“Adoro que a arte possa ser calma, completamente silenciosa, e ainda assim dizer alguma coisa”, disse Stephen Michael King em entrevista publicada no Blog da Brinque-Book, em 2018, na ocasião do lançamento de O urso de todas as cores. De lá para cá, outros muitos livros se somaram à vasta bibliografia do escritor e ilustrador australiano, um dos mais admirados best-sellers da literatura para a infância e autor de mais de 80 livros ilustrados.
Conhecido por colocar em suas histórias as emoções de uma concepção de infância que ultrapassa a criança, Stephen Michael King está de livro novo por aqui: A arca do coala, uma fábula universal sobre preservação ambiental. Uma obra que o apresenta ao leitor a partir de outra faceta, também sentimental, mas política por essência, a da preocupação com a humanidade.
Durante um incêndio na floresta, um corajoso coala sai navegando pelo rio à procura de seus amigos encurralados pelo fogo. Abrigados em um pequeno barco, os animais trabalham juntos para salvar todo mundo.
A revolução será coletiva
A natureza é cenário de quase todas as histórias de King; é ao livre que seus personagens sempre estão – brincando, pensando, descobrindo. Com isso, o autor parece sugerir que é no meio de plantas e bichos que formamos memórias e aprendemos a ser mais humanos.
O que acontece, então, quando esse lugar tão grandioso para a vitalidade está sob ameaça do próprio homem? Essa dualidade está presente em A arca do coala, protagonizado por animais mais empáticos que muitas pessoas. Inspirado nas iniciativas de uma comunidade para conter os incêndios florestais no verão australiano de 2019 e 2020, Stephen parece indicar com este livro que a saída para garantir algum futuro às crianças de hoje está na coletividade.
Entre compromissos de família e a grande saudade que disse sentir do Brasil, o autor conversou com o Blog da Letrinhas, e generosamente compartilha aqui o que se passou de lá para cá em sua particular arte de escrever com a tinta das emoções.
Stephen Michael King vive em sua pequena ilha australiana de pouco mais de 350 habitantes, ao lado de sua companheira Trish Hayes, com quem divide um ateliê e suas criações literárias, antes de qualquer outro leitor.
Escuta pela arte
Quando criança, Stephen começou a gradualmente perder a audição. O que não ouvia passou a ser, no começo, também o que ele não falava, e assim passou um tempo fechado em si mesmo, até perceber nos desenhos uma forma de se fazer ouvir. “A perda auditiva abriu meus olhos para observar o mundo. Eu adorava desenhar e fazer coisas: tesoura, fita adesiva, cola, papel e canetas eram minhas ferramentas de comunicação preferidas; e livros de histórias eram minha janela para a linguagem”, diz o autor, em texto publicado no seu site oficial.
Há décadas, suas criações têm sido expressões de um sentimento interior, e também de um desejo generoso e empático de alcançar o outro, em compreensão e conexão. Basta uma espiada em seus livros mais conhecidos para ver isso acontecer na prática, como o clássico O homem que amava caixas (1997), Pedro e Tina (1999), Vira-lata (2005) A árvore magnífica (2013) – em parceria com Nick Bland –, Três (2020), e diversos outros.
Muito já se disse sobre o que torna um livro universal e eterno. O texto de Ítalo Calvino Por que ler os clássicos? já se tornou, ele próprio, um clássico. Quando olhamos para as histórias inventadas por Stephen Michael King, podemos entender que, sim, é melhor lê-las do que não lê-las. Calvino tinha razão, um clássico é principalmente isso.
Confira a entrevista na íntegra com Stephen Michael King
Diversos autores contemporâneos, como você, Nick Bland, Eduarda Lima e Philip Bunting (para citar alguns) falaram recentemente sobre preservação do meio ambiente em seus livros. Como esse tema te atravessa como artista e como indivíduo?
Stephen Michael King – A energia da Terra me faz sorrir. Eu moro em uma ilha cercada por árvores, pássaros e vida selvagem nativa.
Sempre tive a ideologia de cuidar de qualquer coisa inocente. Crianças, animais e natureza precisam ser nutridos. Sem discussão. É um fato.
Como surgiu o livro A arca do coala, desde a ideia até transformá-lo em livro? E como você imagina que ele seja lido (no sentido mais amplo da palavra)?
Stephen Michael King – A arca do coala é sobre mudanças inesperadas: uma mudança difícil de controlar ou conter. Minha mãe tem câncer atualmente. Eu também tenho um amigo que está doente – ele é marido e pai de filhos pequenos. Eu adoraria o melhor resultado para os dois. Este livro é um reflexo do senso de comunidade, da esperança e de como todos podemos nos unir em tempos difíceis. Especificamente, é sobre um personagem, o coala, que sai para encontrar seus amigos depois que um incêndio passa.
Eu escrevi o livro depois que a Austrália teve seus maiores incêndios registrados. Isso aconteceu em 2019-2000. A ilha em que moro fica no delta de um grande rio. Estava cercado por chamas gigantes por todos os lados. Muitos de nossos amigos lutaram contra essa catástrofe em suas portas. Uma escola local foi incendiada. Não só as pessoas perderam casas, mas nossa perda de vida selvagem local foi imensa. Nossa população de coalas foi devastada. Foi tão triste que eu quis escrever um caminho para fora disso, para a esperança. O personagem principal, um coala antes vulnerável, torna-se o herói da história.
Livros podem abrir caminhos para tratar de temas sociais importantes. Porém, a arte não se limita a função utilitárias. Qual o limite entre uma coisa e outra?
Stephen Michael King – Quero que todos os meus livros sejam salpicados de alegria, conforto, familiaridade e felicidade. Mas a vida é tanto sobre a morte quanto sobre o nascimento. Crianças e famílias precisam enfrentar, ou pelo menos encontrar tempo para discutir problemas mais complexos: seus problemas, problemas na escola, problemas com amigos e, muitas vezes, coisas como morte ou possivelmente doença mental ou deficiência. Alguns dos meus livros têm como tema a dor e a perda. Vira-lata (Brinque-Book, 2005) tinha um foco na falta de moradia.
Escrevo o que é importante para mim. Às vezes é tudo dança e alegria. Às vezes é tristeza e solidão. O que quer que aconteça no dia a dia da minha vida.
Ao final de todos os meus livros, quero transmitir uma sensação de esperança. Imagino que A arca do coala não seja apenas lido por um pai, mas também discutido. Há pingos de alegria, mas a história também é uma metáfora para as dificuldades da vida e como podemos tentar abordá-las.
As crianças de hoje habitam um mundo que já foi bastante maltratado pelos adultos. Como falar com elas de temas urgentes, como a emergência climática, sem sobrecarregá-las?
Stephen Michael King – Essa é difícil. As pessoas me dizem que a política é onde uma mudança significativa deve acontecer. Uma boa mudança, esperamos todos. Com as crianças, acredito que a resposta esteja na natureza. Todos nós temos que nos certificar de que apreciamos as formas das nuvens, o sol e a chuva. Tudo tem um propósito, e nossa terra está se esforçando para se renovar. Todos nós podemos ajudá-la. É encontrar alegria em um inseto, não medo, e confiando que tudo tem um lugar, um equilíbrio e harmonia naturais.
Minha linda esposa Trish e eu cultivamos extensos jardins (selvagens e livres). Trish plantou muitas sementes com nossos filhos. Todos nós compartilhamos a alegria de ver as mudas surgirem e crescerem. Isso foi um grande presente para todos nós. Eu recomendo tocar a terra e sentir sua bondade. Diga obrigado enquanto estiver lá.
Estou trabalhando em uma pequena série de livros que aproveita alguns desses temas – felicidade nas coisas simples. Somos todos cuidadores, e as crianças podem crescer no futuro.
A arca do coala é o vigésimo livro de Stephen Michael King publicado pela Brinque-Book - incluindo os títulos em que ele assina a ilustração, como A árvore magnífica, escrito por Nick Bland.
A maior parte dos seus livros atravessou os anos com assuntos atemporais, universais e delicados. Que assuntos você ainda gostaria de abordar e ainda não o fez?
Stephen Michael King – Alguém me disse outro dia: "Eu quero ser você". Minha resposta foi: "Eu quero que você seja você. Não há necessidade de você ser eu."
Todos os meus livros têm espaço para o leitor trazer seus próprios temas para minha história. Meus livros são tanto sobre você ser você quanto sobre mim. A arca do coala é um ótimo exemplo. Meu livro Três, sobre um cão de três patas despreocupado, é outro. Seja você mesmo.
Somos todos únicos. Estes serão sempre temas nos meus livros. Trazer coisas boas para o mundo é o meu manifesto.
Sou intuitivo na forma como trabalho. Não tenho planos criativamente sólidos para o futuro. Minha filha diz que posso ser muito apaixonado por uma causa. Então, eu escrevo uma resposta gentil para encontrar meu caminho a seguir. Atualmente, tenho cerca de cinquenta ideias que são começo, meio ou fim. Estou esperando meus sonhos para me presentear com uma solução. Também tenho um romance semi-acabado que gostaria de completar. Meu tema maior ainda não se revelou.
Você concorda com o rótulo “infantil” para os livros que também incluem a criança? Como libertar os livros de rótulos limitantes e, o leitor, das experiências calculadas?
Stephen Michael King – Você pode ler um romance de 500 páginas que só lhe dá um grande momento. Um livro de imagens deve dar-lhe um grande momento. Não há diferença.
Um livro ilustrado é como um poema ou uma canção. É como arte na parede de uma galeria, apenas encadernada em forma de livro.
Minha forma de arte é o livro ilustrado. Sou autor e artista de livros ilustrados. Todos os meus livros são sobre liberdade. Todas as formas de expressão devem ser valorizadas. Devo dizer, desde que sua forma de expressão não afete o direito de outra pessoa de se expressar. Todo mundo precisa de um ouvido atento. Adoro conhecer adultos que apreciam livros ilustrados.
O que as crianças sentem ou têm a dizer, mesmo que seja um sussurro, é tão vital quanto o que os adultos pronunciam.
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Mais do que perguntar por que as crianças devem ler mais livros ilustrados, gostaria de saber de você o contrário: por que os livros ilustrados (e, claro, seus criadores) precisam das crianças?
Stephen Michael King – As crianças nos ajudam a ver através das rachaduras no chão. Encontramos aventuras de formigas no chão. As crianças adoram bolhas flutuantes soprando. Por que meus livros precisam de crianças? Que ótima pergunta. Você me faz pensar. Dê-me um momento para descobrir qual é a minha resposta.
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Meu pai lia para mim (às vezes, inventava histórias ou músicas). Ler livros à noite com meu pai (ou minha mãe) era o nosso momento mais reconfortante. Não havia mais empregos ou trabalhos escolares, apenas meus pais e uma história – conexão e depois sono. Meu eu infantil não consegue imaginar minha própria infância sem esse tempo. E meu eu adulto adorou compartilhar esses momentos com meus próprios filhos e com a comunidade em geral.
Mmmmm, meus livros precisam de crianças para que talvez possam ter seu tempo especial com seus próprios pais ou cuidadores. Eles não apenas compartilharão minhas histórias, mas meus livros são uma pequena porta de entrada para compartilhar uns com os outros.
"Quero produzir histórias relevantes para os tempos de agora", diz o autor, que acaba de lançar A arca do coala no Brasil.
Quais são suas grandes referências na literatura para a infância? Escritores e ilustradores que inspiram o seu trabalho.
Stephen Michael King – Quando eu era pequeno, os livros que eu tinha acesso eram principalmente da Inglaterra ou da América: o ilustrador de Whinnie-the-Pooh, E.H. Shepherd, Edward Ardizzone fez uma versão de Peter Pan que ainda é minha favorita, e Michael Foreman ilustrou outra. Eu li O Mágico de Oz recentemente, e meu eu adulto adorou por muitos mais motivos do que o meu eu de infância.
Da América, havia o Dr. Seuss e o Richard Scarry. Os Moomins de Tove Janson vieram da Suécia. Quadrinhos como Asterix e Peanuts. Há um cartunista australiano, Michael Leunig, que é um tesouro nacional aqui. Lembro-me facilmente de The Nightbirds of Nantucket, de Joan Aiken. Tinha uma baleia pulando do mar com uma lua cheia brilhante acima. Esse livro está sempre na tela da minha mente criativa.
Polvilhados de todos os livros que eu amei se infiltram no meu trabalho, mas não meço tanto agora que estou mais velho. Eu principalmente faço o que parece adequado para o livro.
Tudo tem sido uma inspiração. Não tínhamos muitas coisas ou dinheiro quando crianças, mas minha mãe e meu pai sempre faziam questão de que tivéssemos livros. Minha própria casa está cheia de livros em todos os cômodos – eles trazem muita cor ao mundo. Adoro ver o que as pessoas estão criando.
Eu sou atraído por artistas que são soltos e livres. Eu conheci muitos deles quando viajei pelo Brasil. Artistas que capturam uma emoção com uma linha ondulada e um toque de tinta.
Na sua opinião, como um livro precisa ser para cativar a criança?
Stephen Michael King – Ainda tenho uma criança dentro de mim. Às vezes, essa criança se lembra de momentos tristes ou assustadores. Às vezes, ela se lembra de construir cubículos e sonhar grandes sonhos, jogando o dia todo até o sol se pôr. Estou escrevendo para mim primeiro. Brincar com uma ideia até que ela se transforme em algo universal, algo que desperte uma emoção dentro de mim. Então, eu leio para minha esposa, Trish. Eu sei que tenho algo se ela chorar ou rir nos lugares certos.
Cada palavra que escrevo ou desenho que desenho, imagino uma experiência compartilhada entre o leitor e a criança.
Um livro ganha vida com um pai ou responsável que compartilha sua alegria. Eu adorava ler em voz alta para meus filhos. Não há nenhuma pressão para aprender ou ficar mais sábio quando você lê, apenas amor e riso.
Onde encontra inspiração para criar?
Stephen Michael King – Eu amo fazer livros. Eu sou quem eu sou, e eu crio o que eu crio. Meus livros sou eu.
Como me manter inspirado? Eu não tento me inspirar. Costumo tentar tirar férias de inspiração. Não há dia em que eu não faça um desenho ou escreva algumas frases. Meu pai sonhava em ser inventor. Ele estava sempre anotando ideias ou conversando sobre possibilidades desconhecidas. Minha mãe era uma professora que me seduziu a escrever meus pensamentos nos diários que ela comprou para mim.
Fazer um diário é um hábito que adquiri muito jovem e me serviu bem nos últimos 30 anos de produção de livros. Todas as ideias, boas, médias ou ruins, vão para meus diários. Não julgo nada neles. Eles podem ser confusos, cheios de erros ortográficos e frases incompletas. Eventualmente, uma ideia não deixa ir, e me chama para brincar até sair da página. Nunca é um momento de literatura – nunca um quebra-cabeça ou momento de reflexão, mas um sentimento de aventura em meus ossos. Meu coração mostra o caminho, e assim os meandros criativos seguem.
(Texto de Renata Penzani)