Tons, ritmos, dramatizações, jogos corporais, canções, danças que remontam a rituais antigos, tudo isso compõe o universo da literatura da primeira infância. E é a isso que se dedica Beatriz Sanjuán, que há mais de 20 anos realiza programas de formação de leitores em Gijón, na Espanha, além de integrar o grupo Tres Brujas, com Lara Meana e Olalla H. Ranz, e dirigir a empresa Via Libri. Para ela, o lugar da palavra e da literatura é de traçar um caminho em meio a "biblioteca infinita de realidades" que é o mundo, um "glorioso caos".
Ilustração Marcelo Tolentino
Há tempos, de geração em geração, explica a especialista espanhola, entregamos aos recém-nascidos cantigas, parlendas, mitos, entre outras ações e narrações que acessam a essência da humanidade. Todo esse repertório é tão antigo e tão essencial que, segundo Sanjuán, está nos nossos genes. Ela conta que todos os povos da Terra têm contato com essa “biblioteca”, e que canções de ninar em todo o planeta apresentam linhas melódicas e oscilações em comum.
Foto Roberto Molero
Se "infante" é, por definição etimológica, "aquele que não possui a fala", a linguagem se faz necessária no ambiente que circunda o bebê, para que ele possa ser, e não apenas existir. A língua transborda a função da comunicação. Serve a uma percepção de mundo com objetivos distintos de outras espécies. Além de assegurar a sobrevivência, possibilita a contemplação de um mundo sempre questionado, nunca pronto ou acabado. Na coletividade, estamos sempre a habitá-lo e recriá-lo, ininterruptamente, há milênios.
Confira a seguir bate-papo que tivemos com Beatriz Sanjuán.
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Como você define o período da primeira infância? Que fase da vida é essa?
Beatriz Sanjuán – De certo modo, a denominação "primeira infância" é em si mesma uma definição. Por um lado, no seu sentido temporal, ao delimitar o trecho inicial da vida humana. Mas, sobretudo, no seu sentido etimológico: segundo o termo latino, o infante é aquele que não possui a fala. Sim, tem meios para se comunicar, como acontece com as crias de outra espécie; mas, diferentemente delas, precisa da linguagem para ser e não só para existir. Toda a evolução da espécie humana depende da transmissão e da aquisição da língua.
Você diz que a língua requer um "mundo habitado", que os contos e cantos não foram feitos para serem compreendidos, mas interpretados. Seria a literatura na primeira infância uma grande preparação para a vida?
Beatriz Sanjuán – Segundo as investigações que estou fazendo para tentar compreender o alcance dos complexos sistemas de aprendizagem que vejo nos bebês com quem trabalho, parece demonstrar-se que nós humanos necessitamos da língua e não só da comunicação, porque a nossa percepção de mundo tem objetivos distintos do resto das espécies. Além da ação, o efeito sobre o entorno para assegurar a sobrevivência, precisamos de contemplação, um mundo que não se dá por feito e inquestionável, mas que nos há de mostrar para que sejamos capazes de recriá-lo e habitá-lo. Não podemos realizar isso como indivíduos singulares, mas como herdeiros e novos membros da coletividade, de uma História.
"Somos seres históricos e literários, ambas são características da nossa espécie." Sobre sermos literários, vem a sua afirmação de que não aprendemos por explicação, mas por experiência: tempo compartilhado, momentos de afeto. Por que essa conexão imediata com a palavra? Como a literatura nos ensina a humanidade?
Beatriz Sanjuán – O mundo para nós é como uma biblioteca infinita de "realidades": sensíveis, mas também imaginadas; passadas, presentes e futuras; de terras já desaparecidas e de entornos físicos que talvez ainda não existam. Um caos. Um glorioso caos de possibilidades ao qual teríamos que renunciar se a palavra e a literatura não traçassem um rumo em meio à essa vertigem. Por isso é essencial estudar aquilo que a humanidade tem preservado durante milênios para entregar aos seus filhos recém-nascidos: a literatura da primeira infância. Tons, ritmos e símbolos que formam poemas, dramatizações e narrações de acesso à nossa essência. Mas de nada serve estudá-lo e explicá-lo sem vivê-lo. Para o bebê, não tem significado conceitualmente, é tão irrelevante quanto a fórmula da relatividade de Einstein. Um bebê nunca poderia entender a literatura popular como um registro arqueológico, mas como um revestimento afetivo e esperançoso que os sons e as estruturas da língua outorgam a tudo ao seu redor, para fazê-lo acessível.
E isso que parece ser a "gramática universal da ficção", comum a todas as culturas do mundo? Parece compor o que temos de mais íntimo, profundo, humano. Por que isso fala tão bem com o bebê e tem tanto sentido para ele, mesmo que ele ainda não tenha conhecimento do mundo? Como essa música que impregna a voz materna conversa com a nossa voz interior?
Beatriz Sanjuán – Não teria nenhuma lógica que o bebê estivesse preparado para essa complexa apropriação do mundo e da sua identidade nele, enquanto as suas famílias, em especial as mães, não fossem capazes de proporcioná-las. Estou convencida de que o encontro com a palavra está por um lado inscrito nos nossos genes, já que todos os povos da Terra a realizaram e algumas coincidências são assombrosas e inegáveis: por exemplo, usamos de forma natural linhas melódicas e oscilações comuns a canções de ninar em todo o planeta, ou repetimos jogos corporais que dão sentido à exploração do próprio corpo. Estão impregnados de afetividade e seu vestígio permanecerá por toda a vida.
O bebê vai conhecer o mundo pela primeira vez por essas canções e histórias. Poderia falar um pouco de como as histórias presentes em cada cultura colaboram para construir uma certa visão de mundo, para habitar esse território até então desconhecido que é a vida?
Beatriz Sanjuán – Na ficção, muitos elementos são um produto cultural ligado à comunidade e à época concreta em que nascemos. Tem a missão de nos adaptarmos a ela, às suas circunstâncias. Mas a parte essencial é comum a todos os seres humanos. Por exemplo, quando os bebês são capazes de rir e sorrir, essa reação se associará aos costumes, à moral ou à filosofia da sua cultura, mas, ao viver através da literatura, transcendem esse espaço de tempo: lhes dão raízes locais e universais ao mesmo tempo.
Além da aprendizagem com a mãe, há, nos primeiros anos de vida, uma aprendizagem que deve ser realizada com os iguais, aqueles que têm a mesma idade e que "compartilham estados semelhantes de compreensão e expressão". Quais são esses aprendizados e como eles se realizam?
Beatriz Sanjuán – Não quero me estender muito nesse ponto porque estou escrevendo sobre isso para outra publicação. Basta dizer que é imprescindível para as nossas investigações, como foi no seu momento o caso de Emmi Pikler*, observar sem mais o que já é evidente: o modo como as crianças interagem entre si, criando jogos e histórias que lhes permitam manusear-se e mover-se dentro de um mundo de dimensões muito diferentes do nosso, mesmo que aparentemente seja o mesmo. Levemos a sério o ponto de vista deles para saber (utilizando uma comparação um pouco pobre) como é possível almejar a chegada ao centésimo andar muito antes de conhecer elevadores, escadas ou até saber como escalar com uma corda.
* Pediatra austríaca que defendeu um sistema educativo baseado no respeito à criança e na atitude não intervencionista do adulto
Os educadores entendem a primeira infância como período potente para a experimentação de sentidos, tato, movimento, sons… Como a literatura se coloca como outra forma de experimentação?
Beatriz Sanjuán – A partir do folclore infantil, a literatura tem acompanhado a experimentação do bebê provavelmente desde a pré-história. Primeiro nas suas experiências pré-natais, com um entorno cultural que sente e escuta como familiar em cantos, danças e rituais. Depois do nascimento, como conquista do espaço que o rodeia, indeterminado, mas já claramente separado do corpo da mãe, que ao lado do resto da comunidade povoam de poesia e ritmos linguísticos. No seu primeiro ano, e empregando a conhecida imagem da onda formada pela queda de uma pedra na água, o folclore vai exercitando por meio de jogos de colo o esquema corporal da criança: os pontos de percepção se desdobram paulatinamente em torno do sujeito, integrando a cabeça, o tronco e as extremidades. E por fim, quando o controle do andar o permite, a literatura segue acompanhando a criança na sua busca de autonomia a partir das brincadeiras de rua, muitas das quais têm ficado como vestígios de antigos ritos de iniciação de tribos e civilizações desaparecidas. A linguagem coloquial muda, inclusive a científica, mas essas estruturas permanecem necessárias para cada novo ser humano que nasce e que se descobre, em si mesmo e no outro.
Gostaria de me despedir com um canto-jogo-exemplo que seguramente tem um paralelo na sua terra, variando e mantendo como na minha múltiplas possibilidades em seus poucos versos e gestos:
Aserrín, aserrán,
madericos de San Juan,
los de arriba sierran bien
y los de abajo… ¡también!
Que sigamos para sempre balançando os nossos bebês nesta festa de linguagem, aproximando e separando seus corpos frágeis dos nossos: entre a proteção e a liberdade que lhes devemos por igual para que possam crescer.