Braços, pernas, cabeça, pescoço e até o dedinho do pé. Cada parte do corpo humano tem uma razão de ser e várias utilidades. Mas quando é que uma pessoa começa a ter noção do potencial de cada pedacinho seu? E das diferenças e sutilezas também? Acredite se quiser, mas, em alguns casos, nunca. Há adultos que não olham para si e não compreendem a grandeza que existe em cada célula.
Por isso é tão importante aproveitar a fase da infância, que traz uma curiosidade natural sobre tudo, para desenvolver o que se chama de consciência corporal. Nada mais é do que conhecer o seu corpo, as partes dele e entender como elas podem se relacionar com o ambiente e as pessoas ao nosso redor. Existem vários livros que ajudam a despertar o interesse e a compreensão sobre o assunto, como Corpo, corpinho, corpão (Brinque-Book, 2023), de Mey Clerici e Ivanke.
Ao longo das páginas, uma menina mostra que cada corpo, do jeitinho que for, é único e revela muito do que somos e o que somos capazes de fazer. Além de exemplificar para que serve cada parte, de um jeito bastante divertido e inserido no contexto dos bem pequenos, ela mostra que existem diferenças entre corpos de diferentes pessoas (e pets) e que isso torna todos eles muito especiais.
Nas últimas páginas, as abas interativas mostram de uma maneira divertida o corpo humano em fase de crescimento (e as histórias que ele vai acumular). Sem ser didático, o livro traz aos menores a noção de corpo, do que ele é composto e o espaço que ocupa - e abre espaço para muitas conversas, desde aprender a nominar cada membro e a importância de cuidar bem do próprio corpo até a pensar na diversidade corporal e falar sobre consentimento.
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O desenvolvimento corporal
Como é que uma criança cresce e se desenvolve tão rápido e de maneira tão eficaz, principalmente nos primeiros anos de vida? “O crescimento mais acelerado é no primeiro ano de vida, quando ela tem o maior desenvolvimento e o maior ganho de habilidades. Ela aprende a rolar, a engatinhar e andar, além de ter um grande ganho de estatura”, explica o pediatra Nelson Douglas Ejzenbaum, membro da Academia Americana de Pediatria (AAP). “Depois disso, a criança vai ganhando estatura e peso e, na adolescência, tem dois grandes estirões. Normalmente, nas meninas, acontece entre 10 e 11 anos e, depois, por volta dos 12, e, nos meninos, por volta dos 12 e 13 anos e, depois, por volta dos 15 anos”, acrescenta.
Mas antes de tudo isso, logo que chega ao mundo, o bebê não tem noção sequer de que ele é um ser e sua mãe é outro. “Até os três meses, a criança não tem noção de corpo e de que é separada da mãe. Essa ideia começa a se intensificar após essa idade e, entre seis e nove meses, ela tem o entendimento de que é uma entidade independente", explica Nelson.
Por volta dos cinco meses, segundo o especialista, a criança começa a reconhecer partes do seu corpo e entender um pouco para que elas servem. Por exemplo, por volta dos seis meses, que, em média, é quando começa a introdução alimentar, os pequenos conseguem agarrar um pedaço de fruta e levar à boca. “O entendimento vai se intensificando a partir desse mês e, em algum momento, mais à frente, a criança entende para que serve cada parte do corpo”, aponta.
A importância da consciência corporal
Aos dois ou três anos de idade, a criança começa a interagir com o mundo, guiada pelos pais e por outros cuidadores à sua volta. Até então, é preciso colocar aqueles protetores nas quinas de móveis, segurar a mão com mais atenção e guiar os passos. Depois dessa fase, ela começa a desenvolver melhor a coordenação em relação ao ambiente, de acordo com a psicóloga Cynthia Wood.
“A criança começa a descobrir as partes do corpo e como ela as utiliza no espaço. Adquirir consciência corporal é entender como o nosso corpo se relaciona com o ambiente e com as pessoas com quem convivemos”, aponta Cynthia. É a partir daí que ela vai aprendendo a não esbarrar, não cair, a ter noção da força que tem, por exemplo, para abraçar alguém muito apertado, machucar o outro… Mas tudo isso acontece aos poucos. “É a partir dos 12 anos que, em geral, a consciência corporal está totalmente formada”, afirma a especialista. E mesmo assim ainda há tanto que aprender…
Como os adultos podem ajudar na educação corporal
Ao longo de toda essa jornada, os adultos - pais, cuidadores e professores - desempenham um papel importante para ajudar a criança a ir, aos poucos, compreendendo o seu próprio corpo, como ele funciona e também o quanto ele é único e especial. Isso sem falar na importância de cuidar bem dele e valorizá-lo desde sempre, do jeitinho que ele é, sem imposições de padrões estéticos.
Uma das formas de falar sobre o assunto vem pela literatura, com livros como Corpo, corpinho, corpão, Quem sou eu? (eleito um dos melhores livros infantis do ano de 2020 pelo Children's Book Council da Austrália, de Philip Bunting, publicado pela Brinque-Book no Brasil), Quem sou eu? (este de Sílvia Zatz, pela Companhia das Letrinhas, 2011), Eu sou assim e vou te mostrar (Brinque-Book, 2017) e Como funciona o incrível corpo humano (Companhia das Letrinhas, 2022).
Uma reflexão divertida sobre o que nos torna quem somos, no livro de Philip Bunting
Mas há também uma série de brincadeiras, atividades, músicas que ajudam nessa tomada de consciência ou a abrir espaço para boas conversas... Quem nunca dançou Cabeça, ombro, joelho e pé?
Cheio de adivinhas e curiosidades, este livro fala do começo da vida, ainda na barriga, e as transformações pelas quais passamos
“Conforme cresce e se desenvolve, a criança começa a saber que parte do corpo ela usa para fazer cada coisa. Ela descobre que as pernas servem para correr e caminhar, que os pés sustentam o peso do corpo, que as mãos funcionam para desenhar e escrever”, diz Cynthia. “Brincar com massinha, por exemplo, pode ajudar a estimular os movimentos da mão e a motricidade”, aponta.
Neste livro rimado, o corpo humano é apresentado estabelecendo semelhanças e diferenças com outros animais
Pode parecer distante, mas brincar com massinha de modelar, usar tinta, construir castelos no tanque de areia… Tudo isso estimula o desenvolvimento da coordenação motora grossa, usada para movimentos mais amplos, para que, lá na frente, ela consiga ter a base para desenvolver a coordenação motora fina, usada em movimentos mais detalhados, como escrever ou até lavar louça, quando estiver mais velha, por exemplo.
Neste livro, acompanhe todos os processos fisiológicos nos mínimos detalhes e descubra como eles se interconectam, de maneira leve e informativa
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Brincadeiras para fazer com os pequenos
Mas os estímulos começam muito antes. Aquela brincadeira que os bebês adoram, em que a pessoa esconde o rosto atrás de um pano ou das mãos e depois aparece (o famoso “cadê? achou!”), ajuda o pequeno a ir compreendendo a noção de espaço, visão, permanência. Eles também brincam com os próprios pés e com as próprias mãos, testando movimento e levando-os à boca, para sentir e compreender.
Quando a criança é pequena e você for dar banho, pode ir ensinando a noção de consentimento, enquanto fala sobre as partes do corpo. “Agora, vou lavar a sua perninha, tudo bem? Vamos lavar o cabelo? Vou passar sabonete na barriga”. Segundo a psicóloga, tudo isso ajuda, assim como conversar com a criança, falar sobre xixi e cocô, na hora de trocar a fralda, pode ajudá-la a entender e reconhecer, mais adiante, os processos fisiológicos importantes para o momento do desfralde.
Coisas simples, como colocar a mão do bebê ou da criança sobre a sua, ajuda a entender também a diferença de tamanho, o espaço que a mão dele ocupa e o toque. “Na escola quando a professora pede que a criança deite em um papel grande e que um colega faça o contorno do corpo dela, isso também motiva a compreensão”, explica Cynthia. Tem também o contorno das mãos e dos pés, que dá para fazer com lápis e depois pintar ou transformar em outros desenhos.
“Brincar de teatro de sombras, com as mãos e uma lanterna, também é um ótimo estímulo”, recomenda. Brincar de espelho (uma pessoa fica de frente para a criança e faz vários movimentos, para que ela copie, como se estivesse diante de um espelho), olhar no espelho de verdade, brincar de imitação, estimular gestos e reações, como quando você sorri para uma criança e ela sorri de volta, dá tchau ou bate palmas, pular amarelinha, pular corda… A lista é enorme!
Mexa-se!
Os esportes, a dança e atividades como aprender a tocar um instrumento musical também podem ser formas importantes para conhecer o corpo humano e sua incrível capacidade. Mas a partir de que idade a criança está pronta para aprender uma modalidade esportiva ou uma atividade como balé e música? “Depende muito! Tem crianças que parece que já nascem para nadar, cantar, dançar ou que têm muito estímulo para isso. Outras, nem tanto. Mas tudo é uma questão de treino”, explica a psicóloga.
Nada é impossível! “Cada um de nós tem algumas habilidades. Alguns têm mais habilidades matemáticas, outros de escrita, outros de fala. Cada pessoa tem um conjunto de habilidades em que é muito boa e outras para as quais precisa treinar”, aponta. O livro Mil e um jeitos de ser sabido (Brinque-Book, 2023) fala exatamente sobre isso!
Para ela, a persistência também depende do limite de cada indivíduo. “Existem pessoas que tentam duas, três, cinco vezes. Quando não conseguem, têm um limite e não querem mais. Outras tentam vinte, trinta vezes até conseguir e não se importam. É preciso respeitar os limites”, explica. Ela também lembra que, muitas vezes, a frustração acontece porque queremos ser perfeitos. “Não é porque a criança gosta de jogar futebol, que ela vai ser profissional. Às vezes, é um prazer, uma diversão”, lembra.
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Cada habilidade tem seu tempo
Outro ponto essencial de lembrar para ajudar as crianças a respeitarem seu corpo e o desenvolvimento de suas capacidades é que não é preciso ter pressa. “Às vezes, quando uma criança pequena está brincando com uma criança mais velha, a menor se frustra por não conseguir correr tão rápido ou não desenhar tão bem, por exemplo. É preciso ajudá-la a entender que leva tempo, mas ela também vai chegar lá”, diz Cynthia.
A psicóloga explica que, nesses casos, é fundamental conversar, mostrar fotos e vídeos antigos da criança e lembrá-la de suas conquistas até ali, o que ajuda a entender que, do mesmo jeito, ela vai alcançar outros objetivos - como irmão mais velho, por exemplo - com o tempo. “Os pais podem mostrar um vídeo da criança quando bebê e dizer: ‘Lembra que você era daquele tamanhinho? Que não sabia nem engatinhar, nem andar e nem falar? Com o tempo e com o treino, você chegou até aqui. Logo mais, vai aprender outras coisas também’”, ensina. Paciência é a chave.
Consentimento e proteção contra abusos
Compreender as partes do próprio corpo, assim como saber nomeá-las, é fundamental também para ajudar a criança a se proteger. “Por isso, é importante ensinar desde pequenininho”, diz a psicóloga. “Não podemos sexualizar a criança, mas é preciso explicar que a mamãe e o papai vão dar banho, a professora vai limpar, quando é muito pequeno, mas que há partes que outras pessoas não devem tocar, que não pode mostrar para todo mundo”, orienta.
A consciência corporal ligada à educação sexual, como ferramenta de empoderamento e proteção contra abusos, também tem a ver com a noção de consentimento. “É preciso respeitar a criança quando ela não quer abraçar ou beijar um adulto, ainda que seja a avó ou um tio querido”, aponta a psicóloga. “Caso contrário, estamos abusando; estamos ensinando que o adulto é que manda e que ela tem que abraçar e aceitar a vontade dele sempre - e não é assim”, explica. É claro que não precisa ser mal-educada, mas há outras formas de cumprimentar e podemos dar opções, como falar, acenar, dar um toquinho de mão…
Amar o corpo como ele é
Depois de aprender tanto sobre o corpo, tem uma lição que não pode faltar: você pode - e deve! - amar o seu corpo do jeitinho que ele é. Os pais têm um peso fundamental nesse ponto. “Não adianta mostrar livros, a escola ter programas de inclusão e falar de diversidade, se, na prática, os pais não demonstram isso. A criança vai seguir o exemplo e copiar a maneira como a família age”, afirma Cynthia.
“A criança não nasce com preconceitos, achando que as pessoas são diferentes. Isso é imposto pelos adultos ao redor. Quando uma mãe trata normalmente uma criança com alguma deficiência, a criança também vê que está tudo bem”, diz ela. “Quem ensina a ter preconceito ou achar que alguém é diferente, o gordinho ou magrinho, etc, é o adulto. É a sociedade que impõe. Se tudo for visto como bonito e que cada pessoa tem características diferentes, as crianças vão ter auto-estima”, completa.
O corpo humano é mesmo incrível, não é?