Por Patricia Auerbach
Fui convidada pela Companhia das Letrinhas para falar num encontro sobre censura e literatura infantil. O assunto era importante e, ao planejar minha fala, só o que me vinha à cabeça eram os direitos do leitor. Não apenas porque acabei de lançar o livro Direitos do pequeno leitor, mas também porque falar de censura na literatura é tratar do cerceamento de questões fundamentais.
Ao organizar meu emaranhado de ideias para construir um raciocínio que fizesse sentido, cheguei a três direitos que me pareceram condensar os principais desafios da literatura infantojuvenil na batalha contra os exageros do politicamente correto. Assim como Direitos do pequeno leitor, são inspirados em Como um romance (editora Rocco), de Daniel Pennac.
Ilustração Marcelo Tolentino
1) Direito de experimentar sentimentos novos
No livro Direitos do pequeno leitor, terminei o texto dizendo que “todo pequeno leitor tem o direito de sonhar com um final feliz”, e nesse caso a palavra “sonhar” é que faz toda a diferença. Vivemos condenados a ser felizes 24 horas por dia. Estamos sufocados pela alegria editada das fotografias expostas em redes sociais, mas, no filme da vida, as coisas não funcionam dessa forma. Sonhar com o final feliz é um direito, mas a vida não é Facebook, o sorriso eterno não pode ser obrigação.
A gente tem por costume suavizar as verdades para contar as histórias mais doídas para as crianças, mas nem para elas é possível negar a dor de uma morte, uma separação ou um machucado. Nessas horas o faz de conta não funciona e é assim também na literatura. Ainda que seja ficção, o pacto estabelecido entre o leitor e a obra deve ser coerente, e fantasiar de alegria o que é dor não vai convencer ninguém.
Preocupo-me muito com o excesso de cantos arredondados da educação contemporânea e com esse olhar superprotetor contaminando cada vez mais a literatura infantojuvenil. Minha geração foi a da negação dos sentimentos. Aquela em que a criança se machucava e a mãe dizia “não foi nada”. Como “não foi nada”? O joelho sangrava, doía. Era alguma coisa!
O tempo passou e, apesar de ter os joelhos marcados, essas crianças crescidas transformaram-se em pais e mães incapazes de lidar com as dores e cicatrizes dos seus filhos. Por isso, na tentativa de protegê-los dos perigos, emborrachamos o chão, trocamos as árvores pelo brinquedão de plástico e criamos uma geração de crianças com joelhos intactos, mas incapazes de lidar com os tombos.
A velha comparação da literatura com a árvore é especialmente feliz nesse caso. Na árvore a gente se arrisca, inventa, recria caminhos. Árvore não tem lado certo para subir ou descer. Seus galhos balançam e sua resistência ao peso é incerta. Árvores têm espinhos, perfumes, texturas – e isso o brinquedão de plástico nunca vai conseguir oferecer.
A tentativa recente de limpar a literatura infantil de tudo o que é feio, mau ou triste induz nossos jovens leitores à uma percepção distorcida da vida. Estamos vendendo uma experiência em versão Disney e entregando cinema europeu, mas não se forma leitores competentes e apaixonados sem boa literatura. E literatura de verdade é feita de boas histórias, não de finais felizes.
Cada vez que uma criança sobe um galho, os caminhos se multiplicam e aumentam as dificuldades, mas cresce também seu ângulo de visão do mundo. Quando lê um bom livro, o leitor se depara com emoções que não conhecia, ou não podia nomear. Essa é uma experiência importante e formativa que certamente deixa marcas. Quando fala de literatura, Daniel Pennac diz que “ninguém retorna ileso de uma aventura como essa”. Ainda bem!
2) Direito de não entender
Corre entre pais, educadores e crianças a falsa ideia de um aprendizado perfeitamente prazeroso e lúdico e a noção equivocada de que a leitura deve ser pura fruição. Mas não há como aprender tabuada sem passar pela tarefa repetitiva de decorar seus valores e também não é possível vencer as páginas de um longo livro ou decifrar personagens complexos sem garantir a eles uma boa dose de esforço e dedicação.
Literatura é lugar de prazer e encantamento, mas é também o espaço da dúvida, do questionamento e da reflexão. Ao escolher os títulos que serão ofertados a um determinado grupo de crianças, é fundamental que se pense também no prazer dos desafios, ainda que, para experimentá-los, as crianças e os mediadores de leitura precisem aprender a conviver com as inseguranças e frustrações geradas pela complexidade do texto.
Buscar livros mais fáceis, substituir palavras ou interromper a leitura a cada parágrafo para dar explicações não são procedimentos que ajudam a formar leitores. Árvores não têm atalhos, todo mundo começa do chão, e boa literatura é árvore antiga. Pra subir, tem que ser escalando!
3) Direito de conhecer
A literatura é um caminho mágico e potente para entrar em contato com o passado e com assuntos difíceis que muitas vezes não seriam tratados fora dali. Infelizmente, tentando preservar nossas crianças e respeitar as regras distorcidas do que seria “politicamente correto”, certos assuntos têm sido considerados impróprios e por isso abolidos da ficção infantil, apesar de estarem cada vez mais presentes na vida das nossas crianças.
Assim como não é possível corrigir os problemas do mundo, também não se pode blindar o universo infantil de todo o mal. Episódios de racismo, abusos e questões que envolvem sexualidade e gênero fazem parte, ainda que indiretamente, da vida de muitas crianças. Por isso não me parece justo que a literatura, campo privilegiado de debate e reflexão, seja privada desses temas em função de um falso moralismo supostamente protetor, que só faz prejudicar as crianças impedindo-as de conhecer e discutir temas importantes do mundo à sua volta.
Sofrer com os erros dos personagens ficcionais é um caminho seguro para não repetir seus tropeços na vida real. Ler sobre a escravidão ajuda a entender a insensatez que é a discriminação a que assistimos ainda hoje. A censura a obras clássicas não ajuda em nada, ela tira das prateleiras Monteiro Lobato, porque sua linguagem racista em relação à personagem Tia Nastacia é agressiva aos nossos ouvidos, mas infelizmente não consegue apagar o preconceito da rotina de vida de tantas crianças brasileiras. E assim, o que deveria servir de proteção acaba virando ameaça, já que a falta de espaço para falar sobre o problema só faz contribuir para a manutenção da sua existência.
O mesmo exemplo serve para o livro Enquanto o sono não vem, distribuído pelo Programa Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) e que foi duramente criticado e retirado das escolas por considerarem que o tema incesto, ainda que tratado com sutileza e cuidado, não era pertinente à faixa etária de 7-8 anos.
Esqueceram-se os defensores do recolhimento da obra que vivemos num país em que a maioria dos casos de abuso infantil ocorre justamente dentro de casa e que as denúncias de violência doméstica contra crianças da primeira infância crescem a cada ano. Sinceramente acredito nas boas intenções, mas os problemas existem e acho que os assuntos não devem ser sumariamente excluídos das prateleiras escolares. Acredito em uma curadoria que privilegie a qualidade literária e estou certa de que é o conhecimento que leva ao autocuidado e é a mudança de comportamento que vai fazer a diferença na segurança e na vida das nossas crianças – e não a retirada dos livros.
Nunca acreditei em censura e acho que a arte não precisa servir a nenhum propósito moralista ou pedagógico, mas, depois dessa reflexão e dos depoimentos de professores e especialistas durante o evento promovido pela Companhia das Letrinhas, a única certeza que tenho é que as preocupações são legitimas, mas as ações estão seguindo na direção errada. Estamos censurando a possibilidade de fracasso e frustração. Censurando a dor, o medo e o sofrimento das páginas dos livros como se eles não fossem parte da vida desde a primeira infância. Minha dúvida é quem é que precisa dessa censura e para quem ela traz algum conforto.
Crianças sempre adoraram árvores, os adultos é que inventaram o brinquedão.
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Patricia Auerbach é escritora e ilustradora, autora de obras como Direitos do pequeno leitor (2017), Histórias de antigamente (2016) e Pequena grande Tina (2013).