
Renato Moriconi: “Minha visão sobre ‘Bárbaro’ mudou depois que me tornei pai”
De leitor da Companhia das Letrinhas, o autor se transformou em um dos maiores expoentes do livro infantil ilustrado contemporâneo
Em 2021, o autor Renato Moriconi lançou o livro Uma planta muito faminta (Companhia das Letrinhas, 2021). O título nos leva para um lugar talvez já visitado. Abaixo da dedicatória, uma lagarta está desenhada. Hummmm... conheço isso, o leitor/leitora pode pensar. Abrimos a primeira dupla da história e lemos: “Uma linda plantinha se revelou naquele dia ensolarado” e, do outro lado, uma planta bem pequenininha e um sol. Hummmm... mas será que eu conheço isso também? Sim! E é terminar de folhear este nonsense enredo que as referências saltam à memória: é uma conversa com Uma lagarta muito comilona (Companhia das Letrinhas, 2025), de Eric Carle! O livro segue e, dupla a dupla, acompanhamos a planta comendo a lagarta (!), depois a borboleta (outra lagarta?), e então uma aranha, uma lagartixa, e um coelho e um urso... e até que, enfim, ah, confiram vocês mesmos e, na biografia do autor, a prova final: “Uma paródia da famosa lagarta criada pelo artista Eric Carle”. Ah tá!
Uma lagarta muito comilona , clássico de Eric Carle, inspirou Uma planta muito faminta, de Renato Moricone
Pois agora, 4 anos depois, é justamente Renato Moriconi o convidado pela Companhia a traduzir obras que Eric Carle assina. A primeira é Uma lagarta muito comilona, este clássico mundial lançado em 1969! Olhando à lupa, dá aquela sensação: um autor nasceu para o outro. Ou, se isso for um exagero, tal como quase tudo nos livros deles, é hora de curtir a nova tradução, em edição capa dura, papel cartonado e furinhos que cabem os pequenos dedos dos bebês. Temos tudo para nos divertir – e refletir, por que não? – e ir acompanhando a semana em que o bichinho acordou com fome, comeu tudo o que queria e, depois, se transformou em seu destino de lagarta, a borboleta, das nossas belezas preferidas da natureza. Mas, como bons livros, o sabor está em “como” ele conta esta história.
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Eric Carle faleceu em 2021, aos 91 anos de idade, deixando muita literatura para as crianças pequenas, o museu The Eric Carle Museum of Picture Book Art, em Massachusetts (EUA), e trilhões de fãs! Só a Lagarta foi traduzida para mais de 70 idiomas e já vendeu mais de 55 milhões de cópias. E pensar que tudo começou de algo tão simples, como diz a carta de Carle aos fãs (também traduzida por Moriconi na edição): “Certo dia, brincando com um perfurador de papel, fiz uns furos em uma pilha de papéis. Olhando para esses furos, imaginei que eles poderiam ter sido feitos por uma traça. Depois a traça virou uma minhoca verdinha. Daí, falei sobre essa ideia com minha querida editora Ann Beneduce, então a minhoca verdinha virou uma lagarta.” E hoje é das lagartas inventadas mais populares do mundo.
A nova edição de Uma lagarta muito comilona tem tradução de Renato Moriconi e encaixes para dedinhos diminutos
“Sim, o Eric Carle é pop!”, diz Renato Moriconi em conversa exclusiva sobre o processo de tradução (e de diversão com) do livro. Ele foi convidado ano passado pela editora Gabriela Tonelli a assumir essa função. “Ela comentou comigo que tinham comprado os direitos de publicar os livros do Eric Carle e os em parceria com o Bill Martin. Eu já tinha feito essa experiência na tradução com o autor Edward Lear (200 limeriques de Edward Lear para Ler e para Ver, editora Baião, 2024).” Seria o humor o “link” para unir um ao outro? Com certeza! E não é somente a Lagarta que irá chegar por aqui, mas também três edições da série com o escritor Bill Martin Jr. - Panda Bear, Panda Bear, What Do You See; Brown Bear, Brown Bear, What Do You See?; e Polar Bear, Polar Bear, What Do You See?. “São textos curtos, rimados, tem uma estrutura que se segue por ele de repetição e que são, aparentemente, muito simples. São todos de ursos, tipos de urso, e fazem brincadeiras muito parecidas. E são lindos”, comenta Moriconi sobre esses livros que começaram a ser lançados em 1967. E não tem a ver somente com os textos – um tradutor de livros ilustrados, em que texto, imagem e design se entrelaçam para compor a obra de um jeito único, não tem como isolar as palavras no trabalho. “Tem uma economia de imagem e ela é muito forte, impactante. Tem a ver com o trabalho gráfico de designer do Eric Carle”, comenta Renato, relembrando também a experiência de Carle na publicidade, antes de reinar no campo da literatura infantil.
Embora nascido no estado de Nova York, Carle ainda na infância foi viver na Alemanha, origem da sua família. Só que seu pai foi convocado pelo exército alemão para a Segunda Guerra e foi feito prisioneiro pelas forças da (ex) União Soviética. Ele voltou devastado e nada mais foi como antes. É comovente quando Eric Carle narra em The Art of Eric Carle (Philomel Books, 1996) que veio do pai o amor pelas artes visuais. “Meu pai, que tinha um certo jeito com os lápis e tintas, quis ser um artista, mas o pai dele, que trabalhava na alfândega de Stuttgart, na Alemanha, decretou o contrário. Um emprego no serviço público seria muito mais respeitável.” O amor pelos animais, inclusive pelos insetos, também é influência do pai. “Ele me levava para caminhar por bosques, e explicava, enquanto explorávamos o lugar, os ciclos da vida muitas vezes peculiares dessas pequenas criaturas, que descobrimos debaixo de uma pedra ou de folha morta. Depois, ele colocava cuidadosamente de volta esses pequenos animais em seus lugares originais e os cobria novamente.”
Passado e presente, no entanto, à época, transformaram Eric Carle neste querido autor. Há algo amoroso que se passa em seus livros, seja nas cores e colagens muito próprias, seja nos enredos criados tão particularmente apropriados aos pequenos e atrativos aos maiores. “Ele tem a doçura e a profundidade. E eu acho que você vê no livro que ele está se divertindo. E quando alguém está se divertindo fazendo algo, você se diverte também. Ele não está fingindo nada para a gente. Ele é aquilo”, observa Moriconi.
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A capa de 'Uma lagarta muito comilona'
Renato Moriconi foi desafiado, então, a estar perto de dois escritores, embora todas as obras sejam de Carle, com textos de pequenas frases e, muitas vezes, imagens únicas, com poucos detalhes ou contextos. “Quando você tem um livro muito econômico, você tem que ser mais preciso, especialmente livros com rima. Em um texto grande, você pode dar voltas para chegar na ideia. Me veio a imagem de uma frotagem. Sabe, quando a gente faz calcografia, que coloca a moeda embaixo e o papel em cima? Então se tem uma base que você trabalha, tem uma matriz lá, mas a cor, por exemplo, onde eu vou imprimir a minha força, ou fazer menos força, a forma como eu vou trazer aquela matriz sou eu quem decide. Então, isso é um jogo, é uma brincadeira”, diz Renato. “É como em um jogo de Tetris: se eu não encontro a palavra exata, me complica. Naturalmente, cada um vai encontrar a sua. Se fosse outro tradutor ia encontrar a exatidão dele. Quando você encontra o que casa, que tudo faz uma constelação, pronto, essa palavra. O tradutor vai pegar a sua língua, e vai ver a forma como a língua canta, como a língua pode ser cantada”.
Mas como é traduzir algo em texto que também “combine” com a imagem? “Não posso fugir também do que a imagem está mostrando, com certeza. A imagem está quase que reproduzindo, mas é difícil falar isso, porque é uma imagem muito simples, que tem a economia. Ele coloca o que está sendo dito, mas o que está sendo dito também faz esse caminho contrário: olha para a imagem e ‘comenta’. O texto é um comentário sobre a imagem, e a imagem também faz um comentário sobre o texto!”. Bill Martin Jr, especificamente, nomeia o animal e a espécie nos livros da série com os ursos. Renato conta que tem “urso marrom”, “urso panda”, “búfalo d’água”, “águia careca”. “Optei nesse caso por ficar com tudo, porque isso é interessante, e a imagem do Carle está colocando isso também. Por uma questão de ritmo também, o ritmo de cada língua e o ritmo que se tem na frase seguinte, por exemplo”, completa.
Moriconi nos faz pensar que são escolhas a partir de uma leitura. Mas não como uma leitura quando o ilustrador pega um texto de outro escritor. “Acho que o que difere é que quando eu faço imagem, eu estou colocando também o que eu quero dizer para aquele texto. Quando eu faço a tradução, eu tento me esconder. Eu sei que eu estou dizendo também. Vou fazer escolhas. Identifiquei na Lagarta que Carle coloca algumas rimas que não estão no final, mas que estão no meio! Uma brincadeira com as palavras e que eu fiz com outras, mas mantive um jogo”. Mas, como um estudioso de livro ilustrado, Moriconi notou algo visual que também poderia acompanhar essa narrativa em texto e imagem. “Falei com a Gabriela que o Lagarta tem até uma estrutura de sanduíche! Há um jogo de rimas que é interrompido quando a lagarta começa a comer. Vira um jogo de repetição, ‘mas ainda estava com fome’. No final, as rimas voltam. Essa pausa na rima é a pausa para o lanche. Posso dizer que as rimas são as fatias que envolvem o recheio, que são as repetições”. E ainda tem o próprio objeto livro, em que tudo está dentro!
Todo o jogo, então, parece passar por uma certa alternância – ou simultaneidade? – do simples e do complexo; do aparentemente na superfície e refletidamente na profundidade. Tanto os livros de Eric Carle, quanto o processo de diálogo-tradução de Renato Moriconi, a novidade da vez. Dá vontade de cutucar a pergunta: para que criamos, para que publicamos, para que apresentamos/mediamos livros para crianças? Questionado certa vez sobre por que Uma Lagarta Muito Comilona ter feito e ainda fazer tanto sucesso, Carle respondeu: “Acho que é porque é um livro sobre esperança. As crianças precisam de esperança. Você é uma pequena e insignificante lagarta e pode virar uma linda borboleta e voar pelo mundo com seu talento”.
Quem resiste, né?
(texto: Cristiane Rogerio)
De leitor da Companhia das Letrinhas, o autor se transformou em um dos maiores expoentes do livro infantil ilustrado contemporâneo
Apesar do que o seu nome mais popular sugere, nem todo “livro infantil” é só para crianças. Os livros crossover, termo criado em 2007, ultrapassam as fronteiras da idade e encantam crianças de 0 a 100 anos
A obra se conecta ao premiado Bárbaro, com protagonista que mistura Matilda e Pequena Miss Sunshine