José Saramago estaria hoje com quase 98 anos se uma leucemia não o tivesse levado uma década atrás, em 18 de junho de 2010. Sua falta faz muita falta, principalmente para a literatura, que se recicla como consegue com os textos e as obras deixados – e os livros infantis são uma prova disso, já que nenhum deles foi efetivamente escrito para crianças. Ele dizia que não sabia escrever para elas, que ele mesmo foi uma criança interessada em livros de adultos e que elas poderiam entender muito mais do que achamos que entendem – e tinha razão.
(Entrega do Prêmio Nobel de Literatura a Saramago em 1998 / Crédito: The Nobel Museum)
Fato é que “A maior flor do mundo” foi um texto publicado numa revista e “O silêncio da água” e “O lagarto”, publicados após sua morte, foram trechos retirados de outros livros – “As pequenas memórias” e “A bagagem do viajante”.
Se tivesse vivo hoje, em um mundo de pandemia, ascensão da extrema direita e mortes provocadas pelo racismo, talvez não tivesse mais nada a dizer além do que já escreveu em “Ensaio sobre a cegueira” e “Ensaio sobre a lucidez”, inclusive os caminhos possíveis para reconstruir a sociedade. O português filho de camponeses, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, teve muitos ofícios antes de viver da escrita. Foi serralheiro mecânico, designer, funcionário da saúde e da previdência social para só então virar tradutor, editor e jornalista. Escreveu seu primeiro livro aos 25 anos, em 1947 – "Terra do pecado", e manteve um intervalo de quase 20 anos para publicar seu segundo livro, “Os poemas possíveis”, em 1966. A partir de 1976, passou a viver exclusivamente da literatura.
Em 1986, conheceu a jornalista, escritora e feminista espanhola Pilar del Río, que o procurou para falar da sua paixão pelo romance “O ano da morte de Ricardo Reis”. Casaram-se dois anos depois e ela nunca aceitou ser reduzida ao papel de “mulher de”, muito menos de “viúva de”. Pilar preside a Fundação José Saramago, com sede em Lisboa, que se ocupa da divulgação da literatura contemporânea, defesa dos direitos humanos e cuidados com o meio ambiente. E é sob essa condição, de responder como a presidenta da Fundação, que nos concedeu entrevista por e-mail.
(Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago / Crédito: Bruno Colaço)
Este ano completa-se dez nos da morte de Saramago. Como foi essa década sem ele?
Pilar del Río: Nesses dez anos, a Fundação esteve trabalhando de acordo com o projeto que foi estabelecido com José Saramago: sermos facilitadores da difusão cultural, insistir na Declaração dos Direitos Humanos e dos Deveres Humanos, cuidar do legado humanista que nos foi entregue.
O que você gostaria de estar fazendo hoje caso ele estivesse vivo? Como gostaria de passar esses dias?
Nós, na Fundação José Saramago, passaremos esses dias trabalhando, que é o que Saramago fez até último momento da sua vida. No dia 18 de junho haverá uma leitura na fundação, feita por três grandes atores, do último trabalho de José Saramago, o romance “Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas”. Será transmitido ao vivo para quem quiser fazer parte. Pela manhã, em Lanzarote, na biblioteca de José Saramago, haverá música para assinalar o momento.
O que você contaria para ele se tivesse hoje a oportunidade de uma última conversa?
Eu lhe perguntaria se está gostando do que estamos fazendo em Portugal e no mundo...
Se pudesse reviver um dia que tiveram juntos, qual seria?
O momento quando ele terminou de escrever “Ensaio sobre a cegueira”, após um processo duro e desgastante, e então escreveu um fax para os amigos, que guardo até hoje, onde dizia:
“UF!
Acabou o Ensaio!!
Abraços
José”
Recordo que este livro é capital nos dias de hoje. E que escrever tanta dor também lhe causou muito sofrimento.
Se estivesse vivo, como acha que ele estaria vendo os tempos atuais? O que diria?
O que tinha que dizer ele já disse com o “Ensaio sobre a cegueira” e com o “Ensaio sobre a lucidez”, ali está tudo, o medo, o terror, o caos, a morte, e também a reconstrução da sociedade com o ativismo e a generosidade dos jovens. É preciso ler a “Lucidez”, um livro que hoje é muito importante para afrontarmos o futuro, que será muito duro para muita gente.
(Pilar del Río em frente à Fundação José Saramago, em Lisboa / Crédito: Bruno Colaço)
“A maior flor do mundo” é a primeira história infantil de Saramago. Como esse livro surgiu?
Foi um conto que José Saramago escreveu a pedido de um amigo, publicado numa revista, e que Saramago esqueceu dele. Passados muitos anos, o seu editor naquele momento encontrou o texto e lhe deu a surpresa de publicá-lo. E realmente foi uma boa surpresa, esse livro está traduzido em muitos idiomas e também virou filmes, composições e concertos musicais, desenhos animados, oficinas infantis e muitas, muitas outras respostas.
Outras duas histórias publicadas em livros “para adultos” acabaram se transformando em livros infantis postumamente - "O silêncio da água" e "O lagarto". Por que Saramago não escreveu para crianças?
José Saramago não foi um leitor de livros infantis, talvez isso explique o seu pouco interesse no assunto. Começou a ler livros “para adultos” ainda muito jovem e costumava defender que não havia problema em uma criança ler um livro sem entendê-lo plenamente. Numa segunda leitura já entenderão mais, assim se forma um leitor. Em linhas gerais, e disse isso muitas vezes, não era partidário da chamada “literatura infantil”, embora reconhecesse que era uma primeiro passo. O que não queria é que fosse muito durador, porque há muitos livros à espera dos leitores jovens. Também dizia que ler requer esforço e que na vida, em geral, é necessário esforçar-se. O esforço de ler será o mais recompensador.
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Como ele era com as crianças?
Era um adulto que tinha pouca relação com crianças e, sobretudo, odiava a hiperproteção a que algumas estão expostas. Considerava que as crianças, sozinhas, muitas vezes conseguem chegar mais longe do que quando estão excessivamente dirigidas pelos adultos que não as deixam em paz.
Há outros trechos das obras de Saramago que renderiam boas publicações para crianças?
Sem dúvidas, e há trabalhos nesse sentido. Fragmentos das suas memórias ou outros textos, como dos diários ou das crônicas, permitem essas camadas de leituras, para um público menos crescido e mais crescido.
Sobre “As pequenas memórias”, Saramago disse: “Queria que os leitores soubessem de onde saiu o homem que sou”. O que você enxerga da infância de Saramago no homem que ele se tornou? O que ele ainda tinha de menino?
José Saramago construiu a si mesmo, isso fica claro em “As pequenas memórias. Ele queria que aquele menino cheio de curiosidade da infância e primeira juventude o acompanhasse durante o resto da vida, ou seja, queria ser sempre aquele menino que aprendeu a aprender. José Saramago detestava o papel daqueles que acham que sabem tudo, preferia ser alguém que indaga, que pergunta e pergunta-se. Porque o mundo, todo ele, “é uma interrogação”, como ele escreveu.
O que Saramago falava da infância dele para você?
É o que está escrito em “As pequenas memórias”, que é um livro biográfico e sem fingimento, onde ele conta o que entende por bom e também aquilo que não gosta. Insisto, é o livro da base – da sedimentação – de um ser humano. Claro que percorremos paisagens de Lisboa e de Azinhaga juntos e reconstruímos emoções, mas isso já diz respeito à vida privada. No âmbito público, deixou escrito que Lanzarote, a ilha onde viveu 20 anos e onde morreu, foi para ele a Azinhaga recuperada. Ou seja, o lugar que escolheu livremente e onde decidiu voltar a nascer.
OUÇA: Áudio com a história do livro "A maior flor do mundo"
Em “A maior flor do mundo”, o menino da história acabou sendo reconhecido como aquele que saiu da aldeia para fazer algo maior do que o seu tamanho e que todos os tamanhos. Você acredita nesse poder das crianças? Poderia dar um recado para essa nova geração?
Se José Saramago disse isso, quem sou eu para contrariá-lo? Claro que a solidariedade e a generosidade são projetos que são maiores que uma pessoa, por isso, aqueles que são generosos têm brilho e luz, enquanto quem é mesquinho vai murchando dia a dia... O menino saiu para fazer algo maior do que ele mesmo e fez, por isso hoje a sua imagem – e a imagem do seu criador – está no mundo todo.
(Trecho de jornal com entrevista que crianças fizeram a Saramago em 1996 /Arquivo Fundação José Saramago))
(Algumas respostas deo escritor para a entrevista das crianças/ Arquivo Fundação José Saramago)