O racismo e a arapuca social

26/06/2020

PARTE 1

“Mamãe, você já viu a sereia que vem na espuma do mar? Eu vi.”

(Benício, 5 anos, filho de Luana Antunes e Fernando Bralo)

 

Refletir com o grande público sobre o racismo, seus impactos nas infâncias e  explicar às crianças tudo o que está acontecendo na atualidade não é tarefa fácil, para poucas palavras. Tentarei fazer isso com a ajuda de meu amiguinho Benício, de cinco anos, filho de minha amiga Luana. Benício é uma criança cujo pensar ainda não foi corrompido pela “arapuca social” que acredito estar montada para os corpos infantis desde que chegam a esse mundo.

(Ilustração Victor Henrique Fidelis)

Fundamental destacar que tratarei desses assuntos dentro dos parâmetros legais disponibilizados pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pelo Estatuto da Igualdade Racial, pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/1996) que rege a educação brasileira, pelas leis 10.639/03 e 11.645/08 que alteraram a LDB em seus artigos 26, 26A e 79B, pela Lei Caó,    pela Organização das Nações Unidas (ONU) – Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024).

O grande etnólogo reconhecido mundialmente, meu irmão-amigo Carlos Moore, que marchou com Martin Luther King, afirmou no prefácio que fez em um dos meus livros – O mar que banha a Ilha de Goré (Editora Peirópolis, 2015) – que “Nada é mais importante para uma criança que um conto que a insira no mundo dos humanos, dos animais e das coisas. Essa inserção faz-se por meio do apelo à sua imaginação”. Por meio da imaginação e de um brincar livre, a criança é capaz de ampliar o seu repertório de vida, tendo a possibilidade de, filosoficamente, refletir sobre suas experiências bem como das pessoas que a cercam. Nesse sentido, lanço a minha primeira grande pergunta: Como você enxerga o ser criança?

Entendo que a criança seja vista quase da mesma forma com a qual era enxergada no Iluminismo, pelos filósofos do século XVI ao XIX: como um ser incompleto, desorganizado, mau por natureza, uma folha em branco pronta para ser preenchida e, imediatamente, educada. Educada, mas dentro de quais princípios e valores? Estes impostos pelo homem branco, invasor desse país desde 1500 e que vigoram por aqui até a atualidade? Como posso afirmar isso, em pleno século XXI?

 

“Arapuca social”: olhar adulto sobre os corpos das crianças

Do prisma em que eu olho enquanto pesquisadora, antes do nascimento, a “arapuca social” já está montada para o bebê. O que é uma arapuca? Os dicionários definem como um substantivo feminino que indica uma armadilha para caçar pequenos pássaros e, por extensão, uma armação para surpreender, emboscar; cilada, armadilha. Aprendi a fazer arapuca quando criança. Minha tia me ensinou. Eu montava arapucas com uma bacia de alumínio grande, colocada na diagonal bem no meio do meu quintal, apoiada em um pedaço de galho de árvore, com um barbante amarrado em uma das pontas. Jogava migalhas de pão nas proximidades até que um pássaro entrasse na armadilha para que, então, eu puxasse com força a extremidade do barbante que estava na minha mão. Pronto. O pássaro estava preso e eu, finalmente, podia tê-lo só para mim, o que achava belo. Mas eu ainda não sabia que a beleza que eu via no pássaro era justamente o fato de ele ter asas e mantê-las projetadas para o espaço infinito de possibilidades.

Com o bebê dentro da útera não é diferente: desconsidera-se que, sozinho, ele aprende a respirar na água, a nadar, a sorrir, a chorar, a cantar, a ouvir, a se consolar colocando o dedinho na boca, a reconhecer a voz da família, a se alimentar, a se movimentar e a reagir aos estímulos externos. Ao sair da Igbà-Iwà – A Cabaça da Existência -, da útera que é feminina e protetora, o bebê já é recebido nas sociedades ocidentais e/ou colonizadas pelo homem branco por um tapa, que já o introduz num pensamento-atitude violento, como forma cultural de conceber a criança, a fim de desobstruir seus canais respiratórios. Importante lembrar que isso é cultural e nem todas as culturas recebem o bebê de forma violenta. Após nove meses em ambiente privado e quente, ele sai e aprende uma nova sensação: a dor. Será que as marcas desse momento de violência se esvaem com o tempo?

 

Manutenção dos seculares papéis sociais

A arapuca social se amplia quando o bebê, já em casa, se depara com um ambiente todo preparado para ele a partir de seu sexo, conhecido previamente: para a menina, decoração na cor rosa e para o menino, azul e lá se manifestam as expectativas da família em torno daquele bebê – “ele será médico, como eu, quando crescer” ou “assim que fizer uns cinco anos, estará na rua comigo para ganhar uns trocados”. Sempre os papéis sociais sendo reproduzidos e mantidos secularmente, partindo do olhar adulto sobre os corpos das crianças.

O conceito de verdade para a criança começa a ser construído pelo adulto  ao interferir em seu brincar desde seus primeiros movimentos até o momento em que a criança completa 4/5 anos e afirma, em sua brincadeira de faz-de-conta, que quer ser gari, reflexo do amor que ela sente por quem desempenha tarefa tão nobre, nos ajudando a descartar os resíduos – “não podia ter escolhido outra profissão como advogado ou médico”?, poderia a mãe dizer. Contudo, a mãe desse menino fez um uniforme semelhante ao dos garis tão admirados pelo seu filho e eles fizeram sacos de lixos de brincadeira para que o pequeno pudesse desenvolver, concretamente, o ofício que tanto o encantava.

Benício, aos cinco anos, está também na fase de usar sua sensibilidade e foi capaz de manifestá-la à mãe, justamente por ainda não se sentir capturado pela arapuca social, provavelmente sentindo-se parte de um mundo onde suas questões são tratadas com respeito: seus sonhos mantém-se despertos e não são desconsiderados em sua infância, ou seu corpo infantil considerado uma folha em branco precisando ser escrita por um adulto, como na linha evolucionista de pensar.

Chega o momento da minha segunda pergunta, inspirada em Benício: Que tipo de educação o adulto tem para oferecer à criança do século XXI?

+ Leia a segunda parte do texto: Infâncias e barbárie

***

Kiusam de OIliveira é escritora e doutora em Educação (USP)

 

Leia mais:

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+ 8 livros para falar de racismo

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