Um conto de fadas desencantado

06/12/2016

Por Bernardo Carvalho

Desde criança, ouço dizer que a literatura de cordel é um vestígio da Idade Média. Daí que não podia imaginar outra coisa além de uma história medieval quando soube da edição de um conto de fadas escrito por José Saramago e ilustrado por J. Borges, mestre pernambucano da xilogravura e da literatura de cordel. Na verdade, o conto de Saramago não tem nada de fadas. O autor toma a precaução de deixar isso bem claro logo no primeiro parágrafo. Ninguém mais acredita em fadas.

O lagarto do título é o que nos resta do dragão. De imaginário e extraordinário na sua existência há apenas o fato de aparecer de repente numa rua de Lisboa. Saramago, homem da razão num tempo em que a razão dá sinais de fraquejar, tenta resistir como pode. Alerta que sua história é o que hoje cabe à nossa desilusão: um conto sem fadas. Até a metamorfose simbólica do lagarto, cercado de polícias nas ruas de Lisboa, estará limitada ao que pode haver de menos imaginário e menos mágico (o vermelho sangue) para terminar na imagem surrada de uma pomba, representação inverossímil da paz onde tudo a contradiz.

O lagarto é um oximoro: um conto de fadas desencantado. É o esforço de um sopro de utopia onde a imaginação já não se aguenta em pé, constrangida pelo lugar-comum. E é por isso que as ilustrações de J. Borges ganham aí um papel ainda mais encantador, porque continuam aludindo, sem pudor nem medo, a um universo mágico que já não pode existir. Como nos quadros de Bruegel, são vestígios do encanto possível, não de fadas, mas do homem comum, num tempo que insiste em nos impor o clichê medieval das trevas.

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Bernardo Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. Estreou com Aberração e desde então tem se destacado como um dos melhores escritores contemporâneos brasileiros, traduzido para diversos idiomas. É autor de Simpatia pelo demônio, Nove noites e Reprodução.

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