O hábito de mandar cartas voltou (e o carteiro também)

03/02/2020

Lançado há 34 anos nos Estados Unidos, “O carteiro chegou”, de Allan Ahlberg, se tornou sucesso mostrando a bem-humorada troca de correspondência entre personagens clássicos dos contos de fadas e a saga do carteiro que, entre uma xícara de chá e outra, entrega todas essas mensagens. Para alegria dos leitores, a história ganhou mais um episódio em “O Natal do carteiro”, em 1991, e agora outro, com “O carteiro encolheu!”. Dessa vez, ele não acorda muito bem, mas levanta da cama e segue para o trabalho… até ser atingido na cabeça pelo chocalho do bebê gigante! (Aliás, não são só os gigantes do primeiro livro que reaparecem nesta nova aventura…)

(Ilustração de "O carteiro encolheu!")

Mais de três décadas depois da primeira publicação, talvez pareça um tanto anacrônico lançar mais um livro infantil sobre cartas, para uma geração que já nasceu na era do WhatsApp, do 5G e do armazenamento em nuvem. Afinal, tirando os boletos e as multas de trânsito, envelopes selados parecem ter se tornado antiquados nesta pós-modernidade. “No passado, a carta continha a expressão do amor, normalmente contingenciado por grandes distâncias e longos intervalos de tempo. A carta - com papel, texto escrito, assinatura etc. era a materialidade possível”, explica semioticista Clotilde Perez, professora da Universidade de São Paulo (USP).

Em outros tempos, as cartas atenuavam distâncias, trazendo notícias de quem estava longe. Davam segurança e credibilidade, graças a selos, sinetes, carimbos,  que transformaram-nas em documentos importantes no mundo dos negócios e do poder. Na literatura, serviam principalmente às narrativas dos romances. E em pleno século XXI, a que papel as cartas foram relegadas? 

(Ilustração de "O carteiro encolheu!")

 

As cartas nos tempos modernos

Na contramão das comunicações tecnológicas – tão impalpáveis quanto instantâneas –, a troca de cartas voltou a conquistar adeptos como uma espécie de hobby, que curiosamente (ou paradoxalmente) se dissemina por grupos e clubes online. 

Um deles é o Envelope de Papel, que tem mais de 600 inscritos trocando correspondências. “As cartas, para mim, representam muito mais do que conversas através de um papel envolto em um envelope. Podem parecer ‘coisa de antigamente’, mas o conteúdo que possuem traz muito sobre a pessoa que as escreveu e também muito prazer e alegria para aqueles que vão recebê-las”, conta Mariana Loureiro, de 23 anos. Publicitária de formação, ela sempre gostou de escrever e se inspirou nos relatos do pai, que trocava correspondências com frequência nos anos 1990, para iniciar seu próprio grupo. “Ele trocava cartas com pessoas de várias nacionalidades e locais, isso me despertava a curiosidade de encontrar essas pessoas e também de criar meu próprio grupo de amigos "penpal" (nome dado às pessoas que trocam cartas), conta.

 

“As cartas guardam a estética tátil e até olfativa e o afeto da pessoalidade expressa na caligrafia e no estilo do texto, além de carregarem a afetividade da memória, uma vez que podem ser lidas e relidas” (Clotilde Perez, semioticista)

 

O Envelope de Papel funciona com listas de correspondentes. Após o cadastro, cada membro recebe um número de identificação. Os  endereços são divulgados uma vez por mês – e, para garantir a privacidade, os destinatários são identificados apenas pelo número. Há também uma parte do clube para trocas de cartas entre crianças de 7 a 14 anos. “Elas são cadastradas em uma lista de endereços que contempla somente essa faixa etária, isso garante que elas não entrarão em contato com adultos. Essa lista teen é entregue aos responsáveis cadastrados por e-mail”, explica Mariana. Embora o número de crianças inscritas, 39 no total, seja bem menor que o de jovens e adultos, a participação dos pequenos não é menos relevante. “As crianças são um público muito curioso para a Envelope de Papel,  porque pertencem a uma geração que não conhece nem o e-mail, quanto mais as cartas”, explica. 

(Ilustração de "O carteiro encolheu!")

 
 

Trocar cartas é muito mais que escrever

Para Mariana, não basta escrever. O ritual da correspondência vai muito além do relato no papel:  envolve decorar o envelope, caprichar na letra e contar com uma boa dose de inspiração. “Cada carta eu faço de um jeito, nenhuma é igual a outra, no máximo o papel pode ser o mesmo”, conta ela, que tem uma coleção de itens para decoração, de adesivos a washitapes (fitas adesivas decoradas) e papéis decorados.

“As cartas guardam a estética tátil e até olfativa e o afeto da pessoalidade expressa na caligrafia e no estilo do texto, além de carregarem a afetividade da memória, uma vez que podem ser lidas e relidas”, como explica Clotilde. As cartas extrapolam a função de comunicação e registro, são carregadas de emoções e possuem uma materialidade muito mais palpável que a de um e-mail, por exemplo. A relação com este pedaço de papel e escrita é muito diferente. Somente isso já seria um bom motivo para incentivar crianças a adotarem este hábito. “Por isso são tão potentes como signo-simbólico”, completa a professora.

Para além desses fatores, as correspondências trazem um outro tipo de interatividade entre as pessoas, não pautada pelo digital, e propõem encontros, trocas, diálogos, perguntas verdadeiramente interessadas sobre o outro (o que faz, quem é, o que gosta...) e podem levar ao surgimento de amizades - o que é outra lição e tanto para ensinar aos pequenos.

Mariana atualmente  se corresponde com cerca de 20 pessoas e recebe de duas a três cartas por semana. Ela costuma escrever aos fins de semana, e envia ao menos seis cartas por vez. Assim que finaliza a correspondência, posta uma foto no perfil do grupo no Instagram, marcando cada um dos destinatários, para que eles tenham certeza de que as cartas que enviaram foram respondidas. São as trocas de cartas nos tempos modernos...

É no mínimo notável que as cartas busquem justamente no meio digital, com as redes sociais, uma possibilidade de expandir sua teia.  Para Clotilde, esta é a comprovação de que as mídias interagem e se misturam, raramente sendo substituídas, mas convivendo em vez disso. “Como aconteceu no passado: decretou-se o fim do cinema e ele segue firme, assim como a televisão…” reflete a especialista. Que as cartas também sigam firmes, carregando histórias, afetos e inspirando as andanças do nosso querido carteiro!

Leia também:

+ As cartas de um menino ao mundo

+ Como formar crianças leitoras na era digital?

+ Cartas para Monteiro Lobato

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog