Tem a hora de acordar, de tirar o pijama, de escovar os dentes, de tomar o café da manhã, de brincar um pouco no parquinho com o papai. Depois, vem a hora do almoço. Mais tarde, tem a hora do passeio com a mamãe e o cachorro até a feira - oportunidade perfeita para comer um pastel e tomar um caldo de cana! E, finalmente: hora de ir para a escola. Essa poderia ser a descrição da rotina de várias crianças, mas é parte de um dia comum para Lelê, personagem de Lelê é pequenininha (Brinque-Book), de Rafaela Deiab e Tieza Tissi, com ilustrações de Letícia Moreno. Um livro que nos lembra o quanto a rotina, e a repetição, são importantes para as crianças, não só as pequeninas.
Lelê é pequenininha mostra um dia normal na vida de Lelê - um menina como tantas outras, que já vai a escola, tem hora de almoçar, de brincar...
Tem criança que estuda pela manhã, tem criança que ainda não entrou na escola, tem criança que não gosta de pastel... As rotinas dos pequenos que estão na mesma faixa etária mudam aqui e ali - mas costumam ser parecidas. E, para todos eles, saber que certos compromissos, rituais e atividades acontecem sempre, mais ou menos da mesma forma, ajuda a entender o que vem depois. Essa previsibilidade traz algo muito importante, principalmente no período da infância: segurança.
Capa de Lelê é pequenininha, com ilustrações de Letícia Moreno
Estalecer um conjunto de ações que se repetem diariamente em uma determinada ordem nos ajuda a saber - ou, pelo menos ter uma noção - de como vai ser o dia. Ainda que seja comum associar rotina a algo chato ou maçante, justamente pela repetição, ela é fundamental, não só para as crianças, mas também para os adultos. "A rotina faz parte da vida de todos e tem por objetivo principal suprir nossas necessidades afetivas, cognitivas, físicas, financeiras, espirituais, entre outras”, explica a psicopedagoga Manuela Barbosa, conselheira nacional e diretora administrativa-financeira da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp).
De uma forma ou de outra, todo mundo acaba criando uma rotina, quase que espontaneamente. Mas não significa necessariamente que seja uma rotina equilibrada. “A rotina saudável é aquela que se pauta na organização do tempo, de modo a melhor suprir as necessidades do indivíduo”, define a psicopedagoga. Isso significa que a rotina é a forma como dividimos o nosso tempo para atender às nossas próprias necessidades. No caso dos pequenos, como Lelê, a personagem do livro, são os pais ou cuidadores que definem essa sequência de acontecimentos, considerando o que a criança e a família precisam, diariamente, para viver de forma ordenada e conseguir cumprir as demandas para o funcionamento da casa e garantir o bem-estar de todos.
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Como a rotina pode contribuir com o desenvolvimento das crianças
Mas ter uma rotina não é apenas uma questão de ordem prática. Segundo a psicóloga Cristina Borsari, coordenadora de Psicologia do Sabará Hospital Infantil (SP), a rotina é essencial para o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional das crianças e tem um caráter disciplinar no comportamento delas.
(Rotina) É uma forma de ensinar valor e de desenvolver algumas habilidades como a autonomia, o controle das emoções e a concentração nos afazeres escolares, além de resultar em sensação de pertencimento (Cristina Borsari, psicóloga)
Em Bibo na escola, de Silvana Rando, o coelhinho vai narrando as atividades que faz com a professora e os colegas
São as atividades do dia a dia, os horários e os hábitos que também ensinam aos pequenos algumas das principais regras de convívio no meio social: como saber esperar a vez e compartilhar espaços. Em Bibo na escola, de Silvana Rando, por exemplo, os pequenos vão se identificar com o coelhinho e sua rotina na escola: brincar no tanque de areia, lanchar, tirar uma soneca... E também com a vontade de voltar no dia seguinte: já sabendo o que encontrar.“A rotina é uma maneira de ter previsibilidade. Traz conforto e desenvolve o raciocínio lógico nas crianças”, define a especialista.
Mesmo muito antes de a criança entrar na escola, a rotina funciona quase como uma sementinha para o aprendizado, que vai dar frutos lá na frente. “Isso porque contribui para a organização temporal, que serve de base para a compreensão de causa e efeito”, destaca a psicopedagoga Manuela. Basta notar que para crianças pequenas, até um passeio de casa até o parque pode parece uma eternidade. Não é a toa que Tá chegando? é o título do livro de Aline Abreu, em que acompanhamos a empolgação de vários filhotes, de diferentes famílias , para chegar (logo) ao parque. Com a repetição, as crianças vão construindo noções de tempo, de espaço e de ordem dos acontecimentos ao longo do dia. “Ao ter uma rotina, a criança aprende a possibilidade de estabelecer sequências, como a das letras para formar palavras”, exemplifica. Isso sem falar em matemática, física e quase todas as outras disciplinas que também se apoiam no desenvolvimento de raciocínio lógico.
Ilustração de Letícia Moreno mostra a protagonisa, Lelê, a caminho da escola em Lelê é pequenininha
E para os bebês? Rotina é segurança e afeto
Ainda que não faça a menor ideia do que seja horário, relógio ou sequer tenha noção do conceito de noite e dia, um bebê, tão cedo quanto chega ao mundo, já precisa e se beneficia da rotina. Nos cuidados de higiene, na hora do banho, de mamar, de ler uma história, de dormir… “É algo extremamente organizador para o bebê e o ajuda a se sentir seguro”, diz a psicóloga Cristina.
Se a rotina é a forma de se organizar para atender às necessidades da cada pessoa e da casa, conforme o bebê cresce, essas necessidades mudam, e a rotina também precisa ir se ajustando. “Na primeira infância, os horários definidos para brincar, fazer as refeições e dormir produzem a mesma sensação de segurança e ajudam no desenvolvimento de habilidades de organização e de compreensão das responsabilidades”, acrescenta.
Mas não adianta estabelecer uma rotina só para os pequenos. É preciso lembrar que os adultos são um modelo importante e, por isso, também precisam integrar essa organização, o que é fundamental para o bom andamento da dinâmica familiar. Não adianta ter o horário de janta da criança estipulado se os pais não a acompanham, se cada dia comem em um horário, se o ritual não se mantém para todos.
Por isso, quando nasce uma criança, é importante que toda a dinâmica da casa e da família se adapte ao ritmo e às demandas dela, dentro do que for posível. Quando a rotina é pautada nas necessidades da criança, contribui para que ela reúna condições de passar para a próxima etapa do desenvolvimento com mais segurança, lembra Manuela.
A autonomia e a independência só podem surgir se houver espaço de confiança para isso. E essa confiança se constrói com previsibilidade e flexibilidade das ações e na relação sincera e amorosa com o adulto de referência.
(Manuela Barbosa, psicopedagoga)
A falta dessa organização pode afetar os níveis de ansiedade da criança, além de gerar insegurança e atrapalhar a autonomia. Como saber a melhor forma de agir, sem precisar de uma orientação de um adulto o tempo todo, se a criança nunca tem a menor ideia do que vem a seguir?
Cuidado garantido: rotina também é afeto
Na contramão do peso que a palavra “rotina” pode despertar, remetendo a algo rígido, inflexível e imposto, estabelecer uma rotina pode ser uma forma amorosa de se importar com o outro. Sim, rotina também é afeto. “A própria programação construída em conjunto com a família pode ser um momento de conexão”, lembra Cristina, uma possibilidade de fortalecer a comunicação e o vínculo entre pais e filhos. "Fazer uma agenda, colocar a rotina em uma cartolina, em um papel colado na geladeira da cozinha… Podem ser momentos divertidos”, diz ela.
Além de poder criar memórias que as crianças vão levar por toda a vida, fazer a programação em conjunto é uma oportunidade para os pequenos sentirem que são ouvidos e que são parte das decisões da família. “Conforme a criança for crescendo, é essencial que ela participe da organização da rotina para que no futuro possa cumprir essas tarefas sozinha”, ressalta a psicóloga, que lembra também da importância de deixar alguns momentos em aberto nessa organização, garantido tempo para o ócio.
A criação dessa rotina em conjunto resulta em algo que a criança entende como uma regra a ser seguida, mas que também representa uma construção permeada com afeto e confiança. “O afeto é o responsável pela liberação de hormônios como ocitocina e endorfina, que são relacionados com a sensação de bem-estar. Assim, a criança sente-se bem em seguir a rotina e em receber carinho nessa troca com o adulto”, explica a especialista. Fortalecida na segurança e no afeto, a criança tem mais condições de desenvolver independência e autonomia por meio da rotina, de forma natural, gradativa e de acordo com seu processo de maturação cerebral.
Imprevistos acontecem ou: ter rotina para sair da rotina
Rotina é bom, mas existem alguns pontos a serem considerados quando se pensa em estabelecer uma, sobretudo quando se trata de crianças. O primeiro deles é garantir certa flexibilidade e espaços livres na programação do dia a dia. “Há que se respeitar o ritmo da criança, que ainda está em desenvolvimento. Se o adulto quer que ela aprenda a dar o laço no sapato ou a calçar a própria meia sozinha, mas que isso demandará mais tempo, precisará ajustar sua rotina para contemplar esse tempo”, explica Manuela. “E quando isso não for possível, é essencial conversar com a criança e combinar em que momento poderão desacelerar para que ela possa experimentar a vida em seu próprio ritmo”, aponta.
Lembra que a rotina precisa ser uma troca? Isso significa que não é só o adulto que impõe as regras à criança. É preciso considerar o ritmo delas. E isso também pode ser benéfico para o adulto, que aprende a pausar, a esperar, a olhar o mundo com admiração e espanto, como fazem os pequenos, diariamente. “Contemplar a natureza, brincar sem pressa, ter tempo livre no meio da rotina para fazer algo prazeroso é tão ou mais valioso quanto conseguir cumprir uma lista de afazeres”, lembra Cristina.
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Atenção para não sobrecarregar as crianças: os sinais de uma rotina pesada
Também é preciso ter em mente que a criança tem de ter espaço - e tempo - para ser criança. “Lamentavelmente, às vezes, encontramos crianças com rotinas exaustivas, pautadas em atender às necessidades dos adultos com quem convivem e isso pode gerar fadiga, desinteresse, insegurança - pelo excesso de cobrança - e movimentos regressivos. Ou seja, desejo de não crescer por temer o mundo adulto e suas implicações”, destaca a psicopedagoga. Quando a rotina está pesada demais, a criança dá sinais: pode ser que fique muito cansada, chorosa, agressiva ou até obcecada em cumprir todos os compromisso. Nessa hora, é papel dos adultos responsáveis parar e recalcular o volume e o ritmo das atividades.
O excesso de rotina, tanto no sentido de excesso de atividades quanto de rigidez extrema no cumprimento de horários e tarefas, pode prejudicar a criança. Para Cristina, é fundamental mostrar aos pequenos que regras podem ser flexíveis e que, apesar de ajudarem na nossa organização, elas não podem nos deixar engessados. É o famoso (e, às vezes, difícil de atingir) equilíbrio.
Pode ser que a programação rotineira mude em período curtos, como aos fins de semana - quando não há escola, mas costumam surgir convites para festas, churrascos e outros eventos sociais. Ou pode ser que a rotina precise ser quebrada em momentos mais longos - como as férias escolares. Se em Bibo na escola, conhecemos o que é um dia na escola comum, via de regra, em Bibo no sítio (Brinque-Book) o coelho vai passar uma temporada na casa dos avós e sua rotina fica completamente diferente: é tempo de se refrescar no lago, ajudar o avô a alimentar as galinhas e comer bolo de laranja da vovó, enquanto a chuva cai lá fora.
“Explicar à criança que cada casa tem uma rotina e uma regra também a faz se sentir especial e única”, diz a psicóloga Cristina. “E a faz pensar no respeito ao outro e no convívio harmonioso entre os diferentes”, destaca. Por isso, fica o mantra: tão importante quanto ter rotina é saber em que momento quebrá-la.
Capa de Bibo no sítio, de Silvana Rando