Nas histórias da escritora inglesa Caryl Hart, conhecida por sua irreverência e seu humor crítico, os contos de fadas passam por mil e uma reviravoltas. As protagonistas são donas de suas próprias vidas, e fazem tudo diferente do que se espera delas. É o mundo das princesas modernas. Uma delas, por exemplo, chegou a ser diagnosticada com “princesite”, depois da ousadia de se empanturrar de ervilhas. Trata-se do livro A princesa e as ervilhas (2013), uma recriação do famoso conto de fadas em que uma princesa é impelida a dormir sobre uma ervilha para provar ao príncipe que tem a pele sensível o bastante para se casar com ele.
Em A princesa e o sapato, terceiro título da Coleção das Princesas, da Brinque-Book, Caryl nos apresenta uma princesa que não quer saber de sapatinho de cristal, pois tem outros planos para sua vida: ela precisa de um par de tênis para disputar uma prova de corrida. Assim como Caryl, outras autoras e autores tem experimentado oferecer uma visão diferente para os contos clássicos, em que as princesas contemporâneas e outras personagens femininas não estão à espera do príncipe encantado ou de alguém para salvá-las. E, com este universo de contos clássicos e versões modernas, que histórias estamos apresentando às crianças? O que elas refletem sobre as dinâmicas que vivemos? Devemos esquecer as princesas submissas? Vamos refletir sobre o que é, afinal, essa tal “princesite” nos dias de hoje?
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No terceiro livro da Coleção Princesas, de Caryl Hart, a protagonista Iasmim prefere substituir os sapatinhos de cristal por um confortável tênis de corrida
Outras Cinderelas possíveis
Da literatura ao cinema, o campo da produção artística infantil parece se preocupar cada vez mais em apresentar às crianças mundos de possibilidades abertas. No lugar das princesas que esperam pelo príncipe encantado, meninas e meninos hoje podem conhecer princesas que constroem sua própria trajetória. Mas nem sempre foi assim. A tradição dos contos de fadas clássicos é, em sua maioria, marcada por relações desiguais.
“Existem muitos contos de fada no mundo, e é bem sintomático que escolhemos, como sociedade, os mais machistas como sendo ‘clássicos’”. É o que explica a escritora, ilustradora e roteirista Janaina Tokitaka, autora de dezenas de livros para crianças e jovens, muitos deles com a preocupação de recriar os exemplos de mulheres protagonistas que chegam pelas narrativas infantis.
“Com uma pesquisa mais aprofundada, descobrimos muitos outros onde as princesas são tudo, menos submissas. Até mesmo nas versões dos Grimm é muito comum que uma princesa seja descrita como ‘bela’, mas sem nenhum adjetivo específico atrelado à ideia de beleza; este ‘bela’, então, pode ser interpretado como cada um bem entender”, esclarece.
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Para Tokitaka, não se trata de negar as narrativas clássicas, mas sim de garantir às crianças um repertório suficientemente diverso para que as crianças possam ter múltiplas referências, e não um único ideário de comportamento. “O problema é que muitas vezes os contos acabam servindo como espelho da sociedade, refletindo os ideais vigentes de beleza”, afirma a escritora.
O problema não é necessariamente o conto de fadas, mas o que projetamos neles (Janaina Tokitaka)
É o que defende também a pesquisadora Luiza Guimarães, mestre em Comunicação pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), autora da dissertação “Sonhe alto, princesa: discursos sobre gênero na infância”, que em 2020 ouviu crianças de 5 a 9 anos para entender como elas recebem as representações de princesas da Disney.
"A busca de uma criança pela identificação com meninos ou com as meninas faz parte do processo de socialização e construção de sua identidade impostos a ela de maneira naturalizada. Desde antes de o bebê nascer, o gênero masculino ou feminino já é socialmente imposto, por meio de expectativas da família, brinquedos e roupas. É de se compreender por que as crianças dão tanta importância a esses fatores”, afirma Luiza.
Citando a escritora Guacira Lopes Louro, autora de Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista (1997), Luiza ressalta a importância de considerar que “tanto na dinâmica do gênero como na dinâmica da sexualidade, as identidades são sempre construídas".
A tradição e os recontos modernos
Em A princesa e o sapato, Caryl Hart traz uma princesa contemporânea e independente. Ao contrário da Cinderela que conhecemos, Iasmim, a divertida personagem de Hart, prefere seus tênis confortáveis (mesmo que sujos de lama) aos sapatos de cristal. Não porque não seja vaidosa, mas sim por praticidade, afinal, ela adora esportes e sonha em vencer uma corrida.
O exemplo do lançamento da Coleção das Princesas é contundente para pensarmos a relação que as novas histórias estabelecem com o cânone literário. Os recontos modernos não negam a “princesite”. Ao contrário, apenas acolhem outras formas de ser princesa.
“Uma princesa é uma heroína, uma protagonista, alguém que enfrenta desafios e consegue o que quer ao final. Pensando desta forma, a história de uma princesa promove um tipo de ação narrativa bem saudável e instigante para brincadeiras. Mesmo a questão visual, do bonito, do belo, pode permitir que a criança se monte com a liberdade que bem entender.”
O prazer estético é algo inato à criança, nosso dever como adultos é, talvez, abrir este leque do que é ‘bonito’. Muitas coisas podem ser bonitas. O que é bonito para ela? (Janaina Tokitaka)
Então, como acolher a tradição de forma saudável, apresentando narrativas afinadas à realidade das meninas e dos meninos de hoje, sem negar o valor histórico, literário de toda uma bibliografia que veio antes? Muitas famílias têm dúvidas sobre como lidar com os contos tradicionais de princesas, que ensinam ideais sexistas, baseados em submissão e fragilidade. Devemos mediar e explicar que coisas como essas não são legais, ou apenas apresentar diversas versões de princesas e deixar as crianças tirarem suas conclusões?
Devemos cancelar as princesas clássicas?
Para Tokitaka, cabe aos adultos mediar um diálogo entre o clássico e o contemporâneo, e escolher em que termos essa relação vai acontecer. “Tradição é tudo aquilo que vem antes de nós e escolhemos manter. Nesse sentido, acho sempre benéfico dialogar, entendendo que dialogar não é conservar ou repetir algo só porque é tradicional. Dialogar pressupõe a existência de dois lados, é uma conversa. Eu posso dialogar com uma história tradicional concordando com ela em alguns pontos e discordando em outros, é isso o que torna este tipo de literatura instigante e atual”, defende Janaina.
Tokitaka é autora, dentre outras dezenas de títulos, de ABCDelas, um abecedário ilustrado de mulheres símbolo de suas profissões, como a aviadora brasileira Anésia Pinheiro Machado e a bióloga inglesa Margaret Elizabeth Fountaine. O modo como esse tema atravessa a vida não só da artista, mas também da mulher que precisa dar conta de ser a primeira mediadora dos livros que entram em casa nos ajuda a pensar na importância das referências.
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Mãe da pequena Rosa, ela conta que passar do lugar de quem escreve e ilustra histórias para crianças para o lugar da mãe que se responsabiliza sobre quais livros apresentar à filha transformou sua relação com os contos de fadas e seus recontos. “Quando você escolhe que contos para "passar para frente", de repente essa escolha de valores se torna bem mais concreta”, compartilha a autora.
Não tem editoria mais cuidadosa do que a da mãe escolhendo que livro vai ler repetidas vezes, todas as noites, para seu filho. (Janaina Tokitaka)
Nem toda Cinderela só pensa em ir ao baile! O livro "A princesa e o sapato", de Caryl Hart, é uma divertida releitura do clássico dos contos de fada.
Em casa, na escola e nas rodas de leitura em espaços culturais, o repertório diverso é prerrogativa de uma experiência saudável com as narrativas. É a oferta numerosa de diferentes perfis de heróis, rainhas e vilões que oportunizam à criança escolher o que faz sentido. “A Rosa gosta mais de princesas como a Moana, aventureiras, então estamos muito de acordo sobre esse tema, mas não cancelei a Cinderela não, de vez em quando ela dá as caras por aqui”, diz a escritora.
Eu não sou contra recontos, principalmente de contos de fada. É assim que eles sobrevivem e continuam sendo relevantes, sendo ligeiramente modificados pelos seus narradores (Janaina Tokitaka)
Dentro e fora da literatura, nem toda Cinderela só pensa em ir ao baile, mas há muitas que adoram vestidos pomposos e belos sapatos. Nos dois casos, o que vale é a naturalidade da narrativa, que não precisa chegar como imposição ou como regra de conduta, mas sim como aparato da diversidade. Uma diversidade que – para a sorte dos leitores de hoje — abunda cada vez mais na arte para as crianças.
8 livros com princesas modernas
1) A princesa e o sapato, de Caryl Hart (Brinque-Book)
2) A princesa e o gigante, de Caryl Hart (Brinque-Book)
3) A princesa e as ervilhas, de Caryl Hart (Brinque-Book)
4) Princesa Kevin, de Michael Escoffier (Companhia das Letrinhas)
5) A princesa que escolhia, de Ana Maria Machado (Companhia das Letrinhas)
6) Nove novos contos de fadas e princesas, de Didier, Lèvy (Companhia das Letrinhas)
7) Branco, Belo e Cinderelo, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta (Companhia das Letrinhas)
8) Chapeuzinho esfarrapado, de Ethel Johnston Phelps (Seguinte)