Com mais de 90 livros publicados entre autorias solo e parcerias - alguns já considerados clássicos contemporâneos – o paulista Renato Moriconi, 44, construiu uma carreira como ilustrador, escritor, artista plástico e pintor. Seu trabalho com a imagem e a palavra, articulados, compõe uma das produções atuais mais promissoras, e dialoga com variados rótulos editoriais e gêneros literários, que, juntos, celebram a bem-vinda diversidade atual da produção literária para as infâncias, como o livro ilustrado, o livro imagem, os livros para bebês e a literatura crossover.
Neste mês de março, Moriconi chega com uma novidade, Estátua! (Companhia das Letrinhas, 2024), que pode ser lido como uma espécie de desdobramento ao contrário de sua história mais conhecida, Bárbaro (Companhia das Letrinhas, 2013). No livro, um guerreiro corajoso vive muitas aventuras até ser interrompido por um invasor inesperado. Em 2014, Moriconi venceu o Prêmio Jabuti de Melhor Ilustração Infantil e Juvenil, com a obra. Em 2016, foi contemplado no Prêmio Fundación Cuatrogatos, e indicado ao Melhor livro de Arte da revista italiana Andersen, ambos também por Bárbaro. O livro foi ainda selecionado para a lista do The Boston Globe de Melhores livros infantis editados nos Estados Unidos, e contemplado na lista dos “livros infantis mais surpreendentemente não convencionais”, organizada pela revista literária norte-americana School Library Journal.
Capa de Estátua!, o lançamento mais recente de Renato Moriconi
Assim como em Bárbaro, a personagem de Estátua! também só quer brincar, mas o elemento surpresa está guardado não só em quem interrompe a cena, mas onde o leitor menos espera. (Daqui para frente, leitores, precisamos avisar: teremos spoiler!).
Renato Moriconi: um autorretrato
“Apesar de um ser quase uma imagem invertida do outro, os dois livros terminam mostrando adultos que regulam e limitam.” (Renato Moriconi, artista)
Dessa vez, quem centraliza a narrativa é uma protagonista menina, descrita pelo autor como “um misto de Matilda com Pequena Miss Sunshine”. Cativante, meio destrambelhada, mágica e comum, carismática e um tanto desajustada. “É uma bruxinha tocando o terror, mas que a gente acha fofa”, conta o ilustrador, em entrevista ao Blog Letrinhas - você confere mais adiante o papo completo com o artista.
Em suas breves e recheadas 48 páginas, Estátua! constrói uma narrativa que deixa quem lê em um estado de surpresa, como se suspendêssemos a respiração enquanto contamos até dez. Então, de repente, ouvimos a palavra mágica: “Estátua!”. O que acontece depois? Vai depender do leitor para interpretar.
A história consagra uma característica artística já apropriada em grande parte de sua obra, que o autor chama de "jogo de velar e revelar". A brincadeira, segundo ele, vem para provocar “um espanto risonho” em quem estiver lendo. Quem experimentou as histórias de Moriconi com uma criança e ouviu suas gargalhadas cheias de expectativa, sabe que o efeito é certeiro.
Ilustração de Estátua! mostra a contagem para a brincadeira começar. Enquanto isso, a protagonista apenas espera...
Literatura como espetáculo de palavras e imagens
Quando revisita o que fez em Estátua!, o artista mobiliza vocabulários de diferentes linguagens. A encenação artística é uma delas. “Eu imagino o leitor como um espectador que chega no teatro, senta no seu lugar e vê toda a cena acontecendo ali”, conta Renato.
Nessa mise-en-scène inventada, o cenário não conta com os requintes espalhafatosos das óperas, pelo contrário; geralmente, um fundo branco acomoda os personagens na cena, e os sentidos se completam na interferência indispensável do leitor. “A simplicidade do teatro é fundamental na narrativa”, afirma Renato.
Segundo ele, essa intenção cênica está em muitas de suas produções. É o caso de Bárbaro, Uma planta muito faminta (Companhia das Letrinhas, 2021) e também de Estátua!. “É como se o leitor estivesse olhando a escola do lado de fora e, quando abrimos o livro, entrasse nesse lugar. Os personagens somem do campo de visão, como se estivessem saindo de um palco, mas o teatro todo acontece ali”, explica.
Já em Telefone sem fio (Companhia das Letrinhas, 2010), outra história de sua autoria, ao lado do escritor Ilan Brenman , a referência para a arquitetura narrativa está nos museus. O espectador está olhando um quadro, e as cenas acontecem em duplas de página que posicionam tanto as personagens quanto quem lê sempre na mesma perspectiva. É como se o espectador estivesse de frente para a tela, contemplando uma galeria de museu.
A economia de elementos cênicos, que perpassa a produção do autor, reforça que toda forma de comunicação pressupõe um outro. Não à toa, essas são histórias que começam antes mesmo da primeira cena, como acontece no teatro, em que cada detalhe conta, mesmo antes de abrir a cortina. “Em Estátua!, assim como em Bárbaro, o livro já começa na capa, como se fosse a abertura do espetáculo”, diz o escritor.
Literatura de jogos narrativos
No ateliê de Renato Moriconi, em São Paulo, há um objeto incomum para o local de trabalho de um artista plástico: uma bola de basquete da marca Wilson, igualzinha (ou quase!) à do filme Náufrago.
Quando ele tinha 10 anos, a resposta para a famigerada pergunta “quem você quer ser quando crescer?” guardava naquela bola um futuro imaginário, hoje revelado entre tintas, rascunhos e pincéis. Depois de fazer uma cesta do lado adversário e aturar a troça de um ginásio cheio, Moriconi resolveu deixar de lado a aspiração às quadras, e agora faz nos livros jogos tão ou mais inesperados que aquela partida entre o Clube Corinthians e o Sesc Consolação, em 1989.
Hoje, como ilustrador e escritor, os elementos que ele coloca para jogar dentro do livro – palavras, imagens, projeto gráfico, materialidade – têm talento e carisma de craque, sem perder a diversão de brincar. Não jogam contra ninguém, mas com muitos, e contam com a participação fundamental de um jogador reserva, convocado a cada virada de página a dar tudo de si pela partida: o leitor – de todas as idades.
“Literatura infantil não é um gênero que exclui o adulto, mas que inclui a criança.” (Renato Moriconi, artista)
Em entrevista ao Blog Letrinhas, o autor conta de suas influências em Estátua!, revisita suas criações, fala da infância vivida em grande parte dentro de um apartamento, e declara ter sido uma criança “melancolicamente feliz”, enquanto hoje se considera um “adulto de menos”. “Até deixei a barba crescer, mas ainda continuo sendo meio molecão”, brinca ele.
Confira a entrevista com Renato Moriconi
Blog Letrinhas: Estátua, assim como Bárbaro (2013), tem um forte elemento surpresa que permite à história se ampliar. O que esse ponto de virada representa nas suas obras? Você revisitou uma para criar a outra?
Renato Moriconi: Gosto muito dessas surpresas, desse jogo de velar e revelar. Isso aparece muito nos meus livros. Há neles a ruptura de uma lógica interna, que eu mesmo criei, e me contradigo, gerando um espanto risonho no leitor. Estátua! e Bárbaro jogam esse jogo em comum, além de outras similaridades. Isso aconteceu sem querer.Quando percebi algumas semelhanças, resolvi frisá-las – como o nome da personagem principal, a Bárbara. Só descobri seu nome depois que me dei conta que um livro poderia dialogar com o outro.
Estátua! acabou virando, por uma lógica interna da sua narrativa, uma antítese do Bárbaro, a começar pelo gênero do personagem principal, ou do gênero do adulto que o busca, além do formato da publicação – uma vertical, outra horizontal. E até mesmo pela conclusão, sendo que um é a revelação da realidade e o outro da fantasia.
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Blog Letrinhas: Bárbara é sua primeira personagem menina, certo? Ela traz o protagonismo infantil para o centro. Se em Bárbaro o adulto assume a situação e interrompe a brincadeira, aqui a criança é quem decide o que quer fazer. Pode falar um pouco sobre essa dinâmica invertida?
O primeiro livro que escrevi, que se chama O sonho que brotou (DCL, 2010), tem uma garotinha como protagonista, inspirada em minha sobrinha. Ela também foi a inspiração para criar a Chapeuzinho Vermelho do livro Telefone sem fio.
A Bárbara é, a meu ver, um misto de Matilda com Pequena Miss Sunshine. É uma bruxinha tocando o terror, mas que a gente acha fofa. Tem uma criança assim na escola do meu filho, deve ter uns 4 anos. Ela corre da mãe, puxa o cabelo dos coleguinhas, empurra senhorinhas de bengala, mas, por causa da carinha fofa dela, não consigo condená-la pelos danos que causa. Acho até fofo, admito.
A Bárbara é mais ou menos assim. Ela tem uma cara fofa, não acha? Tem um ar de corujinha, com aqueles óculos (coruja é um ser místico em algumas culturas, além de ser uma ótima caçadora). Prejudicou todos seus coleguinhas e professores, mas eu achei um barato.
“Bárbara é uma criança que está aprendendo a controlar seus poderes. Assim como o menino de Bárbaro.” (Renato Moriconi, artista)
A figura do adulto também exerce um papel regulador em Estátua!, pois é a mãe quem chama. A mãe (será que ela é coruja também?) já voa. Bárbara ainda não. Apesar de Estátua! ser quase que em sua totalidade uma imagem invertida de Bárbaro, os dois livros terminam mostrando adultos que regulam e limitam.
Blog Letrinhas: O livro tem ainda mais um elemento que altera o sentido da leitura. Não só o mecanismo mágico que a Bárbara dispara quando grita “estátua!”, mas também a própria identidade - digamos assim - da personagem, que fica implícita. O que te motivou a construir essa menina-bruxa?
A escolha de uma protagonista feminina não foi minha, mas da própria história. As histórias se impõem e lutam contra nossos desejos e escolhas. A ideia inicial era que a Bárbara fosse uma Medusinha, filha de Medusa, e que transformaria todo mundo da sua escola em pedra. Mas, ao começar a desenhar, vi que a imagem da medusa era muito reveladora de sua real identidade.
Além disso, a imagem de uma bruxa clássica no fim, com chapéu cônico preto, montada numa vassoura, é bem mais mágica e explícita. Por conta disso, optei pela bruxa. Mas a Medusa foi a grande referência para esse livro.
A menina-bruxa tocando o terror na escola, em Estátua!
Blog Letrinhas: A presença dos números, da expectativa, da repetição e de elementos verbovisuais de Estátua! costumam encantar leitores desde a primeira infância. Como você vê a literatura para bebês produzida hoje?
Nunca pensei em num livro pra bebê. Não sei te dizer o que é um livro pra bebê. Pode ter a ver com o formato, tipo de papel, características visuais, mas eu não refleti muito sobre isso, nem acompanho a produção. Me parece que é algo novo que estamos começando a entender.
Recentemente, ganhei um prêmio por um livro chamado Dia de lua (Jujuba, 2023). A Daniela Padilha, minha editora neste livro, é uma pessoa que conhece muito sobre esse assunto e tem me ensinado um pouco sobre esse tipo de publicação. Mostrei a ideia pra ela sem saber que entraria em seu catálogo de livros para bebês. Acho que é um dos papéis da boa editora: perceber onde uma obra se encaixa.
O que posso dizer, do lado de quem cria, é que tenho medo de reprodução de fórmulas e de criação de manuais baseados em sucessos e fracassos. Quando coloco um elemento num livro, não o faço pensando num leitor específico, mas na lógica narrativa do livro.
“Livros, Arte e Literatura não devem respeitar outra coisa que não a sua própria lógica interna, seus conceitos, seja em livros para adultos ou para bebês.” (Renato Moriconi, artista)
Blog Letrinhas: A literatura que você produz também é marcada por uma capacidade de alcançar leitores de variadas idades. Você que já lançou histórias infantis também para adultos lerem, considera esse aspecto algo consciente no seu trabalho?
Tenho pra mim que literatura infantil não é um gênero que exclui o adulto, mas que inclui a criança. A mulher que matou os peixes, da Clarice Lispector, é um exemplo disso, um texto maravilhoso, cheio de humor, rico para crianças e adultos. Digo o mesmo de Roald Dahl, Shell Silverstein, Jutta Bauer, autores e autoras que me inspiram. Tento fazer livros assim: bons pra todo mundo.
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Blog Letrinhas: Estátua evoca uma infância um tanto nostálgica, com crianças brincando despreocupadas e a ideia do brincar livre que o livro suscita. Que memórias de infância você ativou aqui?
Eu cresci na região central da cidade de São Paulo. A rua era lugar de passagem. Eu brincava basicamente em três lugares: escola, Sesc ou dentro de casa. E desses três, o que mais gostava era o terceiro, minha casa. Fui uma criança de apartamento, melancolicamente feliz (seja lá o que isso signifique).Morava num apartamento pequeno, simples, com minha mãe e meu irmão. E ali eu criei muitos desenhos e brinquei com meus carrinhos e bonecos. Acho que Estátua! – e Bárbaro também – traz um pouco dessa ideia de brincar em espaços limitados. Ele é um retângulo onde a brincadeira acontece.
O livro traz uma arquitetura limitada, em uma escola. A capa é a parede externa dessa escola. Vemos a janelinha aberta, aquele quadradinho branco, que revela a parte interna da escola – e do livro – e revela também a menina Bárbara. Quando movemos a capa, entramos na escola. E a menina, parada feito estátua, começa a contar. Essa brincadeira dentro dos limites de uma arquitetura tem muito a ver comigo, com o tipo de infância que eu tive.
Blog Letrinhas: Você tem um refúgio quando se percebe adulto demais?
Eu acho que eu sou adulto de menos. Até deixei a barba crescer, mas ainda continuo sendo meio molecão.
Blog Letrinhas: Assim como a Bárbara, você tem alguma palavra que dispara a magia na vida cotidiana? Acho que estou perguntando também qual sua brincadeira favorita.
A mágica na minha vida acontece quando eu durmo. Adoro sonhar. Tenho tido uns sonhos muito malucos ultimamente.
Meu filho está com 8 anos e temos jogado muito Banco Imobiliário. Esse tem sido meu jogo, minha brincadeira favorita. Confesso que me apaixonei pela ideia de ter várias empresas e arrancar todo o dinheiro do meu filho.
(Texto: Renata Penzani)
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