm e a história do livro se perde porque eles trazem à baila as relações e reações que teriam se...
Delícia. As páginas viram a casa, a família, o universo inteiro.
No seu dia a dia, como é o trabalho que realiza com livros? Como as obras estão presentes nas atividades escolares de seus alunos?
Sinto que sou imensamente privilegiada nessas aulas de leitura. Para começar o espaço é uma delícia: uma sala pequena, com um tapetão e várias almofadas, cercado por um acervo com cerca de quatro mil livros. Um expositor enorme, em que colocamos as novidades e os livros mais lidos, para chamar a atenção dos alunos e conversa, muita conversa. Na verdade, contação de histórias.
Cada aluno apresenta um trecho daquilo que está lendo. Há alguns que se destacam pela memória, outros pela capacidade de entreter os colegas, outros pelo talento de narrar qualquer coisa. A gente percebe no olhar e nos suspiros a vontade de saber mais, de ouvir mais e aí eu interrompo o sonho para instigá-los a ler e saber o restante.
Nas aulas de leitura, eles podem escolher o livro que quiserem. Os próprios colegas acabam se incitando e sugerindo. Muitas vezes, eles recorrem a mim para ajudar na escolha e assim vai. Nas aulas em classe, alguns exemplares são escolhidos para uma leitura acompanhada, com trabalhos e avaliações. Nessa hora, eu apresento a eles dados sobre os autores e suas obras. É um diálogo bem interessante.
Ler em casa e ler na escola é muito diferente. Por quê?
Não sei se é tão diferente. Não sei se posso responder essa questão, porque, nas aulas de leituras, eles leem o que querem, no ritmo de cada um. Assim, muitos livros vêm de casa, acabam “pegando” e a biblioteca compra, pois a procura é grande.
Acho que como discutimos muito as leituras, eles conseguem perceber o que é uma leitura adequada para a faixa etária deles e o que não é. Quando fazem uma escolha aquém do esperado, eles mesmos já se justificam, dizendo que é só pra distrair...
O que eu acho muito legal nesse processo é que eles vão adquirindo um gosto leitor. Tem aqueles que preferem o bobajol, o escatológico, os que preferem as leituras informativas, as séries, e aos poucos, vão ficando fãs de autores. Passo de entrada para o aprofundamento nas leituras.
De que forma professores podem estimular o hábito leitor? E os professores, de alguma maneira, são responsáveis por plantar essa sementinha em seus alunos?
Creio que essa questão está respondida na anterior. Na maioria das turmas, entre 28 e 29 alunos, há no máximo dois ou três que não leem. Os demais têm um bom ritmo de leitura e creio que essas aulas de leitura são responsáveis por esse interesse. A discussão que surge, o extrapolar o livro e entrar na vida mobilizam muito. Quando eles percebem que não estão mais discutindo apenas uma história, mas alguns valores se sentem importantes, conscientes. Isso é lindo!
Os professores têm esta responsabilidade sim. Plantar as sementes, instigar, provocar é fundamental para despertar a curiosidade. Depois disso, é moto perpétuo.
Na sua opinião, o que é um bom livro para crianças? O que ele precisa ter?
Um bom livro para crianças é aquele que prende, que instiga, que ajuda a criança a fazer relações e ampliar a leitura do mundo. Quando ele compara algum fato ou personagem com a família, ou a escola ou qualquer outro circuito de vida, ele começa a reler o mundo. E também se posiciona.
Creio que o entendimento da vida deve ser o sumo da leitura. Isso as histórias precisam ter: humanidade e reflexão. A criança precisa ler aquilo que a mobiliza, que faz entender o que é o espaço em que ele vive.
Há muitos estilos, coleções, séries e tudo mais. Alguns se mobilizam com o escatológico em primeiro lugar e depois saem dessa baboseira e ingressam aos poucos em leituras mais sérias, mas condizentes com o seu universo. Os mais fantásticos livros e coleções trazem inquietação e o necessário: e se... fosse comigo, e se ele fizesse... e se ele não tivesse feito... Os monstros, os objetos mágicos, os bichos, os amigos, os traidores, os vilões estão presentes no nosso cotidiano, só nos falta identificá-los, a leitura é a porta de entrada para tanto.
Você tem um blog, onde resenha obras. Por favor, nos conte como faz essa seleção e o que leva ou não para o canal?
Eu trabalho para a biblioteca do Santa Cruz. Eles recebem uma infinidade de livros e eu escolho alguns ao acaso, pela capa, pelo nome, pelo autor, pela editora, sei lá... Vou lendo e resenhando. Aqueles que não gosto, não leio até o final. Avanço um pouco para saber se não é preconceito meu e deixo de lado. Não acho muito legal desmerecer o trabalho dos outros.
Assim, não publico o que não gostei de verdade. Sou responsável pela escolha dos livros que ficam no acervo do quarto e quinto ano do Fundamental 1 e alguma coisa para o acervo da biblioteca central. O que me impressiona é a quantidade de autores e bons textos que tenho lido.
Quais livros da Brinque-Book ou da Escarlate fazem parte do seu repertório, da sua formação? O que eles têm de especial?
Uma das editoras que eu olho pra selecionar o livro é a Escarlate/Brinque-Book. A escolha dos títulos além da qualidade das ilustrações que são primorosas, em boa parte deles, são motivadores para a escolha.
Para os maiores, a coleção
As 14 pérolas,
As aventuras e A Ilha de Nim,
Como viver para sempre – maravilhoso!,
A lenda do violeiro invejoso, entre outros. O que têm de especial é o conteúdo: rico, faz a gente pensar na vida, tem tudo aquilo que eu acredito ser necessário para ampliar horizontes.
O que mais você gostaria de dividir ou dizer sobre o seu trabalho e a importância dele na formação literária para uma criança? Tem algum projeto, atividade ou pensamento que você acredita que pode inspirar outros professores?
Tenho vontade, muita vontade, de iniciar um curso de contadores de histórias. Estou pensando em escolher alguns contos das Mil e uma noites, pedir para os alunos estudarem bem e depois colocá-los para contar, gravar e doar os CDS para a Fundação Dorina Nowil. As crianças são boas contadoras de histórias e os cegos merecem escutá-las também. Mas, por enquanto, a ideia ainda não está em prática.
Obrigada, Silvia, por compartilhar com a gente cada pensamento inspirador. E parabéns por seu trabalho e essa paixão por fazer com que a boa literatura chegue às crianças.