Por Ernani Ssó
Folclore, em verbete do Houaiss, é definido como um conjunto de costumes, lendas, provérbios, manifestações artísticas em geral, preservado, através da tradição oral, por um povo ou grupo populacional. Parece simples e bem organizado, não? Mas o mundo não é nada simples nem organizado, sabe-se.
Fora o caso de alguns povos isolados, sem escrita, dificilmente pode-se falar em tradição oral hoje em dia. Certo que a tradição oral resistiu por séculos à invenção da imprensa. Na verdade, continua resistindo. Eu mesmo sou testemunha: no final dos anos 50, ouvi dos meus pais ou em programas de rádio vários contos que só depois de adulto fui ler nas coletâneas dos Irmãos Grimm, de Perrault, de Sílvio Romero e Câmara Cascudo. Quando tive um filho, no fim dos anos 80, sempre contei histórias para ele na hora de dormir, mas li muito mais. Sei que há pais que continuam contando e lendo histórias. Sei também que muitos acham mais fácil que o filho assista a um filme ou desenho animado – e nem sempre acompanham-no nessa experiência.
Ilustração Marcelo Tolentino
Claro que é importante assistir a filmes e desenhos, mas a voz que conta uma história é algo primordial, em termos afetivos e intelectuais. Nada substitui esse momento entre pais e filhos, ou avós e netos, ou qualquer outra pessoa próxima da criança. A perda desse momento ou da arte que o produz é como a perda de uma espécie animal ou vegetal. Não se trata de saudade. Trata-se da desintegração do mundo.
Outro ponto, na verdade quase tão óbvio quanto o anterior, é: como ficam os costumes e as manifestações artísticas de um povo num mundo interligado de modo instantâneo e guiado por algoritmos com propósitos políticos e comerciais nada republicanos (para dizer o mínimo)?
Influências entre povos sempre houve, é claro. Peguemos os contos como exemplo. Conheço uma versão japonesa do Pequeno Polegar, sim, com casa de chá e tudo. Outro bom exemplo é um conto típico europeu, daqueles em que a prova que o herói enfrenta é ir ao inferno perguntar algo para o diabo. No Brasil, além de o rei se tornar um rico dono de moinho no sertão, o inferno é um barracão de zinco.
Então podemos falar de folclore japonês, brasileiro e europeu? Sim, desde que nosso nacionalismo não seja tipo torcida organizada. Se o cerne de uma história é o flagrante preciso de um problema humano, essa história viaja de boca em boca, sem dar a mínima para as fronteiras. Nada de estranho, então, que o Pequeno Polegar vá parar no Oriente, apenas perdendo a aparência europeia para vestir quimono. Ou que um rei europeu se torne uma espécie de coronel nordestino e o inferno seja apresentado como um barraco na favela.
Até aqui, tudo bem, estamos diante de um processo que acontece naturalmente: criações anônimas tomadas e modificadas por outros criadores anônimos. Bom, nem sempre. Em Os argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski relata que danças ou canções que se tornaram tradicionais numa tribo das ilhas Trobriand, na Nova Guiné, às vezes eram vendidas para outra tribo pelo autor, caso elas caíssem no gosto de alguém. Mas essas danças e canções se mantinham sem grandes alterações, sujeitas mais às traições da memória do que à influência dos costumes, razoavelmente semelhantes numa região tão pequena. Bom notar, ainda, que havia a ideia de autoria numa cultura sem escrita. Não parece lógico que isso não tenha acontecido em outras sociedades primitivas.
Agora, hoje, estamos falando do planeta, onde, fora boatos, talvez não haja mais nada criado anonimamente. Os velhos contos são recontados ou reinventados por autores com nome e sobrenome, sob a influência da cultura de um determinado país e de uma determinada época. Isso pode ser ruim ou bom, depende do talento e da inteligência desses autores. Como alguns autores são mais influentes do que outros, algumas visões têm um predomínio maior, como é o caso de Disney, que suavizou os contos para não ferir a sensibilidade ou carolice dos caipiras norte-americanos. Mais: tornou “padrão de qualidade” um tipo de ilustração muito convencional, redondinho e insípido.
Como dizia Luis Buñuel, os países dominantes impõem seus autores: quem leria Hemingway se ele fosse paraguaio? Mas hoje é mais grave, nem são países nos dizendo o que devemos ouvir, ler, ver, sentir: são conglomerados transnacionais que só desejam tornar o maior número de pessoas em consumidores passivos. Tanto que um filme para crianças não é feito apenas para contar uma boa história, mas vender, pra começo de conversa, bonecos, roupas, calçados, mochilas.
Pra completar o quadro de horror, milícias digitais terraplanistas em termos morais e culturais agem para reduzir a literatura, a arte e o cinema ao nível dos dois neurônios de seus membros. Não é só que a gente agora tenha esquecido o Saci e esteja festejando o dia das bruxas – a bruxa deve ser gente de bem e defender a escola sem partido, escola perfeita, acho, para a mula sem cabeça.
Por isso tudo temos que resistir. Escritores, professores, jornalistas, editores, artistas, pais, enfim, todos devemos ser muito espertos, muito críticos. A arte, qualquer arte, não é produto de uma fábrica de bolachas. Mesmo que grande parte do público adore bolachas sempre iguais, do mesmo tamanho, com o mesmo cheiro e sabor. O pessoal da nutrição já cansou de avisar: quanto mais variada a dieta, melhor.
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Ernani Ssó é autor de Contos de gigantes, Amigos da onça e As lendas urbanas da morte, entre outros. Nasceu em Bom Jesus, RS, num ano de neve. Em 1974, entrou para o jornalismo, porque queria ser escritor. Saiu em 75, pelo mesmo motivo. Tem livros para adultos, mas prefere os infantis, porque são mais difíceis de escrever. Chama-se Ernani por causa de um galã de radionovela e Ssó, esse erro de revisão, de maluco, ou para não se sentir muito sozinho, como disse Mário Quintana.