Eles percorreram quatro continentes desenhando com mais de 10 mil crianças

24/03/2023

“É preciso sair da ilha para ver a ilha”, escreveu José Saramago. Então, tomando um pouco de perspectiva, pode-se descobrir o que já se sabe?

Parceiros de criação na arte e na vida, o casal de ilustradores e arte-educadores Iván Kerner (mais conhecido como Ivanke) e Mey Clerici percorreu 32 países em três anos com o projeto Pequeños Grandes Mundos, uma série de oficinas gratuitas de desenho com crianças em diferentes contextos e culturas, idealizado em 2014. A ideia virou ação, que por sua vez virou literatura - o livro Pequeños Grandes Mundos: La vida en dibujos (“Pequenos grandes mundos: A vida em desenhos”), publicado em 2019 pela editora argentina Sudamericana, recebeu o prêmio destaque em livros informativos da ALIJA (Asociación de Literatura Infantil y Juvenil da Argentina).

Mas este não foi o único livro resultante da experiência (a dupla já tem 15). Ao conviverem com tanta diversidade de culturas e países, os autores identificaram o que crianças de várias partes do globo têm de semelhante: a relação com o corpo e a vivência da infância. Assim nasceu Corpo, corpinho, corpão, livro publicado pela Brinque-Book (2023), que aborda a questão da consciência corporal dos bem pequenos com um olhar de descoberta e brincadeira. 

 

Interativa, a obra da dupla argentina Ivanke e Mey Clerici traz abas em suas últimas páginas, para mostrar brincando e na prática o corpo em fase de crescimento.

A infância é o momento em que a brincadeira é uma linguagem, um modo de conhecer o mundo. (Ivanke, ilustrador)

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Infância e a relação com o corpo

No livro, a protagonista tem duas pernas para percorrer o mundo, braços para escalar montanhas e boca para cantarolar com os dinossauros. E se não fosse assim, quem e como ela seria? Com essa pergunta em mente, os autores convidam o pequeno leitor a pensar como o corpo media a nossa experiência de mundo. 

“O livro mostra a possibilidade de desfrutar do corpo que cada um tem, em uma sociedade que volta muito o seu olhar sobre os modelos – de beleza, do que está na moda ou não, do que corresponde ou não”, conta Ivanke. É também o que eles observaram em suas andanças por quatro continentes, as particularidades e também os pontos em comum de cada indivíduo.

Essa foi uma maneira de mostrarmos por meio das crianças quantas possibilidades tem cada parte do nosso corpo, e que todas têm a função de descoberta e de nos conectar com o mundo que nos rodeia. (Ivanke, ilustrador)

Os autores Mey Clerici e Ivanke com as crianças que participaram do projeto Pequeños Grandes Mundos em Myanmar, no sudeste asiático. / Crédito: Pequeños Grandes Mundos.

Então, o que um par de olhos, de mãos ou um punhado de cabelos pode nos proporcionar, e como cada elemento que nos constitui faz de cada pessoa um ser único e incomparável? Entre as Américas, a África, a Ásia e a Europa, o casal argentino já atendeu mais de 10 mil meninas e meninos que, por meio de suas formas particulares de se expressar a partir dos desenhos, ofereceram incontáveis caminhos possíveis a essas perguntas. Mais que respondê-las, o projeto as transformou em imagens e histórias para contar.

Assim como a personagem de Corpo, corpinho, corpão, as crianças que cruzaram o caminho dos professores também aproveitaram o espaço oferecido para expressar por meio dos desenhos o que nem sempre conseguiam dizer. “O enfoque do nosso trabalho é usar os desenhos como ferramentas de contar. As ilustrações são possibilidades de contar coisas sobre nós por meio das imagens – quem somos, como enxergamos o mundo, do que gostamos”, explica Ivanke.

Pequenos grandes mundos – e suas infâncias singulares 

Desde seu surgimento, em 2014, a ideia do Pequeños Grandes Mundos foi usar o desenho como um instrumento de narrativa de si e vem mostrando a Ivanke e Mey que as infâncias, por mais plurais e multifacetadas que possam ser, encontram no brincar a sua forma universal de comunicação. “A interação com as crianças sempre foi espetacular, mas tínhamos um grande desafio, que era a barreira idiomática. Então, valorizamos mais que nunca a brincadeira como um vínculo de confiança e amizade antes de começar a desenhar. Nós adultos estamos sempre tão ocupados com nossas preocupações e com a sobrevivência ao dia a dia que não temos muita disponibilidade para brincar com as crianças, então sempre fomos muito bem recebidos”, relembra Ivanke.

Na província de Salta, no norte da Argentina, crianças exibem os seus desenhos realizados durante as oficinas / Crédito: Pequeños Grandes Mundos.

O projeto passou por hospitais, escolas, centros culturais, centros de acolhimento para crianças órfãs, escolas, museus de fronteira, centros culturais e outros espaços. Em três anos de atuação direta e quase dez anos de trajetória na articulação entre arte e educação, o critério da dupla na escolha dos lugares foi buscar a maior diversidade possível – de idiomas, de condições socioeconômicas e de acessos a experiências culturais.

O intercâmbio cultural que produzimos era muito rico, o contato com jogos universais, a descoberta de práticas comuns. Mesmo em lugares muito diferentes, podemos viver de maneiras muito parecidas. Todos temos coisas que nos unem. (Ivanke, ilustrador)

Em Corpo, corpinho, corpão, uma garotinha muito animada apresenta seus amigos e sua família, mostra sua casa e explica para que servem algumas partes do corpo. É o primeiro livro da dupla Ivanke e Mey Clerici publicado no Brasil

Diversas culturas, uma essência universal

Com a bagagem adquirida nesses anos de convivência com crianças das mais distintas partes do mundo, os autores aprenderam não só a reconhecer as formas de expressão das crianças, mas também a se situarem enquanto adultos diante do processo de desenvolvimento delas. Eles destacam, hoje, que esse aprendizado de mão dupla nutre sua experiência como artistas e também como pais e indivíduos atuantes na sociedade, que precisa cada vez mais renovar seu olhar sobre a criança.

“É um grande desafio acompanhar respeitosamente as crianças, colocando limites (porque limite é amor), sempre tentando dar confiança às crianças no que quer que elas empreendam e mostrando possibilidades de fazer escolhas, dentro de um espaço seguro e confiável, explica o ilustrador.

É estar perto, mas também dar espaço, e não ficar demasiado presente, o tempo todo dizendo a elas como fazer as coisas. (Ivanke, ilustrador)

Ivanke destaca que identificar a disposição para a brincadeira e o constante olhar de descoberta das crianças foi parte fundamental do processo que levou ao livro e ao refinamento do trabalho da dupla de forma geral. “Viver experiências com crianças de tantos países e culturas diversas nos ensinou que apesar das enormes diferenças de oportunidades que cada uma tem, a relação com corpo e a vivência da infância são muito parecidas”, afirma o autor. 

O corpo está posto para brincar, descobrir, reconhecer-se e interagir com os demais. Isso é universal. Chorar, aprender, jogar, ou o quer que façamos com o corpo é igual para todas as crianças. Para nós, perceber isso é muito bonito. (Ivanke, ilustrador)

Os artistas Ivanke e Mey Clerici com as crianças no Quênia / Crédito: Pequeños Grandes Mundos.

A importância de escutar as crianças

Montanhas, desertos, realidades complexas, carências materiais, lugares recônditos onde há pouca ou nenhuma possibilidade de acessar atividades artísticas e culturais. Esses foram os territórios percorridos pelo Pequeños Grandes Mundos. Desde a abordagem inicial, em que as brincadeiras faziam as vezes de romper os limites da língua e abrir os caminhos da interação com os desconhecidos de ambos os lados, Ivanke e Mey identificaram um comportamento imprescindível na dinâmica com as crianças com que trabalharam: a escuta.

“É importantíssimo ouvi-las, e nos parece que há muito pouco espaço para isso, na escola e nas casas também. Pouco a pouco, isso vai mudando, mas ainda há um longo caminho a percorrer, para deixar de vermos as crianças como um recipiente vazio em que vamos colocando conteúdos para aprenderem como elas precisam ser na sociedade”, defende o artista. 

É preciso compartilhar dos seus olhares, escutar sua sabedoria, todo nosso trabalho está focado nisso, dar voz a tudo o que as crianças têm a dizer por meio dos desenhos. (Ivanke, ilustrador)

De todas as histórias acumuladas durante as viagens, algumas têm um espaço cativo na memória da dupla, por simbolizarem a essência do que é estar com as crianças e se colocar atento aos modos de expressão que elas apresentam. É o que relembra Ivanke ao contar a história de Matos, um garoto etíope de 11 anos. “Em uma das tribos por que passamos na Etiópia, conhecemos um menino que nos foi apresentado como um artista local. Quando chegamos, vimos que era uma criança. Ele fazia desenhos nas paredes dentro e fora de casa, desenhando seu contexto familiar, os animais, o modo de vida", diz.

Ivanke conta que, por não terem recursos, eles fabricavam sua própria tinta misturando carvão, óleo e água. "A família dele mostrou tudo com muito gosto. Essa história nos conectou com uma necessidade humana milenar, de contar o mundo e nós mesmos pelos desenhos”, compartilha o professor.

Matos, o "menino artista" de 11 anos, mostra sua casa e os desenhos de sua autoria, durante as atividades do Pequeños Grandes Mundos na Etiópia / Crédito: Pequeños Grandes Mundos

 

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