Queimadas no Pantanal, desmatamento na Amazônia, temperaturas recordes, aquecimento global, tempestades e inundações, ciclones-bomba, vírus de animais selvagens que contaminam humanos... Essas catástrofes e mudanças já têm tomado os noticiários, no ritmo das alterações climáticas. Mas será que também vão chegar aos livros infantis? Como a forma com que tratamos o meio ambiente se reflete na literatura infantil? Considerando o cenário alarmante que vive o Brasil e o mundo, e que a questão ambiental é basal na atualidade, é de se esperar muitos lançamentos nesse sentido para os próximos anos. O tema, claro, já vem sendo abordado na literatura infantil e juvenil há tempos, mas houve um avanço significativo na quantidade de títulos e na abordagem na última década.
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De acordo com Nurit Bensusan, que é bióloga, escritora de títulos infantojuvenis e que reflete "sobre paisagens e culturas, formas de estar no mundo e as inspirações da natureza", o tratamento do tema passou por uma ampliação. “Sempre houve livros sobre espécies, por exemplo. Atualmente, mesmo quando o foco é uma espécie, há informações sobre o local onde essa espécie está inserida, num bioma, num ecossistema, numa comunidade. Isso chegou mais tardiamente à literatura infantil, mas já havia na Convenção de Biodiversidade - a Rio 92 - uma tentativa de mudar o foco para o ambiente maior das paisagens, dos ecossistemas."
Ela explica que se vê, mais recentemente, um foco nos processos ecológicos, que mantêm os biomas, os ecossistemas, as paisagens. “Isso se dá também por causa da crise climática, que obriga a pensar nos processos que mantêm a natureza. E agora, claro, com a pandemia mais ainda.”
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Capas de Menino do rio doce (1996), de Ziraldo, e Queria ser alta como um tuiuiú (2009) e Cipó branco (2006), de Florence Breton
Meio ambiente no mercado editorial
De fato, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992, representou um ponto de virada em relação ao entedimento da população sobre as questões ambientais e a educação ambiental, que, consequentemente, também afetou o mercado editorial. Para se ter uma ideia, a pesquisa "O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável", realizada pela primeira vez em 1992, mostrava que, nesse ano, 46% dos brasileiros não conseguiam identificar qualquer problema ambiental em sua cidade ou seu bairro. A edição de 2012 indicou que esse número havia caído para 10% da população.
Um dos primeiros títulos de literatura infantil publicados pela Companhia das Letrinhas que aborda o meio ambiente, ABC do zoo, de Pedro Maia, foi lançado em 1993. Da década de 1990 são também Histórias de índio (1996), de Daniel Munduruku com ilustrações de Laurabeatriz, e Menino do rio Doce (1996), de Ziraldo, ilustrado com os bordados da família Dumont. Nos anos 2000 foram publicados, por exemplo, Meninos do mangue (2001) e Carvoeirinhos (2009), de Roger Mello, assim como O cipó branco (2006) e Queria ser alta como um tuiuiú (2009), de Florence Breton. Ainda em 2000 teve início a coleção Brasileirinhos, de Lalau e Laurabeatriz, que passou para o catálogo da Letrinhas na última década, depois do fim da Cosac Naify.
Capas de Brasil 100 palavras (2014) e A história da Terra sem palavras (2018), de Gilles Eduar
“Na Companhia das Letrinhas, a gente tem se preocupado cada vez mais em lançar livros sobre meio ambiente. Acho que é um tema que vai ser assunto daqui pra frente e tem que ser. Não vai dar pra fugir mais disso. Por isso, a editora tem se comprometido e buscado fazer cada vez mais livros sobre o assunto dentro do núcleo”, afirma Mell Brittes, editora executiva do selo. No catálogo da Letrinhas, dos livros de autores brasileiros que tratam do tema, mais de 60% foram publicados na última década.
A partir de 2011, alguns dos lançamentos de autores brasileiros, entre ficção e não-ficção, foram: Água sim, de Eucanaã Ferraz, O peixe e a passarinha (2012), de Blandina Franco, Qual é o seu norte? (2012), de Silvana Salerno, Histórias do Xingu (2013), de Orlando e Cláudio Villas Bôas, Brasil 100 palavras (2014) e A história da Terra 100 palavras (2018), de Gilles Eduard, Menina Japinim (2015), de Ana Miranda, Nas águas do rio Negro (2017), de Drauzio Varella, Pequeno manual de peixes marinhos e outras maravilhas aquáticas (2018), de Beatriz Chachamovitz, Nós (2019), organizado por Mauricio Negro, e Brasileirinhos da Amazônia (2020), de Lalau e Laurabeatriz. Ainda da dupla, que se consagrou com poemas e ilustrações sobre a fauna e a flora nacionais, em 2017 também saíram Brasileirinhos e Bebês brasileirinhos.
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Detalhes das capas da série Brasileirinhos, de Lalau e Laurabeatriz
Os efeitos da Política Nacional de Educação Ambiental
A educadora ambiental Priscilla Cleto Ribeiro, que utiliza livros de literatura infantil em suas aulas e tem mais de dez anos de experiência na área, também percebe uma crescente na produção literária voltada ao público infantil envolvendo o meio ambiente, “seja tratando a questão de maneira direta em termos de conteúdo científico, ou indireta, em um cenário de história ficcional que acaba despertando responsabilidade ambiental”.
Priscilla atenta para o fato de que esse crescimento editorial também está ligado à entrada em vigor da PNEA (Política Nacional de Educação Ambiental), em 1999, que estabeleceu o direito à educação ambiental em todos os níveis de educação, da educação infantil ao ensino superior. Com isso, a questão ambiental se tornou também um interesse mercadológico de editoras. Vale ressaltar ainda que a educação ambiental consta na BNCC (Base Nacional Comum Curricular). De qualquer maneira, Priscilla relata que consegue encontrar atualmente “boas produções, de qualidade artística e com embasamento científico”.
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Para Nurit Bensusan, também houve um avanço muito grande em termos de temas e quantidades. “Eu tenho um filho de 17 anos e, quando ele era criança, eu tinha muita dificuldade de achar um livro com conteúdo ambiental, de ecologia e menos ainda socioambiental, que explica e mostra a relação entre a natureza, as pessoas e as comunidades.”
Acho que a questão socioambiental na literatura infantil precisa ter muitas outras abordagens, ser tratada num conjunto mais amplo, não só cultural, mas social, político e econômico. Isso é preciso para não esvaziar politicamente a questão e para as crianças não acharem que essa questão é meramente técnica e não tem nada a ver com as escolhas que a gente faz no cotidiano. (Nurit Bensusan, bióloga)
Nurit diz que, até hoje, o conteúdo socioambiental é pouco explorado porque as próprias pessoas que trabalham com isso relutaram muito em admitir que as populações de povos indígenas e comunidades locais têm um papel fundamental na manutenção da biodiversidade – o que, segundo ela, se deu possivelmente por racismo e discriminação. Para ela, já houve avanços significativos, mas ainda há muito o que ser feito.
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Literatura infantil indígena e o meio ambiente
Diante dessa necessidade de abordar a temática do meio ambiente, o autor Mauricio Negro conversou com o blog sobre o ponto de vista dos povos originários brasileiros na literatura infantil. De maneira indireta, a literatura criada por escritoras e escritores indígenas apresenta o homem como parte indissociável da natureza. Leia mais aqui.
(Texto por Juliana Simonetti, atualizado em 25/5/2021)
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