Imagina você depender completamente de uma pessoa e, de repente, ela simplesmente sumir pra sempre? Desesperador, né? É mais ou menos assim que se sente um bebê quando a mãe sai de sua vista por alguns minutinhos - mesmo que seja só para ir ao banheiro.
Em Quando você sai (Pequena Zahar, 2024), os medos e inseguranças que as crianças sentem quando a mãe se afasta transbordam como figuras ameaçadoras
Esse desafio de lidar com as próprias emoções na ausência materna é retratado de forma cativante no livro Quando você sai (Pequena Zahar, 2024), primeira obra do autor argentino Gastón Hauviller publicada pelo grupo Companhia das Letras. A narrativa mostra a jornada emocional de um menino quando sua mãe sai de casa. No texto, ele diz que nada de extraordinário acontece, mas as ilustrações revelam o contrário: e com muitos detalhes mostram a intensidade dos sentimentos que ele vive quando se vê separado da mãe. O pequeno se transforma em feras e bichos assustadores enquanto sua casa é transfigurada em cenários hostis que exalam tristeza, perigo e desamparo.
Esse misto de angústia e insegurança que bebês e crianças pequenas experimentam quando estão longe da mãe ou do cuidador principal é a chamada “ansiedade de separação”, um estágio normal do desenvolvimento. Nessa fase, que começa por volta dos 8 meses de vida e fica mais intensa entre os 10 e 18 meses, bebês também passam a manifestar sinais de ansiedade diante da presença de pessoas estranhas. A boa notícia é que essa angústia vai diminuindo conforme o segundo aniversário vai se aproximando.
“É como se a pessoa saísse da frente da criança se desmaterializasse e sumisse por todo o sempre. E aí ela entra numa angústia, num desespero. Quando a pessoa volta, o bebê se acalma”, explica Ariella Warner, pedagoga, especializada em Neurociência das emoções.
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A mãe sai. O choro aparece
Quando a mãe sai, o menino se vê sozinho - e seus medos começam a se manifestar em Quando você sai
O choro quando a mãe sai do alcance da vista não significa que o bebê é “mimado e não vai com ninguém”. Esse choro indica que o bebê desenvolveu um senso de apego aos seus cuidadores principais e que se sente seguro com eles - exatamente como deve ser.
É mais comum que esse sentimento de ansiedade se manifeste com a mãe, porque é, geralmente, com quem o bebê passa a maior parte do tempo nos primeiros meses de vida. “A tendência é que quanto mais cuidadores próximos a criança tenha, mais ela vá normalizando o fato de que alguém se afasta, mais ela fique segura com outra pessoa. E aí ela vai se acostumando”, afirma Ariella.
“O bebê humano não sobrevive se ele for deixado à própria sorte. Então, a ansiedade de separação é uma manifestação dessa dependência do bebê”, Roberto Santoro Almeida, psiquiatra e coordenador do grupo de trabalho de saúde mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
Como lembra Roberto Santoro Almeida, psiquiatra e coordenador do grupo de trabalho de saúde mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), “uma condição básica do ser humano é que todos nós nascemos absolutamente dependentes. Dependentes fisicamente, inclusive”. Ele explica que o que permite a um adulto se afastar fisicamente das pessoas que ele ama é que nós mantemos uma imagem internalizada dessas pessoas com quem nos relacionamos e sabemos que vamos encontrá-las depois. Já os bebês ainda não têm a permanência dessa imagem da mãe dentro deles. Essa imagem interna da mãe vai se construindo com o tempo e com as experiências que o bebê vive. “E o bebê vai sendo cada vez mais capaz de suportar esses afastamentos. Mas, nesse período crítico, até em torno de 4 ou 5 anos de idade, a permanência dessa imagem internalizada da mãe é muito frágil ainda”, afirma Almeida.
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O que são objetos de transição - e como eles podem ajudar
No livro O lenço de cetim da mamãe (Companhia das Letrinhas, 2024), de Chimamanda Ngozi Adichie, a pequena Chino vê sua mãe amarrar um lenço de cetim nos cabelos todas as noites. Em uma manhã, quando vê a mãe saindo para trabalhar, Chino fica apreensiva com a ausência dela e pergunta se ela irá voltar. Para acalmá-la, a mãe deixa que ela passe o dia brincando com o lenço de cetim, que acaba servindo de suporte para exercitar o faz-de-conta e imaginação.
Chino de certa forma usa o lenço para suprir um pouco da ausência da mãe - uma estratégia comumente utilizada pelos bebês e crianças para suavizar a ansiedade de separação: são os chamados objetos de transição. Eles podem ser qualquer coisa a que o bebê se apegue como uma naninha, um paninho, um bichinho de pelúcia e até objetos mais inusitados.
O termo “objeto de transição” ou “objeto transicional” foi criado em 1953 por Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês. Segundo ele, ao nascer e nos primeiros meses de vida, o bebê entende que ele e sua mãe são a mesma pessoa. Ele vive em um mundo em que tudo é mais ou menos misturado e não consegue ainda separar o que é o mundo interno do mundo externo.
Conforme o tempo passa e o bebê vai se desenvolvendo, o poder de discriminação vai aumentando e ele vai se percebendo como uma pessoa separada da mãe. Quando se vê como um indivíduo independente de sua cuidadora, o bebê percebe também que depende da mãe para ser cuidado. É nesse momento que começa a se manifestar a ansiedade de separação - e o objeto de transição passa a ser um apoio.
“É um objeto que a criança utiliza para permitir esse processo de afastamento da mãe. É uma espécie de intermediário entre o mundo interno da criança e o mundo externo, representado pela mãe. É aquele objeto que pode ser uma boneca, pode ser um travesseirinho, pode ser um cobertor, que permite à criança sentir-se segura quando está sozinha”, diz Almeida.
Em geral, os objetos transicionais acompanham os pequenos até por volta dos 5 anos, mas isso pode variar de acordo com o desenvolvimento emocional. E nem toda criança sente essa necessidade. É importante ressaltar também que a escolha do objeto deve ser da criança, já que ele precisa ter um significado para ela e não para os cuidadores.
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“Cadê a mamãe?”- como lidar com a ansiedade da separação
A tradicional brincadeira de “cadê a mamãe? achou!” é super recomendada para ajudar os bebês a entenderem que as pessoas não deixam de existir quando não as estamos vendo. Alguns brinquedos também auxiliam na apresentação do conceito de permanência, como a caixa de permanência montessoriana, em que o bebê coloca uma bola pela abertura superior da caixa e a vê ressurgir pela abertura frontal.
Os livros também têm um papel importante por apresentarem situações com as quais as crianças se identificam e ajudarem a ilustrar sentimentos e medos. Além de Quando você sai (Pequena Zahar, 2024), de Gastón Hauviller, e O lenço de cetim da mamãe (Companhia das Letrinhas, 2024), de Chimamanda Ngozi Adichie, há outros títulos que podem ser grandes aliados para tratar o tema de forma lúdica com as crianças.
Capa de O lenço de cetim da mamãe (Companhia das Letrinhas, 2024), em que a pequena Chino usa o lenço da mãe para matar um pouco da saudade
No dia a dia, quando o bebê chorar porque a mãe saiu de seu campo de visão, ao invés de voltar correndo para acalmá-lo, a mãe pode conversar com ele do outro cômodo, dizendo que logo volta. Essa resposta ajuda a criança a entender que a mãe ainda existe, mesmo que ela não possa vê-la.
Ariella também recomenda que essa ausência da figura de referência seja feita aos poucos, para que o bebê consiga ir assimilando. “Antes da mãe ficar a manhã inteira fora, faz 20 minutos, faz 10 minutos, toma um banho bem longo e deixa com outra pessoa e depois volta. E é bem legal que você vá fazendo esses pequenos passos antes da criança entrar em um desespero. Você pode fazer 2 minutos só, mas volta antes dela ficar em desespero, pra ela conseguir elaborar isso, que você vai, mas que você volta”, explica.
E quando é a criança que sai? Como se adaptar à escola
O início da vida escolar costuma ser um momento delicado para os bebês. Segundo o psiquiatra Roberto Santoro Almeida, é preciso, primeiro, entender que a adaptação escolar não é a criança se acostumar a ficar num local que ela não conhece. “A adaptação à escola é a mãe, ou o pai, ou o cuidador fazerem com que a criança sinta que o ambiente da creche ou da escola é uma continuidade do cuidado que eles estão oferecendo para a criança. A escola, de alguma maneira, tem que ficar impregnada da mãe para a criança, como se aquele cuidado e aquelas pessoas fossem uma continuação do cuidado em casa”, explica.
Para Ariella, um jeito de suavizar um pouco esse processo de adaptação escolar é, antes de tudo, levar a criança para visitar a escola, para que ela possa já ir se ambientando ao lugar, ao ritmo e para que veja as crianças brincando e interagindo com os educadores e cuidadores. “Faça passeios com o bebê, com a criança, na frente dessas escolas. Mostre esses lugares, mostre as crianças entrando e saindo, como é legal, como elas estão se divertindo", afirma a pedagoga.
Depois, quando a criança começar de fato a frequentar a escola, é preciso que as professoras não tentem “substituir” a mãe. “A escola tem que se colocar como uma ponte até a família. O que acontece é que, quando a criança fica no colo da mãe, ficam lá as professoras e ajudantes tentando convencer essa criança a sair dali. Como se quisessem substituir a mãe. E a criança fica agarrada no que ela conhece enquanto segurança”, explica. Ela recomenda que no primeiro momento essa aproximação seja feita de forma lúdica, compartilhando uma brincadeira, por exemplo. Quando começar a se sentir segura, a criança vai descer do colo para brincar e começar a explorar o ambiente.
Mas o processo é gradativo. “Você viu que a criança desceu do colo da mãe, brincou, você convidou ela para ver um outro brinquedo e a criança foi contigo. Daqui a pouco, ela se vê longe da mãe e chora. E você leva ela até a mamãe - isso também relaxa a criança", explica a pedagoga. É assim que a criança vai, então, confiando nessa professora, entendendo que ela pode ser uma ponte até a mãe. Segundo Ariella, a tolerância da criança em ficar longe da mãe vai aumentando conforme cresce a conexão e o vínculo dela com a professora. E é bom alinhar já as expectativas: é muito provável que mesmo com esse vínculo criado, o bebê ou a criança chore em algum momento e peça pela mãe, faz parte dessa fase do desenvolvimento. “A criança chorar na ausência da mãe não é necessariamente um problema desde que a professora consiga acolher. Desde que a criança consiga achar o conforto no colo dessa cuidadora também”, conclui Ariella.
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