
Almoço de família: Janaina Tokitaka coloca divórcio e diversidade à mesa
A autora e ilustradora Janaina Tokitaka fala sobre sobre divórcio, diversidade e novas configurações familiares em seu novo livro: "Almoço de família"
A literatura não precisa, mas frequentemente faz isso: tornar-se esteio para atravessar momentos importantes, como é o caso de uma separação. Durante a infância, poder contar histórias – e contar com elas – para ampliar, pelas narrativas, as visões de como a vida em família pode ser é um dos efeitos de formar-se leitor.
Lá e aqui (Pequena Zahar, 2015), de Odilon Moraes e Carolina Moreyra, se tornou uma referência para falar sobre separação, com poética e delicadeza
Conversamos sobre o assunto com a psicóloga e psicanalista Fê Lopes, cocriadora da Semana de Apoio à Amamentação Negra, e com a terapeuta Alessandra Themudo Lessa Ciongoli, também psicóloga e psicanalista, especializada em psicoterapia psicanalítica de casal e família, além de ser supervisora clínica e membro da Associação Brasileira de Casal e Família.
Na construção de uma nova dinâmica familiar, os livros podem ser lugares onde a criança vai para reinterpretar seus sentimentos e o mundo – agora cheio de novidades e possíveis estranhamentos – ao seu redor. “Falar sobre famílias que vivem em duas casas, com dois pais ou duas mães, avós ou mães solo normaliza sua experiência; rompe com o ideal único de família feliz e intacta; reduz a vergonha ou o sentimento de "ser diferente” e estimula a empatia”, defende Alessandra. Já para Fê Lopes, o diálogo sobre diversidade no contexto de uma separação favorece que a criança desenvolva “integridade emocional diante do novo”.
As histórias também podem apoiar – sobretudo mulheres – que querem ou precisam se separar e não o fazem por medo da pressão ou do julgamento social que recai de forma mais acentuada sobre as mães. Lopes destaca que “o medo de traumatizar os filhos é um dos principais motivos para as mulheres não se separarem”. Assim, muitas vezes se prolongam relações prejudiciais à própria criança.
Precisamos produzir enquanto sociedade que a separação não é um trauma, é um dado biográfico", Fê Lopes, psicóloga e psicanalista
Não se trata de minimizar as emoções da criança, que podem, sim, ser difíceis. Para Alessandra Lessa, a separação pode configurar “uma ruptura no campo do vínculo familiar que abala o senso de segurança, principalmente se os conflitos forem intensos e o cuidado cotidiano desorganizado. A estabilidade emocional proporcionada por um ambiente familiar é essencial para que a criança se sinta integrada, coesa e amparada em seu desenvolvimento”, explica a psicóloga.
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O que a literatura pode fazer por quem ainda está crescendo e vê seu primeiro mundo, a família, mudar de forma? Pais, mães e cuidadores podem se desdobrar em outras famílias e até mesmo mudanças de cidade acontecem, e a ficção para as infâncias retrata ou brinca com as muitas formas que esse núcleo de cuidado pode assumir, tornando-se um convite para elaborar as emoções coletivamente. “Estar junto, brincar, desenhar, escutar, permite a elaboração mais rápida da ruptura, ajudando a criança a encontrar novos sentidos e significados”, afirma Alessandra Lessa.
A internalização da presença psíquica de um cuidador confiável se tornará um recurso que permitirá, com o tempo, que a criança enfrente situações difíceis – como a separação – com menos desorganização emocional", Alessandra Lessa, psicóloga e psicanalista
Nos livros vemos muitas formas de trazer este assunto à tona, daí a importância da bibliodiversidade também na hora de escolher quais histórias de separação contar às crianças. Por isso que pode fazer parte, também, dos acervos das escolas, colocando o literário no grupo dos pares, provocando uma sensibilização também em relação ao que o outro está passando, ou sua própria condição. Na literatura ilustrada brasileira recente, há particularmente um livro que vem à mente de muitos leitores quando o assunto é esse.
Lá e aqui (Pequena Zahar, 2015), de autoria de Odilon Moraes e Carolina Moreyra, é uma referência na temática. A história do livro é contada em primeira pessoa pela voz de uma criança que se adapta a uma nova dinâmica quando os pais decidem seguir rumos diferentes: “um dia, nossa casa virou duas”, diz a personagem. Sem subestimar a capacidade de elaboração emocional da criança, o livro apresenta as duas casas e suas singularidades, priorizando os aspectos positivos da mudança.
Lessa explica que, conforme acontece no livro, “a postura dos pais diante da separação é fundamental para a criança compreender que o que vai mudar é a configuração da família, mas que a criança não deixará de ter a sua família”.
O adulto tem o papel de ‘tradutor’ emocional da criança, ajudando-a a compreender, nomear e direcionar suas emoções", Alessandra Lessa, psicóloga e psicanalista
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Ana Tavares, editora do selo Pequena Zahar, destaca as particularidades de linguagem de Lá e aqui no cenário contemporâneo dos livros ilustrados brasileiros. “O que mais encanta nessa obra é a concisão do texto, o olhar lírico e a perfeita harmonia entre a narrativa verbal e visual. Nada falta, nada sobra. Cada elemento dialoga com o leitor na medida certa, sem subestimar sua experiência”, explica.
A editora conta também como foi editar este livro há mais de dez anos, quando os chamados hoje de “temas fraturantes” ou “assuntos difíceis” eram menos presentes na literatura para as infâncias. “A primeira vez que li Lá e aqui, ainda em esboço, me senti profundamente tocada. Toda a sensibilidade construída já estava presente ali. Até hoje, ao revisitar o livro, mediar uma leitura ou ouvir alguém contar a história, essa emoção se renova. Sinto-me imensamente sortuda por ter tido a oportunidade de publicá-lo”, relembra.
Lá e aqui comemora 10 dez anos em 2025, sua primeira década como um clássico contemporâneo, e exemplo contundente de livro ilustrado, quando texto e imagem se entrelaçam de maneira indissociável, e a narrativa surge a partir da imbricação entre todas as linguagens envolvidas na obra – incluindo o projeto gráfico, responsável pela materialidade do objeto. Quadrado, medindo 16,5 cm, cabe nas mãos – de crianças e adultas – de forma aconchegante.
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Também na chave de leitura da temática sobre conflitos familiares, acaba de chegar às livrarias o livro Pássaro preto (Companhia das Letrinhas, 2025), da premiada artista Suzy Lee, ícone da literatura infantil sul-coreana, vencedora do Prêmio Hans Christian Andersen e referência em livro-imagem. A autora tem outros seis títulos publicados pela Companhia das Letrinhas: Onda (nova edição de 2017), Sombra (nova edição de 2018), Espelho (nova edição de 2021), Rio, o cão preto (2021) e outros dois mais recentes, Linhas (2022) e Verão (2024).
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Com tradução direta do coreano pela ARA Cultural – a intensidade das imagens de Suzy Lee é acompanhada de um texto conciso e forte. “Quero chorar” e “ninguém me conta nada” são as primeiras frases. Já as ilustrações mostram, de relance, pela brecha de uma porta, todo um universo de enredos possíveis. A narrativa convoca o leitor ou leitora para uma leitura atenta aos detalhes, que convoca a reparar em componentes narrativos que muitas vezes não estão explicitados pelo texto verbal ou pela imagem, aparecem nas entrelinhas e convidam a saborear diversas vezes a mesma página.
A abertura de Pássaro Preto (Companhia das Letrinhas, 2025) é suficiente para anunciar o tema - e deixar o leitor com um nó no peito
No enredo, uma menina conta que se sente sozinha e excluída. Alguma coisa está acontecendo em casa e bagunça suas emoções. Ela não sabe o que é, mas imagina. O leitor também não sabe o que é, mas imagina. A capacidade de projetar outros cenários a ajuda a lidar com os desafios. É com a visita inesperada de um pássaro preto que aparece e a leva para passear longe dos problemas, que ela volta, mais fortalecida, à sua rotina.
Segundo Fê Lopes, “o principal cuidado dos adultos é não fazer da separação um segredo”. Daí a importância da ficção e dos livros como oportunidade de mediar conversas que precisam existir. “A pior coisa para uma criança é não saber o que está acontecendo. Manter uma comunicação franca é importantíssimo. A gente lida muito melhor com o que sabemos do que com os fantasmas daquilo que não nos dizem”, diz a psicóloga.
A criança tem o brincar como um recurso para lidar com a separação. Quando mais velha, ela tem os grupos e amigos. Adolescentes têm a escrita. E, em todas as fases, livros infantis podem ser bons companheiros nessa travessia", Fê Lopes, psicóloga e psicanalista
Alessandra complementa que livros e brincadeiras imaginativas são um recurso ainda mais potente quando aliados a um ambiente positivo. “É nesse espaço onde a criança simboliza, elabora e organiza o mundo interno. Através do jogo simbólico, ela pode experimentar perdas, reencontros, raivas e medos — sem precisar verbalizar tudo racionalmente. Se ela tiver acesso a brinquedos, tempo livre e um ambiente não intrusivo, esse é um dos maiores recursos para lidar com a dor”, explica.
Graças à imaginação, a personagem de Pássaro preto, pode estar lá – dentro de sua cabeça cheia de ideias e mundos possíveis – e aqui – no mundo real, onde as crises exigem nossa presença. Já Lá e aqui joga com a leitura de outra maneira, já que os lugares da narrativa são mais concretos, representados pelos dois espaços onde a criança aprende a viver após a separação, compreendendo como a casa pode ser um sentimento, mais que um lugar físico.
“Amor e o cuidado podem existir em diferentes configurações familiares. Isso reforça a coesão do self, evita fantasias persecutórias ou de exclusão", Alessandra Lessa, psicóloga e psicanalista
Ambos os livros jogam com a ideia de dois cenários que acontecem paralelamente, um lembrete para quem lê de que a vida pode ser de muitos jeitos diferentes. Para a nossa sorte, os livros são companhias permanentes, e podem ser ponte entre pessoas e situações, assim como as histórias geram silêncios importantes, também geram conversas. Como disse Fê Lopes, “conversar é algo que a gente vai fazendo, no gerúndio, ao longo da vida”. Para a psicóloga, “não tem problema algum os pais se emocionarem na frente dos filhos”. Na verdade, ela defende o contrário. “Assim, contamos para eles que somos humanos, ficamos tristes, temos medo. O cuidado que devemos ter é em tentar dosar a intensidade”.
No terreno das emoções, nem sempre a gente consegue se planejar com exatidão", Fê Lopes, psicóloga e psicanalista
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(Texto: Renata Penzani)
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