Saramago, o menino

01/02/2022

Por Lilian Jacoto

Se olharmos para a obra de Saramago, no seu conjunto, perceberemos uma marca que a atravessa e faz a sua grandeza: são histórias que têm um poder de nos situar no mundo (com detalhes vívidos do real histórico) para subverter esse mesmo mundo através de uma passagem decisiva, um turning point muito sutil: uma palavra, um olhar, um acontecimento raro ou mágico que coloca tudo em xeque e abre uma fissura definitiva na ordem natural das coisas. Nada começa com um era uma vez: o mundo de onde ele parte pode lhe ter custado décadas de pesquisa histórica para espelhar o real que nos circunda ou nos circundou num determinado tempo bem datado, de homens e bens culturais muito nítidos e circunstanciados.

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Essa base textual pode muito bem ser explicada pela própria trajetória de um menino que começou a ler a partir dos jornais que lhe caíam em mãos. Praticamente não havia a presença da literatura, infantil ou adulta, na casa da aldeia rural em que viveu a sua infância, junto aos avós e a mãe, todos analfabetos. E é preciso não esquecer que Saramago cresceu num ambiente político muito hostil - desde a ascensão da ditadura em Portugal ao nazi-fascismo europeu - um mundo por demais real que se impunha aos sentidos, descia à terra. Não à toa que ele se firmou como jornalista e como escritor formado na escola neorrealista, sempre atento aos acontecimentos do mundo.

Retrato do menino Saramago. Fonte: Fundação José Saramago

Esse peso do real, por outro lado, fez com que guardasse, sempre vivo, um menino imaginoso dentro de si. Esse menino é, em minha opinião, o que transforma o jornalista em escritor, o que transmuda o real em ficção. Tudo acontece quando ele desloca o ângulo do olhar para o mundo e arrisca uma pergunta imaginosa: “e se...?” Surge então uma paisagem ligeiramente alterada onde começa a caber a esperança, a justiça e o amor. Por isso tenho dificuldade de concordar com a constatação que fez de si como incapaz de escrever para crianças: Saramago é um autor muito sério, porque faz a sua criança despertar a criança que há em nós. Assim, depois de muito bem informados sobre os limites do real, deixamo-nos embarcar numa jangada de pedra, numa passarola movida à vontade humana, ou numa ideia (perfeitamente plausível) de que os mortos a quem amamos nos acompanham pelas ruas e conversam conosco.

Dito isto, posso agora pensar no (con)texto específico em que aparece a frase "Tenho muita pena de não saber escrever histórias para crianças”. Trata-se do livrinho A maior flor do mundo (Companhia das Letrinhas, 2001). Em sua origem, era uma história que o autor publicou num livro de crônicas - A bagagem do viajante - sob o título de “História para crianças”, como uma espécie de roteiro que ele jamais daria conta de realizar. Mais tarde, entretanto, essa história seria reeditada no formato de livro infantil, então enriquecida pela coautoria de um ilustrador experiente como João Caetano. O que aconteceu nessa passagem de roteiro irrealizável ao livrinho concreto e bem-acabado - para crianças?

Acontece que o ilustrador coloca em cena uma figura que é sempre a mais importante em todos os livros de Saramago, a saber, o narrador. Para o caso, importa frisar que esse narrador se confunde com o próprio autor da história - a figura esguia e já idosa do velho Saramago, com seus óculos de leitura e mãos delicadas a segurar o papel em que escreve seu roteiro irrealizável.

O que se passa ali é que não é propriamente o menino o protagonista da história, mas esse narrador no seu drama da escrita, sua incursão no mundo das palavras. Daí que, conforme ele próprio afirma em A maior flor do mundo, a literatura começa no momento em que o menino ultrapassa o limite da paisagem aldeã conhecida para chegar a um certo planeta Marte que o ilustrador faz representar por um conjunto de letras. Todo o cenário, aliás, é feito de colagens de pedaços de jornais, mapas, selos, além de incluir a caligrafia do autor que está sendo reproduzida nos caracteres do texto impresso.

Ilustração de João Caetano para o livro A maior flor do mundo

Talvez a questão seja melhor colocada se pensarmos que não se trata de uma história de um menino e uma flor; mas de um escritor e o menino que ele encontra no reino das letras, a partir de sua própria caligrafia, para salvar uma flor feita com tesoura e cola - um mundo de infinitas possibilidades.

O livro, no casamento autoral entre ilustração e texto, chama e encanta a criança sensível a este drama, a esta relação. Já não é uma criança tão pequenina, mas a que habita em cada um de nós que amamos esse mundo de papel.

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Lilian Jacoto é professora doutora da área de Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

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