Por Sandra Medrano
O tema censura nos livros para as crianças tem feito parte de muitas discussões e reflexões nestes últimos tempos. Para abordar a relação literatura e censura, podemos recorrer a Antonio Candido, que escreveu em 1988 um texto que reforça o direito ao acesso a esse bem cultural:
Ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. (...) A literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como talvez não haja equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade.
Assim, se a literatura é um direito, relacioná-la à censura – como temos visto nos últimos tempos – parece indicar que estamos violando, de alguma maneira, esse direito.
Há muitas maneiras de abordar a questão da censura e tentar entender suas motivações. Uma delas é analisar pelo viés da relação entre concepção de criança e concepção de livros para crianças.
Ao analisarmos essas concepções, é possível verificar que elas mudaram ao longo do tempo. Se olharmos para a história, podemos fazer um breve percurso, partindo do século XVIII, quando surge o conceito de criança e de infância. Até esse período, as crianças eram consideradas adultos em miniatura e assim tratadas em todos os aspectos. É possível imaginar que antes desse período, os assuntos a que tinham acesso eram os mesmos que circulavam no mundo dos adultos.
Na outra ponta desse caminho, é possível reconhecer uma distinção total da criança do mundo adulto. Muitas vezes, considerada tão diferente como quando é indicado: “homens, mulheres e crianças” – como se fossem totalmente assexuadas durante esse período. Essas concepções de criança e de infância, impactam a literatura, que parte, portanto, de uma não distinção do seu leitor, adulto ou criança, para outra em que se considera a necessidade de resguardar e educar a criança.
Esta última a escritora argentina Graciela Montes chama de “curral da infância”, pois considera uma criança submetida e protegida, tida como um “cristal puro” e uma “rosa imaculada”, a quem o adulto deve proteger para que não se quebre e que floresça. Essa literatura, segundo a autora, não pode incluir a crueldade, nem a morte, nem a sensualidade, nem a vida real, porque se acredita pertencer ao mundo dos adultos e não ao “mundo infantil”. A realidade retratada nos livros é, assim, despojada de tudo que seja denso, matizado, dramático, contraditório, absurdo, doloroso: de tudo que pode brotar dúvidas e questionamentos.
Podemos acompanhar um exemplo dessa relação entre concepção de criança e literatura ao analisarmos as diferentes versões de Chapeuzinho Vermelho. Zohar Shavit, israelense especialista em literatura, apresenta um estudo em que analisa diferentes versões desse conto ao longo da história.
No século XVII, portanto antes da conceitualização da infância, Charles Perrault registrou esse conto, que não tinha como público específico as crianças. Nessa versão, o conto termina com o Lobo devorando a Chapeuzinho. Tem tom muitas vezes irônico e passagem erótica, como quando Chapeuzinho tira sua roupa e se deita na cama com o Lobo.
Já no século XIX, com os Irmãos Grimm e com o conceito de criança e infância já alterado, a literatura infantil ganha contornos educacionais, para ensinar a essa geração os valores e princípios que eram caros à sociedade da época. E na versão desses autores, é garantido um final feliz, em que a avó e Chapeuzinho Vermelho são salvas, e o Lobo é morto.
Ilustração Marcelo Tolentino
Nos dias atuais, temos algumas versões do mesmo conto, em que são alterados aspectos como o conteúdo da cesta que Chapeuzinho Vermelho leva para sua avó. O vinho é trocado por leite, frutas e pote de mel ou geleia, porque acredita-se que as crianças não podem ter contato com bebida alcóolica. Em alguns livros, o Lobo não devora a avó – pois a morte não deve ser assunto de criança, submetida ao “curral da infância”. Ele a coloca no armário e não é morto; sai correndo quando o caçador chega.
Essas diferentes versões mostram como a relação pode ser muito direta, entre a concepção de criança e o que se oferece para sua leitura, chegando a ser identificada como forma de censura, se consideramos, como aponta Graciela Montes, a censura como um mecanismo ideológico de revelação/ocultamento que serve para o adulto domesticar e submeter (ou colonizar) as crianças. Parece muito forte essa ideia, mas corrobora com ela a fala de um escritor peruano chamado Santiago Roncagliolo, que, em entrevista em 2016, disse:
Agora, quando escrevo livros para crianças, não me deixam colocar os maus! Nem bruxas, nem ogros, nem monstros... A culpa é do afã da sociedade por criar uma bolha para os filhos às custas de obrigar os escritores a criar literatura sonsa. E o que ocorre é que o mau desta literatura ‘sonsa’ não é a crítica que recebemos. O mau é que cria leitores sonsos, crianças sem nervos nem reflexos morais.
Infelizmente, essa restrição não é exclusividade do Peru. É também vivida aqui e em outros lugares do mundo. Nesse contexto de censura, restrição ou redução, um aspecto merece especial atenção no Brasil, pois se relaciona ao momento atual de uma importante política pública de ensino da leitura e da literatura na escola: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), produzida pelo Ministério da Educação, com o objetivo de se tornar um documento orientador dos currículos estaduais e municipais, de redes públicas e privadas, definindo os direitos de aprendizagem dos alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental.
A BNCC teve sua primeira versão publicada em setembro de 2015, depois foi produzida uma segunda versão, divulgada em maio de 2016. A terceira versão, finalizada em abril de 2017, encontra-se no momento no Conselho Nacional de Educação, que deve apresentar seu parecer em dezembro deste ano. Essa versão traz aspectos que precisam ser analisados criticamente, pois impactam diretamente na formação leitora das crianças e no acesso ou nas restrições a que serão submetidas.
Especificamente em relação ao Ensino Fundamental I – 1o ao 5o ano – há uma indicação da separação do ensino da literatura no eixo que denominaram “educação literária”. Tal separação merece atenção, pois pode, ao contrário de garantir um espaço exclusivo e portanto positivo, remeter ao que já vivenciamos quando foi instituída a “Educação Artística” nas escolas, em que as Artes não era objeto de conhecimento. Merece atenção redobrada algumas passagens do documento, em que se afirma:
Nesse eixo [educação literária], e também no eixo Leitura, a escolha dos textos para leitura pelos alunos deve ser criteriosa, para não expô-los a mensagens impróprias ao seu entendimento, consoante determinam os Artigos 78 e 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069/1990).
Essa indicação parece se preocupar e cuidar do que será oferecido às crianças, mas o trecho “mensagens impróprias para seu entendimento” chama a atenção. Tanto pela subjetividade a que pode remeter a palavra “imprópria” quanto pela definição do que será considerado possível de ser compreendido pela criança (a concepção de criança). Além disso, causa estranheza quando vamos aos conteúdos dos artigos citados:
Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo.
Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.
Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil Não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Em tempos de censura como os que estamos vivendo, a forma de abordar esse tema parece ser bastante arriscado.
Considerando o direito à literatura, e a garantia de acesso e não a restrição, outros artigos poderiam dar sustentação para a formação dos jovens, como nos exemplos a seguir:
Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
Art. 58. No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura.
Ainda em relação ao ensino da leitura, outro aspecto abordado na BNCC preocupa, pois revela uma possível redução em relação aos textos que os estudantes terão acesso ao longo de sua escolaridade que pode impactar na apropriação das culturas do escrito, caso seja aprovada pelo Conselho Nacional de Educação. Para se ter uma visão da abordagem proposta, a tabela abaixo sintetiza os critérios indicados para seleção e oferta de textos aos alunos nos anos iniciais do ensino fundamental:
A definição de tamanho dos textos – que começam no 1o ano com 200 palavras até chegar ao 5 o ano com 600 palavras – e o nível de textualidade que indicam ser adequados ao longo da escolaridade parecem apontar para material produzido especificamente para fins educativos, e não para que as crianças se aproximem da leitura como prática social e a literatura como produção artística, da cultura escrita. Essa restrição, além de artificializar a língua, restringe as condições de crianças e jovens a fazer parte desse universo como participantes ativos e críticos e produtores de cultura escrita.
E quem mais perde com isso? Infelizmente, quem mais perderá são as crianças que têm menos acesso à cultura escrita fora da escola, e que provavelmente são, em grande parte, as crianças da escola pública. Para essas crianças, será negada a possibilidade de diminuição da desigualdade de oportunidades que têm, na escola pública, seu principal espaço de garantia. As crianças de famílias com mais acesso a esse tipo de cultura provavelmente terão, por outras vias, possibilidades de apropriar-se de práticas sociais de uso da leitura e da escrita.
Entretanto, se retomarmos as notícias recentes de censura aos livros, é possível verificar que, apesar de as crianças de famílias com maior poder aquisitivo – que se encontram em escolas particulares – terem mais contato com as culturas do escrito possivelmente elas também terão, por outros motivos, privação de acesso à literatura.
Com esse cenário tão limitador para todas crianças brasileiras, justifica-se a necessidade de advogarmos intensamente a favor do acesso à literatura de forma irrestrita. Peter Hunt, especialista em literatura infantil, nos faz lembrar que:
Passamos nossa vida – como nossos filhos passarão – constantemente processando, pesando e equilibrando uma gama fenomenal de conhecimento, percepções e sensações. Não podemos ser simplistas a respeito deles e não esperamos que nossos filhos sejam. Deve ser óbvio que o mesmo aconteça em nossas abordagens dos livros para crianças e na relação com eles.
É preciso confiar na capacidade intelectual das crianças, na capacidade de lidarem com as informações e construírem conhecimentos e, principalmente, de lidarem com a literatura. E só com acesso e espaço para a discussão que podemos formar pessoas que pensem, que criem e que, principalmente, façam o mundo progredir. E um dos espaços para fazer isso acontecer é a escola.
Bibliografia de referência:
Antonio Candido, O direito à literatura. Em: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 5a ed, 2001
Graciela Montes, El curral de la infancia. México: Fondo de Cultura Económica, 2001.
Peter Hunt, Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
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Sandra Mayumi Murakami Medrano é pedagoga, mestre em didática pela Universidade de São Paulo e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona. Atualmente é coordenadora pedagógica da área de língua da Comunidade Educativa CEDAC, membro da equipe editorial do Instituto Emília/Revista Emília e professora do curso de pós-graduação de literatura infantil e juvenil no Instituto Vera Cruz.