Aladdin passa os dias improvisando, tentando dar um jeito de sobreviver nas ruas de Agrabah. Até que encontra um gênio que pode lhe conceder alguns desejos. Ele se apaixona pela filha do sultão e, munido de um bocado de magia, esperteza e amor, enfrenta inimigos e salva o dia, a princesa, o reino e a si mesmo, vivendo no conforto de um grande palácio para nunca mais morrer de fome.
O conto Aladdin e a lâmpada maravilhosa, uma das mais conhecidas histórias da obra As mil e uma noites, já teve diversas versões no Ocidente e Oriente, com adaptações para jogos, séries animadas e cinema. Com o lançamento do longa-metragem em live action Aladdin feito pelos estúdios Disney neste ano, o personagem volta a rondar ainda mais fortemente no imaginário da criança contemporânea, destacando algumas lições a serem aprendidas com a história.
“O que há de sensacional é o ponto de vista ético que é sempre abordado [na obra Aladdin].” Para o roteirista e professor Anderson França, fundador da Universidade da Correria no Complexo da Maré, na qual organiza encontros e aulas com foco na inserção social de grupos minoritários em situação de vulnerabilidade, existem diversas lições a serem aprendidas com a história – tantas que vale sua releitura constante. Autor de Rio em shamas, livro de crônicas e crítica social indicado ao Prêmio Jabuti em 2017, ele destaca que há diferença se o contato com o conto de Aladdin se dá pela literatura ou pelo cinema. Entre uma palestra e outra sobre temas políticos e sociais, o educador fala de suas impressões sobre a adaptação e o conto original de As mil e uma noites.
Mil e uma versões e identidades de Aladdin
Nas primeiras versões do conto Aladdin e a lâmpada maravilhosa, o protagonista é filho de um mercador que não quer seguir a profissão do pai, e passa os dias sem estudar ou trabalhar e, depois da promessa de riqueza feita por um mago que se passa por um tio rico viajante, o jovem é enganado e fica preso numa gruta subterrânea cheia do ouro que lhe foi prometido, sendo salvo por um anel que aprisiona um gênio. Ao voltar para casa, carrega os tesouros que encontrou e, numa lâmpada, libera o segundo gênio, que lhe ajuda a casar com a filha do Sultão e se vingar do mago que tenta roubar sua fortuna.
Já o filme de 2019 se inspira em uma versão da história já adaptada pela Disney, em 1992, na qual Aladdin vive com a companhia de seu fiel macaco de estimação Abu e cresce na cidade atrás de um pedaço de pão ou uma fruta para não morrer de fome. Mesmo que ele seja livre, uma vez que ele se vê preso à pobreza e à falta de oportunidades. Do outro lado temos Jasmine, uma princesa que tem conforto e riquezas, mas não pode sair do palácio onde vive e aguarda a chegada de um príncipe para viver uma vida que ela não quer. Ambos vivem presos em suas realidades, onde cada um tem o que o outro deseja.
O live action também surge com a promessa de dar mais tons da contemporaneidade: a atualização da Jasmine, por exemplo, mostra uma aproximação com as pautas dos movimentos feministas atuais. Enquanto nas primeiras versões a princesa tinha em Aladdin a salvação, agora ela pode vencer sozinha seus dilemas, enfrentando de igual para igual quem quer que seja. Interpretada por Naomi Scott, atriz de ascendência indiana, Jasmine mostra essa renovação não apenas sobre as questões de gênero, mas também étnicas: “As releituras feitas nesta edição de 2019 têm um elemento que é importante: a presença do Will Smith e principalmente a presença de atores não brancos. Esta releitura na narrativa final é importante porque a gente tira um pouco e cada vez mais o foco de atores brancos e caucasianos das grandes narrativas da indústria e do imaginário infantil”, comenta Anderson.
Ilustração de Aladdin com elementos de diversas culturas orientais, presente em uma das edições da tradução francesa de Antonie Galland, publicada em 1840
Essa variedade condiz com a própria origem do conto. As histórias que compõem As mil e uma noites surgem a partir de lendas da cultura indiana e persa que, mais tarde, foram traduzidas para o árabe. Do século VIII em seguinte, as narrativas do folclore árabe também foram aos poucos sendo incorporadas ao conjunto. Nessa soma, muitos dos contos originais foram transpostos para o cenário árabe da época – a então chamada Era de Ouro do Islã, quando os reinos árabes e muçulmanos expandiram seu domínio e influência (que acabou por incluir, depois, contos sírios e egípcios).
+ Contos de fadas para mães feministas
A história da coletânea
O primeiro registro da coletânea data do século XVIII, quando o orientalista francês Antonie Galland escreve As mil e uma noites a partir de seu encontro com o contador de histórias sírio Hanna Adiab, que lhe narrou, entre outros contos, Aladdin e a lâmpada maravilhosa. Nessa versão, a história se passa originalmente numa cidade oriental sem nome, entendida na Idade Média árabe como a parte da Rota da Seda que compreendia a região do Quirguistão e Sinkiang (hoje, nos limites da atual China).
As adaptações que vieram em seguida se basearam tanto na obra de Galland quanto nas versões de As mil e uma noites traduzidas diretamente do árabe, como a feita por Mamede Mustafa Jarouche diretamente para o português, com diversos volumes com notas e contextualização histórica. Por conta dessa disseminação, hoje existem variações de personagens, ambientes e elementos na narrativa, mesmo que a essência e a moral da história sejam as mesmas. “O livro, o conto e o filme abordam questões centrais das três religiões abraâmicas: o bem, o mal, a honestidade, a ambição e o poder”, explica o educador. O filme lançado neste mês se passa então no Sultanato de Agrabah, inspirado na sociedade da Idade Média na Península Arábica e, mesmo que diferentemente do original registrado pelo orientalista francês, também conta com elementos da cultura asiática, como o tapete mágico remetendo à tapeçaria que se destaca nas artes indiana e persa.
Ilustração da edição indiana de 1926 de As mil e uma noites
“As identidades não estão plenamente presentes na obra [filme]. O que há é uma tentativa de registrar essas identidades, e isso é um esforço narrativo e de produção que nós devemos reconhecer e respeitar.” Nessa miscelânea cultural, o escritor comenta que não seria possível reproduzir justamente porque o sujeito que produz a obra carrega uma visão própria do mercado cinematográfico ocidental, que, apesar de se esforçar para trazer os elementos de figurino e ambientalização próprios dos séculos passados, não consegue reproduzir o mesmo pensamento.
Não tendo essas identidades completamente expressas no filme, vale então tirar como ponto de relevância o teor moral da obra que, de acordo o autor, se mantém e pode ter um alcance maior por conta da estrutura e do poder dos estúdios Disney. “Eles ainda são os mais bem-sucedidos em transmitir isso para as massas. Seja por causa dos mecanismos de distribuição, seja por causa do dinheiro investido, eles conseguem fazer com que esta produção alcance muitas crianças.” Para o autor, é esse conteúdo ético que se sobressai, principalmente, nas obras para crianças, mesmo sem as identidades definidas, a exemplo do que acontece nos roteiros da Pixar, em que personagens não humanos revelam conflitos éticos.
Selos com ilustrações do conto em locais como Síria (1980), Palestina (2001), atual Emirado do Ajmã (1967, anterior aos Emirados Árabes) e Iraque (1967)
A lição principal
A temática da moral humana, de caráter universal e com alguma atemporalidade, protagoniza os aprendizados do público. Talvez o próprio título possa engrossar a leitura: Aladdin vem do árabe Al?? ad-D?n, literalmente "nobreza da fé", sendo um nome comum na sociedade oriental, com representação em figuras históricas também na Índia e Tunísia.
Entre os temas abordados, como os já citados “ambição” e “poder”, é possível extrair da história uma reflexão sob um olhar social, como escravidão do Gênio, que depende do desejo do outro para sua liberdade. Essas questões, para Anderson, não se passam como envelhecidas: “Temos, desde Sócrates, os mesmíssimos dilemas éticos. Antes de Sócrates e Platão. Hamurabi, Moisés. Esse material, sobretudo hoje, se aplicado a crianças, colabora e muito para a criação de uma geração menos desigual do que a nossa”.
Assim, para o escritor, o público do cinema pode aprender muito com as questões éticas e morais que surgem na história. “Pode aprender sobre classe, uma discussão urgente no Brasil”, destaca, também ressaltando que parte da compreensão dos temas acontece devido ao repertório e à visão de mundo do espectador adulto que acompanha a criança e pode mediar a discussão.
Aladdim no Jardim Mágico, ilustração de Max Liebert, parte do livro Aladin und die Wunderlampe, de Ludwig Fulda
O filme pode promover discussões, mas não cumpre o papel da leitura da obra literária. “O filme não cumpre o papel integral que o livro cumpriria”, afirma o educador, que chama a atenção dos pais para uma leitura compartilhada da obra: “A criança pode aprender uma coisa só. E depois outra. E outra, e outra. É por isso que você tem que ler o conto várias vezes”, explica. Entre as questões possíveis a serem abordadas tanto no filme quanto no conto literário, ele enumera: “A gente pode aprender sobre questões éticas, sobre bem e mal, sobre ambição, honestidade, amor, lealdade, imagem e aparência, ter ou não ter coisas, o que é ter um coração bom e não ter roupa e o que é roupa e um palácio e ser infeliz...”.