O ponto entre o bordado e a literatura

08/05/2019

 

 

Historicamente associada ao universo feminino, a costura foi descreditada como atividade intelectual, categorizada como um trabalho menor. E, ainda, como prática incompatível aos estudos e à leitura. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, por exemplo, Capitu decide aprender a fazer renda com dona Glória somente quando não consegue que lhe ensinem latim, assim como lembra Ana Maria Machado em seu livro Ponto de fuga – Conversas sobre livros. Estava aí a circunstância perfeita para manter mulheres com essa tarefa em casa ou nas fábricas, enquanto homens tomavam as decisões para o bem comum. Mas será mesmo que esse fazer manual e uma história bem tecida, digna de grandes romancistas, são partes de realidades tão distintas assim?

 

 

Foto retirada do Instagram @ofioquenosune

 

 

No mesmo livro, a premiada autora narra o episódio de quando experienciou o Tao, conceito oriental que designa a vivência de algo simples e raro, a "sensação de pertencer a uma totalidade". O sentimento tão genuíno resultou de um momento de quase meditação da escritora e tradutora carioca, quando contemplava em silêncio uma obra que era costurada diante dos seus olhos: a teia de uma aranha. Era uma tarde fria e nublada, e sua filha Luísa havia lhe chamado para admirar tal espetáculo. As duas observaram o movimento da aranha durante quase uma hora. Depois, a constatação foi a de que aquele encanto não poderia ser verbalizado. A experiência era maior do que qualquer palavra.

Assim como nos ensina Ana Maria Machado, a partir dessa perspectiva do tecido como apanhador de palavras, ressignificadas, reunimos alguns projetos que enredam literatura e bordado, aproximando e enredando as duas linguagens. São iniciativas que convidam a tecer o prazer pela leitura, tanto de livros quanto de mundos. Confira a seguir.

 

Clube do Bordado O Fio que Nos Une

 

 

Símbolo do grupo; Acervo pessoal Natame Diniz

 

Em 2017, a convite das Oficinas Culturais Alfredo Volpi, a educadora e poeta Natame Diniz ministrou a oficina A escrita como um fio que nos une durante seis dias. Após esse período, o grupo participante, que reconheceu naquela oficina um espaço de abrigo e escuta, reuniu-se para pedir aos organizadores que mantivessem o projeto. Assim, foi criado o Clube do Bordado O Fio que Nos Une. Ainda nesse mesmo ano, a Companhia das Letras estabeleceu uma parceria com o clube e passou a emprestar livros para fomentar uma discussão literária durante os trabalhos com a costura, inspirando os bordados e também as leituras.

 

Trabalho de dissecar a palavra risco; Acervo pessoal Natame Diniz

 

Natame conta que esse processo de incluir a leitura no tempo dedicado ao bordado foi feito aos poucos, pois, no início, os participantes estavam relutantes. A maioria não tinha uma formação leitora e, assim como muita gente, limitara o contato com a literatura ao ambiente escolar, como algo para atingir outra coisa, na maior parte das vezes, uma boa nota. Assim, os primeiros livros lidos pelo grupo foram quadrinhos. Depois, no último mês do ano, os participantes pediram para ler Americanah, livro de 520 páginas da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Segundo a educadora, aos poucos, a turma do bordado foi tecendo o prazer pela leitura e percebendo as relações entre os livros e suas próprias vivências.

 

Bordado inspirado no livro Americanah, de Chimamanda Adichie; Acervo pessoal Natame Diniz

 

Sobre o mesmo fio que perpassa literatura e bordado, Natame comenta: "Tenho pensado muito no gesto; qual é esse gesto que eu uso tanto para escrita quanto para o bordado? Esse gesto de segurar um instrumento e colocar ali, incidir esse objeto numa matéria. Como essas duas ações se aproximam? Tanto de pegar o lápis e escrever num papel, quanto pegar uma agulha e colocar no tecido. Como esse gesto é parecido? Como o tempo de maturação das duas coisas é muito próximo e como o cuidado das duas coisas também é muito próximo. Tanto escrever quanto bordar exigem paciência e cuidado."

 

Matizes Dumont

 

Foto retirada do site Matizes Dumont

 

A família Dumont, nascida em Pirapora, norte de Minas Gerais, há mais de trinta anos se dedica às artes visuais e gráficas, mais especificamente, ao bordado. O grupo formado pela mãe, Antônia Zulma Diniz Dumont, o filho Demóstenes, as filhas Ângela, Marilu, Martha e Sávia busca, a partir dessa arte milenar, expressar a diversidade cultural do país e promover transformações sociais.

"Uma das principais contribuições do Matizes Dumont para as artes é a inovadora linguagem do bordado empregada de forma livre e espontânea nas artes visuais e nas artes gráficas: são telas, ilustração de livros, ilustração e capas de discos, contando histórias", explica Marilu.

 

Foto retirada do site Matizes Dumont

 

Em 2004, criaram o Instituto Cultural Antônia Dumont, que se dedica a difundir a cultura popular brasileira e a acolher pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, usando a arte como instrumento de desenvolvimento humano. Além disso, o grupo ministra oficinas pelo Brasil e também já foi reconhecido pelo trabalho gráfico de ilustrações em livros, com os prêmios Jabutis entregues a Exercício de ser criança e A menina, a gaiola e a bicicleta – Céu de passarinhos. A potência do rio São Francisco que banha a região onde a família nasceu serve de inspiração para o bordado, assim como as lendas e as paisagens dessas águas.

 

Tear e Poesia

 

Foto retirada do site Tear e Poesia

 

Tear e Poesia – Coletiva de Arte e Têxtil foi fundada em 1998, em Minas Gerais, durante uma ocupação do MST (Movimento Sem Terra). Três anos antes, em 1995, as primeiras integrantes da coletiva haviam participado da oficina de confecção de bonecas junto à Cooperativa Abayomi de Mulheres Negras no Festival Internacional de Artes Negras. A transferência para São Paulo ocorre em 2004 e, desde então, o grupo, composto por mulheres que residem no extremo sul da cidade, tem organizado oficinas em diversas ONGs e instituições, exposições e outros projetos.

 

Foto retirada do site Tear e Poesia

 

A luta que representa a história do coletivo é por igualdade de oportunidades e direitos, tendo como foco as mulheres negras e indígenas. Além disso, há um trabalho para a valorização dessas duas identidades. Literatura e costura se entrelaçam no momento em que as mulheres bordam aquilo que contam suas histórias de vida. O resultado material pode, então, ser passado de geração em geração como herança cultural, forma de preservar a memória afetiva.

 

Bordados Poéticos

 

Foto retirada da página do Facebook Bordados Poéticos

 

Criado por Nina Silva e mantido pelo Coletivo ConFio, o projeto Bordados Poéticos nasce como desdobramento do Concurso Bordados Poéticos, criado em 2011. O concurso, parte de um programa maior chamado "Comunicação e Linguagem", tinha como foco explorar artisticamente as diversas linguagens disponíveis no mundo dentro da escola. Recebeu destaque dentro da proposta e se tornou projeto independente, atuando até hoje para levar adiante a ideia do coletivo de entender o bordado como forma de comunicar e sensibilizar. As mulheres que integram o grupo, artistas e pesquisadoras, promovem o diálogo entre o bordado, a arte contemporânea e a memória da cidade de Paraty (RJ), provocando, assim, reflexões e novos olhares para esse fazer ancestral.

 

Foto retirada da página do Facebook Bordados Poéticos

 

No site do projeto, ainda acrescentam: "Compreendemos que o bordado, neste mundo de extremos, apresenta-se como um caminho do meio, pois quem borda pende no fio a força do fazer e a delicadeza do feito".

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