Parece antinatural dizer que precisamos aprender a fazer algo que, se não fizéssemos, não estaríamos vivos. No entanto, respirar é verbo plural, há múltiplos jeitos de fazê-lo, e muitos deles, infelizmente, aprendemos errado. Para além disso, respirar fundo é dos melhores conselhos para quando estamos ansiosos, estressados, raivosos ou desestabilizados emocionalmente, porque implica em parar, observar, focar no momento presente e em si próprio, restabelecer a calma e regular as emoções. Como não nascemos com essa capacidade, precisamos aprender a administrar as emoções nos primeiros anos de vida. E por isso o papel dos adultos é tão importante na regulação emocional das crianças (ainda mais em tempos de crise de saúde mental), bem como das estratégias e técnicas que ajudam a trazer mais controle emocional.
É por isso que o livro Respire fundo (Companhia das Letrinhas), da escritora norte-americana Sujean Rim, tem imediata conexão com crianças (e adultos ansiosos ou estressados). Ao contar a história do passarinho Bob, que não sabe voar e tampouco consegue se acalmar para tentar, a autora narra a história de muitos de nós e de nossas crianças. Mais que isso, ao ensinar Bob a respirar, ela traz técnicas para pequenos e grandes lidarem com a situação.
Indicado para leitores a partir de 6 anos, Respire fundo é uma fábula ilustrada sobre autoconfiança, regulação emocional e a importância da respiração.
Porém, como compartilhar aprendizados sobre respiração e autoconhecimento com as crianças, quando nós mesmos estamos tantas vezes ansiosos, ofegantes e atrapalhados no turbilhão do dia a dia? Conversamos com duas profissionais de saúde – tanto da perspectiva do físico quanto do ponto de vista da saúde mental – para entender como a respiração impacta o movimento integral do organismo, e como as crianças especialmente podem se beneficiar de uma educação voltada ao equilíbrio entre o corpo e a mente.
Regulação emocional: como lidar com a ansiedade na infância?
Na história de Sujean Rim, Bob é um pequeno pássaro vermelho que não sabe voar. Suas asas estão ótimas, assim como seu bico e o restante do corpo. Um perfeito potencial voador. Porém, o que não está funcionando bem são os pensamentos, que se agitam tanto quanto as asas, e assim ele não consegue sair do lugar.
Na primeira cena do livro, Bob aparece amarrado a um balão amarelo, tentando alçar voo de cima de uma árvore. Nada. Depois, ele investiga outras razões: "Não deveria ter comido tanta panqueca". Enquanto vê a turma toda batendo as asas por aí, ele tenta se ocupar em outros afazeres; conversa com a minhoca, cantarola um samba-canção enquanto apara a grama do jardim, e até joga xadrez com a tartaruga.
Com humor cativante para os jovens leitores, o que a autora faz aqui, na verdade, é introduzir fragmentos de situações que podem ser dolorosas para as crianças. Ao desviar a atenção do voo, Bob quer se distrair da própria ansiedade, essa palavra tão presente no vocabulário do indivíduo pós-moderno e que, assim como a alegria, a tristeza ou a raiva, é um sentimento com o qual há que se aprender a conviver.
A psicóloga Isabel Gervitz explica que existem muitas maneiras de interpretar os fenômenos psíquicos. Para a psicanálise, a ansiedade é um sintoma, associada a múltiplos aspectos que precisam ser examinados caso a caso, considerando as especificidades do contexto familiar, socioeconômico e cultural. “Nossa cultura reverencia como ideais a satisfação dos próprios desejos e a liberdade individual, tornando-os quase que mandamentos a serem obedecidos", afirma.
Circula no senso comum a ideia de que temos que estar sempre com alto astral, não podemos nos entristecer e só depende de nós mesmos sermos felizes. Esses ideais causam grande ansiedade não só nos adultos como nas crianças. É como se não pudéssemos nos frustrar, nos entristecer ou até aguentar esperar pela satisfação. (Isabel Gervitz, psicóloga)
Autoculpabilização: "O que tem de errado comigo?"
Relacionando a fala de Isabel às ações do passarinho em Respire fundo, percebemos que não é por acaso que Bob tenta se ocupar de outras coisas a todo custo quando não consegue realizar o movimento desejado. Assim como na história, a autoculpabilização é também uma reação frequente das crianças quando a tristeza ou a frustração aparecem, como quando elas dizem "por que só eu não consigo?" ou "o quem tem de errado comigo?". Daí a importância da presença dos adultos como o mediadores entre a criança e as circunstâncias desafiadoras – considerando que estas serão sempre mutáveis e imprevisíveis –, sobretudo nos primeiros anos, em que os pequenos ainda não aprenderam a identificar o que sentem.
Para pensar sobre a ansiedade nas crianças, precisamos também nos perguntar que mundo temos produzido como adultos. (Isabel Gervitz, psicóloga)
O papel dos adultos e a nomeação dos sentimentos
De acordo com a terapeuta, as crianças são capazes de nomear o que sentem à medida que os adultos lhes dão ancoragem, e são eles quem criam linguagem para experiências ainda sem nome na percepção infantil. “Quando as crianças são muito pequenas, suas manifestações corporais são aleatórias, não possuem um sentido específico. São seus cuidadores que interpretarão ao que aludem a partir de suas próprias referências. Sendo assim, um choro passa a ter significado de fome, sono, dor etc, a depender da leitura feita pelo adulto. Por exemplo: quando cai e chora, a criança pode ouvir algo como ‘Ah, caiu e machucou o joelho! Está doendo, né?’. Essas palavras oferecem sentido ao desprazer que ela sente. Organizam sua experiência, nomeiam sua sensação como dor, a localizam no corpo (joelho) e em uma situação (cair e machucar), dando um lastro de linguagem para essa experiência.”
É a partir das palavras ofertadas por outras pessoas que as crianças compreendem, sentem e pensam. O papel dos adultos é fundamental para que desenvolvam repertório. Quanto mais acesso a formas de linguagem, mais caminhos elas poderão desenvolver para se expressar e dar sentido às suas vivências. (Isabel Gervitz, psicóloga)
Considerando as subjetividades de cada criança, enquanto sujeitos dotados de múltiplas dimensões (social, cultural e psíquica), a partir de que fase do desenvolvimento infantil é esperado que as crianças possam nomear o que sentem? “O uso da fala para dizer das próprias sensações é um processo variado, pois envolve as particularidades da criança em seu contexto familiar e cultural, mas, a princípio, espera-se que ocorra entre os 3 e os 5 anos”, pondera a psicóloga.
No livro Respire fundo, de Sujean Rim, o passarinho Bob tenta várias artimanhas para voar, até perceber que o problema não estava em suas asas, mas em seus pensamentos.
Yoga e meditação ajudam a reaprender a respirar
“Bob treina muito. Ele sabe que essas coisas levam tempo”, diz o livro, no trecho em que o passarinho está mirabolando uma porção de engenhocas para fazê-lo voar. “Às vezes, tempo demais”. O texto vai guiando o leitor pela elaboração mental da personagem, até o ponto em que ele passa a duvidar de si mesmo. “Tem algo de errado comigo?”; “Por que todo mundo consegue, menos eu?” são pensamentos de Bob que podem ressoar em qualquer leitor, das crianças aos adultos. Até que um outro pássaro chamado Corvo passa por ali, percebe seu sofrimento e oferece a solução: “Você precisa respirar, Bob”. Algo tão corriqueiro e aparentemente óbvio soou como uma brincadeira para Bob. Mas é claro que ele respirava! A questão é: como?
Respire fundo abre caminho para desautomatizar a forma como fazemos as coisas, e assim olharmos com mais responsabilidade para os sinais do nosso corpo. Práticas como yoga e meditação são exemplos de como podemos desenvolver a consciência corporal que faltava ao Bob naquele momento de sua jornada. É o que defende a psicopedagoga educacional, Cris Pitanga, professora de yoga e autora do livro Descubra o iogue que existe em você. “Sempre que falo de meditação e yoga para crianças, gosto de começar com a frase de Paramahansa Yogananda, da Self-Realization Fellowship: “Focalize sua atenção em seu interior. Você sentirá um novo poder, uma nova força, uma nova paz no corpo, na mente e na alma”, conta Pitanga.
O objetivo primordial da yoga é possibilitar às crianças um encontro com sua verdadeira essência. Ajudamos a criança a perceber que ela tem um paraíso portátil de calma e de paz, e que esse paraíso ela pode carregar para onde ela quiser, para a relação com sua família, seus amigos e na escola. (Cris Pitanga, psicopedagoga educacional)
A partir de que idade a yoga é recomendada?
Muitas famílias se questionam a partir de que idade é recomendado começar essas práticas na infância. “Existem diferentes formatos para começar a introduzir a yoga para crianças, existindo trabalhos inclusive com bebês. No entanto, um trabalho focado em yoga e meditação pode ser realizado com crianças a partir dos três anos. Quando os adultos da família praticam e as crianças já são familiarizadas com essas práticas, crianças de dois anos podem ser muito receptivas à prática”, conta a educadora.
Tanto a yoga como as técnicas de meditação e concentração ajudam as crianças a acalmar seus pensamentos, desenvolverem a memória e o raciocínio, assim como, a capacidade de foco nas atividades que realiza. (Cris Pitanga, psicopedagoga educacional)
Professora das duas práticas há mais de 25 anos, Cris conta que já viu as crianças utilizarem os ensinamentos das posturas e dos exercícios de respiração como repertório em situações desafiadoras, que causam medo ou ansiedade. A criança que pratica com regularidade leva de uma forma muito natural o que aprende para os momentos em que estiver com as emoções a todo vapor.
Ansiedade, frustração, raiva: esses sentimentos fazem parte da rotina das crianças, principalmente nos grandes centros urbanos, que impõem um dia a dia tomado de hiperestímulos, informações em excesso e pouco tempo para a experiência de si. Na contramão do mundo externo, práticas como yoga e meditação ajudam a criar um tempo de autocuidado, observação do corpo e modulação da respiração, contribuindo na regulação emocional de adultos e crianças. “As posturas da yoga são psicofísicas, assim, em cada asana, em cada exercício que a criança faz com o corpo, ela estará imitando um determinado animal, um elemento da natureza ou algum objeto. Como a criança aprende na aula quais as posturas que podemos utilizar nas diferentes situações, com o tempo e com a prática regular, ela passa a utilizar o exercício certo na hora certa, assim, ela aprende a identificar melhor suas emoções, como também, a utilizar a técnica que mais adequada para regular alguma emoção que esteja sentindo”, explica a professora.
À medida em que vai aprendendo a realizar esses movimentos, a criança desperta a calma, a coragem, a paz, a capacidade de lidar com as situações desafiadoras e de perceber as sensações de raiva, de medo. (Cris Pitanga, psicopedagoga educacional)
Sem conseguir voar, Bob tenta distrair sua ansiedade focando em outras questões, mas a estratégia não é muito eficaz
A importância de acolher os sentimentos – sobretudo os difíceis
O que o dia a dia com as crianças – e o livro Eu respiro sublinha com a potência da arte – é que as emoções difíceis (raiva, tristeza, ciúme) continuamente nos interpelam em nossa relação com o mundo. No caso das crianças, que são seres em formação que ainda não compreendem totalmente as dinâmicas de relações, como criar ferramentas para que elas entendam esses sentimentos como algo natural da experiência humana?
Para Gervitz, os vínculos com os cuidadores, instituições que frequentam, local onde moram, produtos que consomem, serão um contexto amplo em que os valores da cultura serão transmitidos para crianças. Assim, elas serão capazes de perceber e atribuir sentido a emoções e pensamentos a partir de falas e atos que as rodeiam. “Para que os sentimentos sejam entendidos como algo natural da experiência humana, eles precisam ser vivenciados dessa forma em diferentes contextos da vida da criança. Quanto mais acesso as crianças tiverem a situações e locais onde podem trocar com outras pessoas, mais formas aprenderão de se relacionar. Isso inclui não só relações um a um como também conexões com o campo social por meio de livros, filmes, obras de arte e peças de teatro”, afirma a psicóloga.
Não adianta dizermos que tudo bem ficar triste, se manifestações de tristeza ao redor forem constantemente rechaçadas (Isabel Gervitz, psicóloga)
Além disso, quando o assunto é saúde mental e física conjugadas, vale ressaltar que a educação dos filhos passa necessariamente pela formação que os próprios pais/cuidadores tiveram. Então, considerando que muitos adultos de hoje não receberam uma educação afetiva em sua própria criação (sobretudo de gerações passadas, mais rígidas e pautadas em obediência e hierarquia), como garantir que as crianças terão espaço para se expressar nesse sentido? “A educação dos filhos passa necessariamente pela dos cuidadores, mas não se restringe a essa relação. Aprende-se sobre as relações afetivas em meio a vínculos diversos: com amigos, com família, com instituições, com a arte, com a literatura, etc.
É impossível garantir que as crianças tenham espaço para se expressar, mas isso pode ser favorecido ao terem acesso a contextos distintos em que outros padrões de relação são propostos. (Isabel Gervitz, psicóloga)
Livros para respirar fundo – e melhor!
A literatura oferece muitas potencialidades, entre elas a oportunidade de se identificar, por meio das personagens, com experiências que o leitor ainda não conseguiu nomear em si mesmo. Vem também daí a forte identificação que sentimos ao ler determinadas histórias, que conseguem narrar sentimentos profundos como se nos conhecem de perto. Além do lançamento Respire fundo, selecionamos alguns livros infantis que abordam temas como regulação emocional, autoconhecimento e meditação, e que ajudam as crianças a respirar, olhar para si e cuidar das emoções.
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A raiva, de José Carlos Lollo e Blandina Franco
"No começo era só uma raivinha à toa. Uma coisa boba, que nem tinha razão de ser, mas que, mesmo assim, era." Todo mundo já sentiu raiva em algum momento da vida. Ela pode surgir das coisas mais simples, como de um olhar de alguém meio de lado, um sorriso diferente, uma palavra torta. Até que tudo passa a alimentar essa raiva e logo ela se torna uma fúria! Dos premiados autores Blandina Franco e José Carlos Lollo, esse livro conta, com muito bom humor e belíssimas ilustrações, como um sentimento pode crescer e tomar conta de cada um. Uma história de autoconhecimento para crianças e adultos.
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Gildo está fora do ritmo, de Silvana Rando
Na hora de tocar, Gildo entra fora de tempo e isso o deixa muito nervoso. Para se acalmar, ele terá de parar, respirar fundo e se reconectar. Na correria do dia a dia, muitas vezes ficamos ansiosos, querendo fazer tudo ao mesmo tempo. De maneira leve e divertida, o elefante vai nos mostrar a importância de se fazer uma pausa e olhar para nós mesmos.
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Diário de Pilar na Índia, escrito por Flávia Lins e Silva, e ilustrado por Joana Penna
Viajando de trem, riquixá ou bicicleta, Pilar e seus amigos conhecem o Taj Mahal, o rio Ganges e até o Dalai Lama. Entre aulas de yoga e meditação, são convidados para um casamento indiano, se encantam com os ensinamentos de Buda e aprendem sobre a história de Gandhi e seu movimento de resistência não violenta a favor da independência. Diário de Pilar na Índia é uma imersão cultural nesse país de inúmeros contrastes e que motiva também um mergulho interior.
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Eu medito e me conheço, de Sophie Raynal, ilustrado por Aurélie Guillerey
Esse guia de meditação apresenta Gina, uma menina curiosa que está animada para suas férias no Japão com seus pais. Ao chegar lá, ela conhece o Pequeno Sábio, um grande mestre de meditação, cheio de ideias interessantes. Juntos, eles embarcam em uma jornada inesquecível, em que Gina descobre tudo o que a prática da meditação pode trazer para sua vida – e como dar os primeiros passos para começar a meditar.
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Eu falo como um rio, de Jordan Scott e Sydney Smith
Em seu primeiro livro ilustrado, o premiado autor canadense Jordan Scott descreve em linguagem habilmente poética a história de um menino com dificuldades na fala, que encontra em seu pai o alicerce capaz de reconectá-lo com o mundo a seu redor e ajudá-lo a encontrar sua voz. Baseado na experiência pessoal do autor e magistralmente ilustrado por Sydney Smith, Eu falo como um rio é um livro para quem se sente perdido, solitário ou incapaz de se adaptar.
Escrito pelo monge zen-budista Dosho Saikawa, este livro bilíngue português-japonês conta a história do peixinho Tarô e sua viagem em busca da água da vida. Ao final do conto, o leitor conhecerá um pouco sobre o budismo e alguns de seus principais fundamentos.
(Texto: Renata Penzani)