Eduarda Lima, de 'O protesto': “O silêncio é uma forma de resistência”

24/02/2021

Vivemos em um mundo barulhento. Que faz cada vez mais barulho. Que grita para fazer valer suas vontades. E parece não se importar com sua casa – o meio ambiente –, apesar dos alertas sobre o risco criado pela intervenção humana. Mas ninguém escuta. Por isso, quando um passarinho faz silêncio, ninguém presta atenção. No entanto, quando todos os animais decidem não emitir mais nenhum som, dar leite nem botar ovos e as crianças se recusam a brincar, algo muito errado está acontecendo. E é preciso parar para escutar o silêncio, o grito que ficou entalado.

E é esse o protesto que a portuguesa Eduarda Lima faz na sua obra de estreia na literatura. Para chamar atenção à sustentabilidade, ela silencia todo mundo em suas páginas, mas, na verdade, tem muito a falar - cada página nos conta sobre um comportamento nocivo. O blog conversou por e-mail com ela para saber um pouco mais sobre O protesto, livro que acaba de ser publicado no Brasil pelo selo Pequena Zahar.

Ilustração do livro 'O protesto', de Eduarda Lima

Eduarda nasceu em Lisboa e se graduou em arquitetura em Londres (na University College London, UCL), mas decidiu mudar de ramo alguns anos depois e fez um curso de motion-design no London College of Communication. Na Inglaterra, trabalhou em estúdios de animação 2D até que, em 2015, voltou para Portugal, onde trabalha também como ilustradora. O livro O protesto, sua primeira obra literária, começou a ser criada no curso da escola de arte independente Ar.Co, em Lisboa. Mas, na verdade, a origem está na sua própria casa, nas conversas com a filha de 6 anos. E que agora são reflexões gritantes para todas as crianças (e os adultos).

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Blog da Letrinhas: Este é seu primeiro livro e já é um sucesso, publicado no Brasil, na Itália e também em francês, além de estar sendo traduzido para espanhol, catalão, polonês e coreano. A que você credita esse sucesso?

Eduarda Lima: Penso que o tema do livro é muito relevante neste momento, e acho que há uma procura por parte dos pais e educadores de maneiras de abordar estes assuntos com as crianças menores. Existem vários livros infantis sobre a degradação ambiental e também sobre soluções para esses problemas, mas mais do que dar respostas ou apontar o dedo, queria que este fosse um livro para questionar, instigar conversas, provocar o pensamento crítico, e talvez por isso seja um livro mais invulgar. Para além disso, há também o importante papel da editora Orfeu Negro (editora portuguesa), tanto no nível da edição original como da divulgação internacional.

 

Você conhece o Brasil ou tem alguma relação com o país?

EL: Fiz uma viagem pelo Brasil há uns 14 anos, com uma amiga arquiteta. Fomos ao Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Salvador e à Ilha de Boipeba (BA). Claro que aproveitamos para fazer todo o roteiro de arquitetura modernista brasileira, mas lembro-me que o que mais me impressionou nessa viagem foi o vigor e a exuberância da natureza nas cidades. Lembro-me dos pavimentos das ruas ondulados e acidentados pela força das raízes a empurrar por baixo, prestes a rebentar. Lembro-me de uma paisagem arquitetônica muito familiar (colonial!), mas rodeada de espécies de árvores exóticas, que não se encontram em cidades europeias. Esta intensidade e energia de uma natureza tropical ‘urbana’ foi uma experiência nova para mim na época. Fiquei com vontade de voltar e conhecer mais do Brasil e dessa energia ‘contida’ (ou, pelo contrário, liberta!).

 

"Numa altura em que o 'barulho' é ensurdecedor - nas cidades, na comunicação social, nas redes sociais - por contraste, às vezes parece ser a única forma de se ser 'ouvido'!"

 

Como vê os ataques e o desrespeito ao meio ambiente no Brasil, em Portugal e no mundo? 

EL: Vejo-os como um crime, verdadeiramente. Uma falta de visão a médio prazo (já nem digo longo prazo, porque os efeitos estão aqui agora), em troca do lucro imediato para uma minoria de interesses privados. Não há outra classificação, porque as evidências científicas, sociais e econômicas estão mais que estabelecidas. As coisas não mudam mais rapidamente porque ainda há quem lucre com a exploração bárbara dos recursos da Terra até ao último instante.

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Você poderia nos falar sobre o surgimento da ideia e por que um livro como este (ou qualquer outro livro ilustrado) nunca é apenas para crianças?

EL: Penso que os álbuns ilustrados nunca são apenas para crianças. Eu tenho uma filha de 6 anos, e sempre que lhe compro livros, compro-os também para mim. Os livros infantis são obras literárias/gráficas/(poéticas!) bastante completas. Por um lado, com imensas camadas, que se vão desvendando com as várias leituras ou com o desenvolvimento da criança, e, por outro, de uma síntese e simplicidade únicas, para além de serem objetos artísticos lindos... Estou sempre à procura de livros que me interessem enquanto ilustradora, mas também enquanto mãe, para poder falar de certos assuntos com a minha filha, à medida que ela cresce. Esta história em particular surgiu precisamente porque queria falar sobre um problema que afeta a todos e sobretudo às crianças de agora, que serão os adultos de amanhã. Elas já estão muito conscientes da crise ambiental, por falarem sobre isso na escola ou em casa, e achei importante trazer o “ativismo” à conversa. Vai ser certamente um dos recursos mais imprescindíveis neste futuro que se avizinha.

A autora portuguesa Eduarda Lima estreou na literatura infantil, mas tem longo percurso profissional com animação 2D e ilustração

 

Vivemos em um mundo muito barulhento, em que as pessoas falam cada vez mais alto para serem ouvidas, inclusive no ambiente virtual. Nesse sentido, qual é o impacto e a força do silêncio? Por que um protesto de silêncio pode ser mais eficaz do que um em que gritamos?

EL: Não sei se um protesto de silêncio é mais eficaz ou não, mas numa altura em que o “barulho” é ensurdecedor - nas cidades, na comunicação social, nas redes sociais - por contraste, às vezes parece ser a única forma de se ser “ouvido”! O protesto silencioso é uma forma de resistência não violenta, e ao longo da história o seu impacto foi profundo – a Parada do Silêncio em Nova York, em 1917, marcou o início do movimento de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, mais recentemente marchas em várias cidades em nome do movimento Black Lives Matter também se fizeram em silêncio, com milhares de participantes.

Por outro lado, quando todo o ambiente em nosso redor cai em silêncio quase absoluto, como tivemos oportunidade de experimentar durante este período de confinamento causado pela pandemia, de repente damo-nos conta do impacto que realmente temos no mundo, enquanto espécie dominante. O silêncio tem este poder, de tornar certas coisas evidentes. Desta vez, fomos nós que nos calamos, e subitamente começamos a ouvir os pássaros e a ver os animais a reconquistar as ruas, as estradas, as cidades... A ironia dos tempos...

 

Quais são suas referências na literatura infantojuvenil e na ilustração?

EL: Confesso que tenho um gosto muito ecléctico, no que toca a muita coisa. Na ilustração também. Em Portugal, há um talento imenso na área da ilustração, para um país tão pequeno. Admiro o trabalho de vários ilustradores, todos muito diferentes, e em nenhuma ordem específica, como a Catarina Sobral, o João Fazenda, a Madalena Matoso, o André Letria, a Susa Monteiro, o Bernardo Carvalho, a Joana Estrela, o Gonçalo Viana, a Ana Seixas, o André Carrilho, a Marta Monteiro, o Jaime Ferraz, a Marta Madureira, o Nicolau, a Mariana Rio, o Tiago Albuquerque, a Yara Kono, o André da Loba, a Mariana Malhão, o Tiago Galo, a Carolina Celas, entre tantos outros! Podia encher aqui duas páginas!

Dos ilustradores estrangeiros, também podia fazer uma lista interminável, mas refiro só a Beatrice Alemagna, que é provavelmente a autora/ilustradora que mais admiro, pelos seus desenhos, as suas histórias, o seu humor, a sua originalidade, o seu percurso...

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A pandemia nos mostrou que, quando mexemos no ecossistema de maneira desequilibrada e invadimos o hábitat dos animais, podemos ter sérias consequências. Esse recado ficou claro para as pessoas? A pandemia vai deixar alguma lição sobre a importância da preservação ambiental ou ainda é preciso protestar muito?

EL: Eu espero que sim, que tenha ficado bem claro que as consequências da destruição de hábitats naturais e o desrespeito pela vida animal têm um impacto direto, devastador e global para a população humana, e que não distingue ninguém. É evidente para quem quer ver as evidências, mas como dizia antes, há interesses econômicos em jogo que se beneficiam da ignorância generalizada dos fatos e que semeiam a desinformação e a descrença no conhecimento científico. Por isso, a educação e a informação são fundamentais, e os livros fazem parte deste esforço, a começar logo pelas gerações mais novas. Quero ser otimista, mas acho que ainda vai ser preciso protestar muito para se combater esta tendência obscurantista e negacionista que anda a paralisar o mundo.

 

"Outro grande dever é sermos todos ativistas e usar nossa voz para exigir mudanças, expor problemas, informar."

 

Na história, todos os animais fazem greve: param de emitir sons, de botar ovos, dar leite. Ilustração de Eduarda Lima

 

Qual sua ligação com as causas ambientais? Como você procura dar sua contribuição para a preservação do meio ambiente?

EL: Não tenho nenhuma afiliação oficial a um grupo específico, mas sigo o trabalho de várias ONGs que trabalham no combate à crise climática, seja na preservação/ conservação ambiental, inovação tecnológica, em projetos de rewilding ou na defesa dos direitos das populações indígenas. Isto é uma luta que exige medidas em várias frentes e em vários níveis ao mesmo tempo. Acho que mantermo-nos informados, só em si, é um dos nossos deveres fundamentais neste momento.

De resto, tento reduzir o meu impacto no planeta com as minhas ações enquanto consumidora: comprar produtos locais, com a menor pegada de carbono possível; usar transportes públicos sempre que possível; reciclar; reduzir o desperdício; comer proteína de fontes sustentáveis, etc.

Depois, acho que o outro grande dever é sermos todos ativistas e usar nossa voz para exigir mudanças, expor problemas, informar. Fazer livros infantis sobre ativismo e o impacto da ação humana no ambiente e na biodiversidade do planeta também faz parte do meu contributo!

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Você pensa em fazer outros livros para crianças? Poderia falar sobre projetos futuros?

EL: Sim, vou continuar a fazer livros para crianças e quero aprofundar ainda mais estes temas que nos preocupam nos dias de hoje. Quero desenvolver um segundo álbum com a Orfeu Negro ainda este ano e, paralelamente, continuar com o meu trabalho de animação. Gosto de saltar entre o trabalho de ilustração estática e “animada”, duas práticas que se reforçam e informam mutuamente e me dão imenso prazer!

 

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