Qual o fascínio dos contos de fadas hoje?

15/08/2018

 

Por Ernani Ssó

Certo, me contaram muitos contos de fadas quando eu era criança, mas não acho que se trate de saudade. Um bom exemplo é a lenda do Robin Hood: por muito tempo, foi a minha história preferida e hoje me deixa indiferente, ou nem isso, em vários momentos não consigo refrear a ironia. Os contos, não. Depois de grandinho li tudo de novo e sem surpresa achei que melhoraram. A prova de fogo foi quando tive um filho: precisei reler várias vezes alguns deles – e não é que melhoraram mais ainda? Acho surpreendente, porque esses contos não sobrevivem apenas ao tempo, mas às traduções mais escabrosas, às adaptações mais infames e a hordas de detratores.

Não estou sozinho, não – George Lucas que o diga. Sei lá o que ele pensa sobre isso, ou os milhares de espectadores de Guerra nas estrelas. Não sei nem o que eu mesmo penso. A intenção destas notas é uma tentativa de compreender meu fascínio. Espero que meus palpites sejam válidos ao menos para mais uns dois ou três fanáticos.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Melhor começar pelos temas. Os temas dos contos de fadas não caducaram: amor, morte, abandono, abuso, ciúme, medo e tantos outros. Na verdade, muitas histórias antigas têm como tema problemas que continuam nos afligindo, mas não as leio com grande interesse, que dirá com fascínio. Por quê? Os contos de fadas são histórias melhores do que as outras? Ou o tratamento desses problemas encontrou a melhor forma?

Falar em tema, em seco, me parece meio sacana. Você não pode dizer que João e Maria é uma história de crianças abandonadas. Porque trata também de muitas outras coisas. Não se sabe que interpretação uma criança faz de um conto desses. Às vezes, o que é fundamental para ela é uma cena ou um personagem. Meu filho, aos quatro anos, me fez reler dezenas de vezes o conto “O castelo e o esqueleto”, que mais tarde abriria meu livro Castelos e fantasmas. Ele adorava a voz abafada do esqueleto – abafada porque tinha sido enforcado. Ainda hoje ele me garante: essa história era a melhor de todas. Mas ele mesmo não sabe bem por quê. Nem eu sei dizer qual é exatamente o tema, já que passamos pelo medo e pela coragem, pela morte e pela traição, pela solidão e pela ganância.

Alguém disse e eu vivo repetindo: nos contos de fadas tudo é concreto, tudo é dito por imagens. Não se fala que a princesa estava triste, mas que a princesa chorou. Não se fala que o príncipe se sentia e às vezes se comportava como um monstro, um feitiço o transforma em monstro. Enfim, a emoção mais fugidia vem ilustrada, não dita.

Isso parece simples. Mas não é nada simples. Quem escreve sabe, ou deveria saber: as palavras viciam e embriagam como qualquer cachaça. Umas doses a mais e pronto, nos sobem pra cabeça e aí, alegrinhos, em vez de usá-las, somos usados por elas. Dependendo do porre, ficamos convencidos de que elas podem dizer tudo, tudo mesmo, diretamente.

Quantas frases para sublinhar você lembra nos contos de fadas? “Era uma vez”, “sinto cheiro de carne humana” e “viveram felizes para sempre”? Não são propriamente frases para se escrever num azulejo, certo?

Mas quantas cenas você lembra? O pé de feijão crescendo loucamente, a bruxa sendo empurrada no fogão, o lobo devorando a vovozinha, Branca de Neve crescendo dentro de uma caixa de vidro, a casinha de doce, a trilha de migalhas, a carruagem ou o sapatinho da Gata Borralheira, as tranças da Rapunzel jogadas do alto da torre. Enfim, são muitas, no mínimo uma por conto, algumas há séculos fazendo parte do imaginário humano.

As palavras a gente esquece, por mais precisas e belas que sejam. Porque as palavras querem comunicar um determinado sentido, uma determinada emoção – são um meio racional. As cenas são, de algum modo misterioso, essa emoção, esse sentido.

Os sonhos também dispensam as palavras. Nos sonhos tudo são imagens. Você dorme sobre o braço, o braço amortece, pesa, dói e aí? Aí não vem uma voz na sua cabeça dizer que você está deitado sobre o braço, que dói como se você tivesse levado uma espadada. Sua cabeça maquina: você é um cavaleiro andante que acabou de levar uma espadada no braço. Ou você tem um braço artificial, mecânico, que emperrou. O sonho dispensa o como. No sonho a coisa é.

Mas por que cavaleiro e espadada? Por que braço mecânico? Por que não uma batida de carro? Por que não uma quina certeira de porta? Nossos desejos, nossos medos, nossas preferências, enfim, nosso passado e nosso presente engendram a fantasia que sonhamos. Essa fantasia pode ser bastante óbvia às vezes, mas também pode ser muito misteriosa. Agora, mesmo a mais óbvia está sujeita a mais de uma interpretação, porque se trata da tradução de várias coisas ao mesmo tempo, algumas delas sem rosto nem nome, ou que tentam permanecer secretas. Quanto mais misteriosa, mais inquietante e mais bela provavelmente. É isso ainda: essas fantasias são, na maioria das vezes, de uma beleza tremenda. Pessoas sem a mínima criatividade, pessoas burras mesmo, têm sonhos maravilhosos. Hölderlin: o homem é um deus quando sonha e não é mais que um mendigo quando pensa.

Quer dizer, ao pensar nos contos de fadas, devemos pensar como se pensa nos sonhos, não como se se tratasse de uma reportagem. Digamos que devemos tentar ver como deuses, não como mendigos. Pegue as tranças da Rapunzel, por exemplo. Pense logicamente sobre uma mulher com tranças tão longas que podem ser jogadas pela janela de uma torre e servir de escada ao amante. Absurdo? É mais do que absurdo, é monstruoso. Imagina a quantidade de água e xampu que ela precisaria para lavar os cabelos.

Mas como uma fantasia onírica é perfeitamente aceitável, não? Mais do que aceitável, é linda, além de ter uma boa dose de humor. Provavelmente se trata da melhor cena erótica até hoje imaginada. Quantos parágrafos seriam necessários para nos explicar o tesão do casal? Mas, por melhor que fosse essa explicação, ela teria o mesmo impacto que a torre, as tranças, a escalada?

Sem falar que uma explicação, depois de compreendida, não tem mais interesse. De uma certa forma, uma explicação é uma porta que se fecha às nossas costas, por mais que a gente diga que não passou a chave, que pode se examinar novos aposentos. Uma cena não. Uma cena evoca muitos sentimentos e fantasias, sentimentos e fantasias que variam de uma pessoa para outra, de um tempo para outro. Uma cena é uma espécie de convite. Como a voz do profeta, pode ser tudo para todos, como Jorge Luis Borges tanto desejou que fossem seus contos.

Falando em Borges, ele disse num ensaio que a sensação de uma revelação, uma revelação que estamos na iminência de alcançar mas que no último instante nos escapa, talvez seja o fato estético. Acho isso muito bonito – muito bonito e muito arguto. Afinal, quantas vezes não estivemos ali para pegar o sentido do universo pelo rabo? Apenas um livro tão enigmático como o universo nos causaria esse sentimento, não?

Então, é isso: acho que um dos motivos de os contos de fadas interessarem até hoje é justamente por usarem essa estratégia narrativa dos sonhos. Porque tratam de amor, de morte, de abandono, de abuso, de ciúme, de uma forma que está em cada nervo nosso, que corre com nosso sangue. Essa forma é tão vital que continua sendo usada, basta dar uma espiada na literatura fantástica, na ficção científica. Leiam Kafka, Cortázar. Leiam Philip K. Dick, Ursula K. Le Guim.

Outra coisa que penso que contribui para o fascínio dos contos de fadas é a sua fantasia sem remorsos. Está mais do que provado que, se não sonhamos, enlouquecemos. Isso dormindo. Mas acordados? Será que não há algo parecido? A realidade é dura demais. A realidade é tão dura que nossa memória engendrou um mecanismo de defesa: nossas lembranças são muito mais suaves do que o que vivemos. Os cientistas concluíram que se lembrássemos exatamente como as coisas aconteceram nos velhos bons tempos, não suportaríamos.

Mas muita gente tem medo de sonhar acordado. Há o medo de se substituir a realidade pelo sonho, medo de enlouquecer – vide o valoroso Cavaleiro da Triste Figura. Ou vergonha de dar mostras de fraqueza. Não se pode descartar isso. Mas sonhar acordado pode funcionar como o brinquedo, a instalação da realidade num modelo mais funcional, digamos, onde nos exercitamos para poder enfrentar o outro modelo, aquele cercado de arame e eletricidade. É uma fuga, sim, mas pode ser uma fuga para a frente, uma fuga com um plano. Depois, é como digo sempre: se não podemos defender uma fuga permanente da realidade, por ser evidentemente um absurdo, não podemos exigir uma presença permanente na realidade, por ser tão absurdo quanto. Sem falar que o termo realidade é muito dúbio. O que muita gente considera realidade não passa do reflexo de suas doenças, muitas vezes.

Um bom exemplo da necessidade de fantasia é dom Quixote. Cervantes atacou a fantasia descabelada dos romances de cavalaria com seus imaculados heróis e princesas, dragões, gigantes e magos malvados. Disse claramente: a realidade é muito mais prosaica, muito mais dura, muito mais sórdida. Quixote enlouqueceu por levar a sério as fantasias. Mas o que aconteceu? Ao longo do livro nossa simpatia – a do Cervantes também, sem que ele possa controlar – pende para Quixote. Acabamos torcendo para que de repente os moinhos sejam mesmo monstros. Uma grande parte de nós é Alonso Quixano, mas outra, tão grande e talvez mais ardente, é Quixote, sente como ele, gostaria que o mundo fosse outro. Se nós somos assim, por que as crianças não seriam e com mais razão ainda? Quixote é o símbolo do idealista desvairado, mas também é o símbolo da coragem extrema, símbolo da necessidade de lutarmos mesmo contra o impossível.

Bem no fundo, talvez o que mais incomodava Cervantes é que as fantasias dos romances de cavalaria não o satisfaziam. Como estavam muito distanciadas da realidade, o sabor delas tinha se evaporado. Se as fantasias não têm como base coisas que nos emocionam, não têm interesse nenhum. Enfim, se elas perdem o humano, não há com o que nos identificarmos. Essa mútua dependência devia servir de alerta para aqueles escritores que nos dão livros tão assustadoramente realistas que chegam a ser mais chatos do que muitos dos nossos dias.

Chegando aqui, me dou conta de que já tinha apostado antes nesses palpites, de um modo ou de outro, em vários textos espalhados por aí. Mas isso não me incomoda. Como as crianças ouvindo os contos, gosto de certas repetições. Se algumas me impacientam, acho que outras são necessárias, porque me parecem uma busca de maior clareza: pegam os mesmos problemas de ângulos diferentes e acrescentam novos detalhes. Depois, puxa vida, cada um tem suas manias.

Por hoje era isso. Agora preciso ir. Tenho de tentar, mais uma vez, ser feliz para sempre.

***

Ernani Ssó é autor de Contos de gigantesAmigos da onça As lendas urbanas da morte, entre outros. Nasceu em Bom Jesus, RS, num ano de neve. Em 1974 entrou para o jornalismo, porque queria ser escritor. Saiu em 75, pelo mesmo motivo. Tem livros para adultos, mas prefere os infantis, porque são mais difíceis de escrever. Chama-se Ernani por causa de um galã de radionovela e Ssó, esse erro de revisão, de maluco, ou para não se sentir muito sozinho, como disse Mário Quintana. 

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