O futuro das crianças (e da humanidade) é ancestral e acontece agora

04/04/2023

Para além de onde cada um de nós nasce - um sítio, uma aldeia, uma comunidade, uma cidade -, estamos todos instalados num organismo maior que é a Terra. Por isso dizemos que somos filhos da terra. Essa Mãe constitui a primeira camada, o útero da experiência da consciência, que não é aplicada nem utilitária. Não se trata de um manual de vida, mas de uma relação indissociável com a origem, com a memória da criação do mundo e com as histórias mais reconfortantes que cada cultura é capaz de produzir. (Trecho do livro "Futuro ancestral", de Ailton Krenak)

Em seu mais recente livro, Futuro ancestral, o escritor e ativista socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, Ailton Krenak, fala sobre como o coração precisa "bater no ritmo da Terra" para que possamos ter um futuro. Não uma ideia imaginária de futuro, mas um presente real e possível, de uma nova narrativa de mundo que pode ser formada aqui e agora, por seres que se entendem como parte de um todo, integrado, sujeito coletivo e conectado com tudo aquilo que percebemos como natureza.

Um mundo formado por seres que ouvem os saberes de sua ancestralidade. Um mundo que respeita as crianças, dotadas naturalmente do entendimento ancestral de pertencimento à natureza, que as enxerga como seres completos e não as obriga a isolarem-se da natureza. Um entendimento de um ambiente que não está à nossa disposição, mas faz parte de nós mesmos, e de uma ideia de ecologia que não atua sobre um terceiro, mas sobre nós mesmos.

A escolha de um outro mundo pode ser feita aqui e agora e será feita pelas crianças, não pelos adultos. (Trecho do livro Futuro ancestral, de Ailton Krenak)

Mas, para isso, é preciso reconectá-las à natureza. E isso passa pela mudança na forma de educação atual, na qual as crianças são treinadas para ignorar o meio ambiente, isoladas em sala de aula, com uma ideia higienizadora de que o brincar na terra é sujo. Mas também passa, enquanto família e sociedade, por propiciar esse contato, e aprender com elas que somos todos natureza, fazemos parte desse grande todo, que é um ser vivo e sente nossas ações.

O autor explica em seu livro: "Essa liberdade que tive na infância de viver uma conexão com tudo aquilo que percebemos como natureza me deu o entendimento de que eu também sou parte dela. Então, o primeiro presente que ganhei com essa liberdade foi o de me confundir com a natureza num sentido amplo, de me entender como uma extensão de tudo, e ter essa experiência do sujeito coletivo. Trata-se de sentir a vida nos outros seres, numa árvore, numa montanha, num peixe, num pássaro, e se implicar". 

O que a Terra sente?

E, considerando que somos seres integrados e que a Terra é um organismo vivo, como será que ela se sente hoje? Fazer essas perguntas e imaginar o ponto de vista da Terra para acontecimentos e, sobretudo, em resposta às ações humanas, é o exercício que faz Marc Majewski com o livro Será que a Terra sente? (Pequena Zahar, 2023). Com o apoio de belíssimas ilustrações, também assinadas por Majewski, as páginas indagam: “Será que a Terra se sente calma?”, “Será que se sente feliz?”, “Será que a Terra fica cansada?”, “Será que fica doente?”.

Se a Terra pudesse mesmo sentir, seriam grandes as chances de as respostas serem positivas para as perguntas que nos induzem a refletir sobre como temos tratado nosso planeta. Aparentemente, o chamado “progresso” tem feito a Terra sofrer. Ela, provavelmente, se sentia mais feliz quando era cuidada, quando coexistia com a espécie humana, sem tornar-se, simplesmente, um produto a ser consumido desenfreadamente por ela. 

Será que a terra sente?

Livros como este invertem a perspectiva do nosso olhar para o meio ambiente. A Terra é vista como um grande organismo vivo, interdependente, que sofre, que sente, e não simplesmente como o lugar que habitamos. Não se trata do "estamos", mas do "somos". É o que ocorre também no cinema. O filme de animação Mundo Estranho, da Disney, nos coloca como seres que se afetam e se conectam em uma Terra viva, muito viva. 

Essa inversão é vista também no livro Lá longe, da dupla Carolina Moreyra e Odilon Moraes (Pequena Zahar, 2023), que contrapõem o tempo todo cenas da cidade com cenas da floresta, mas num protagonismo não do homem, e sim dos animais. E o "lá longe", desta vez, não é a mata, mas sim o centro urbano. 

Aquecimento global e ponto de virada

No último dia 20 de março, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU), o IPCC, divulgou um relatório sobre o aquecimento global provocado pelo homem. O ponto principal é que, apesar de ainda existirem chances de reverter o jogo e evitar um colapso climático nas próximas décadas, é preciso agir em prol da mudança - e fazer isso rapidamente. Caso contrário, as próximas gerações serão condenadas e não haverá mais chance de retorno. O documento também mostra que os impactos do clima nas pessoas e nos ecossistemas são mais sérios do que se esperava e os riscos aumentam a cada fração de grau de aquecimento.

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Não é preciso ir longe para sentir de perto alguns dos impactos da crise do clima. Só neste ano, o litoral norte de São Paulo já sofreu uma de suas maiores tragédias devido às chuvas. O mesmo acabou de acontecer com diversos estados do Norte e Nordeste do país, quando a chuva intensa e as consequentes cheias dos rios provocaram estragos sérios em estados como Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Tocantins e Maranhão. Não é mais temer pelas mudanças futuras. Os impactos, infelizmente, já estão acontecendo, bem na nossa frente. E o que as crianças têm a ver com isso? Tudo!

“Se a crise climática já está chegando até nós agora, muito mais cedo do que imaginávamos, o futuro guarda situações bem mais difíceis e mais comprometedoras da qualidade de vida e, por isso, é importantíssimo as famílias entenderem isso e deixarem um legado positivo para as crianças, do ponto de vista ambiental”, diz o pediatra e sanitarista Daniel Becker, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Não é possível dizermos que cuidamos bem dos filhos hoje só porque eles estão em uma boa escola, têm um bom pediatra, frequentam cursinhos bacanas. Não. Precisamos cuidar do futuro deles e, portanto, precisamos nos engajar em ações ambientais”, aponta. 

Ilustração do livro Será que a Terra sente, publicado pela Pequena Zahar

Ilustração que aparece junto com a pergunta: Será que a Terra se sente viva?

Ancestralidade e sabedoria

E qual será a solução? O relatório do IPCC destaca que as ações em prol da redução da emissão de poluentes estão acontecendo, mas ainda não são suficientes para amenizar as projeções assustadoras. Se continuarmos nesse ritmo, haverá um colapso muito antes do que se espera. Será que a humanidade precisa inventar novas tecnologias? Ou acelerar as pesquisas sobre possibilidade de vida (e nossa existência) em outros planetas? Nada disso. A resposta, como bem defende Ailton Krenak, está em olhar para a nossa sabedoria ancestral. 

Os povos originários não consomem a natureza como se fosse um produto. Eles vivem a natureza, eles são a natureza, eles se integram à natureza e, portanto, a respeitam e cuidam dela, como se fossem eles mesmos - e é disso que as crianças precisam, dessa sabedoria ancestral de cuidar da natureza como algo absolutamente prioritário, cuidar dos animais como nossos irmãos, cuidar das plantas e das florestas, porque eles salvam as nossas vidas (Daniel Becker, pediatra e sanitarista). 

Para o escritor, professor e ativista indígena Daniel Munduruku, autor de Histórias de Índio (Companhia das Letrinhas), os povos indígenas não são povos do passado e menos ainda do futuro. “São povos que olham para o passado para encontrar caminhos para seguir adiante”, diz. “Buscam na memória vivida pelos ancestrais as melhores respostas para o drama da existência que só ocorre hoje. Nessa busca para significar o presente, colocam-se em conexão com as vozes da ancestralidade, que, sendo vozes circulares, caminham do início ao fim, do fim ao início, num bailado harmônico”, descreve. Segundo ele, o mundo precisa olhar para o passado de modo a aprender com as próprias dores, revigorar seu pertencimento, reconhecer seus erros e valorizar sua memória. “Só assim, caminhará com segurança rumo ao futuro - ao futuro ancestral”, acrescenta. 

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Menos telas, mais natureza

As crianças já nascem com uma tendência de reverenciar a natureza. Elas adoram brincar na terra, na areia, com as plantas, com os bichos, tomar banho de chuva, de mar, pular em poças de água. No entanto, conforme crescem, no mundo de hoje, sobretudo nas grandes cidades, acabam perdendo esse vínculo e sendo “engolidas” por outros valores - e por uma educação que prioriza a competição, por exemplo. “O amor à natureza é fundamental para as crianças porque nós só defendemos o que amamos - e a natureza precisa urgentemente ser defendida, em massa, por essa geração”, explica Becker.

“A gente tem que afastá-las das telas, onde estão sendo educadas para o consumismo, para a futilidade, para a violência, porque, infelizmente, é isso que chega às crianças, e levá-las para a natureza, que oferece o oposto do consumismo. A natureza oferece simplicidade e proximidade com esse mundo, que é tão deslumbrante, apaixonante”, diz o médico. “Na natureza, os pequenos entendem que o mundo é maior que eles, que o umbigo deles. É uma ‘vacina anti-narcisismo’, de que a gente tanto precisa nos dias de hoje. Esse amor à natureza que vai se desenvolver a partir daí é fundamental para que essas crianças possam defender a natureza no futuro”, afirma.

Imagem do livro Será que a Terra sente?, publicado pela Pequena Zahar

A ilustração responde à questão: Será que a Terra se sente ouvida?

 

Isso sem falar em todos os benefícios que essa relação próxima com a Terra oferece para o desenvolvimento. O pediatra lembra que a conexão com a natureza traz diversos benefícios.

A criança que tem essa conexão com a natureza cresce mais saudável, com maior capacidade imaginativa e colaborativa, com mais habilidades interpessoais, principalmente, quando brinca na natureza com outras crianças, com mais curiosidade, mais criatividade e mais capacidade de resolução de problemas. (Daniel Becker, pediatra e sanitarista) 

O papel dos adultos frente ao colapso ambiental

Quando os pequenos crescem amando a natureza, eles vão se engajar mais e fazer de tudo para defendê-la, mas não é por isso que vamos cruzar os braços e jogar no colo da próxima geração a responsabilidade de resolver todos os problemas. Até porque, como nos lembra o relatório do IPCC, nem temos tempo suficiente para nos dar esse luxo. É preciso agir agora. O exemplo e as mudanças no modo de viver começam com os adultos que cercam essas crianças; começa por você, pai, professor, educador, avô, avó, tio, tia, vizinho, sociedade.

“Precisamos cuidar do futuro dessas crianças e, portanto, precisamos nos engajar em ações ambientais, na preservação da natureza, em reduzir consumismo, em reduzir o descarte de lixo e cuidar desse descarte”, enumera Becker. “Precisamos, em especial, fortalecer políticas através do voto, da pressão, da cidadania. Precisamos fortalecer políticas que favoreçam a preservação ambiental e a natureza. Nas cidades, especialmente, isso pode ser feito por meio desse ativismo do verde urbano, exigindo dos governos municipais que cuidem das praças, que arborizem os bairros, favoreçam a qualidade de vida de todos, trazendo as pessoas para as ruas, incentivando-as a usarem o espaço público, que se torna mais seguro quando é usado”, sugere. 

 

Amor à natureza também se aprende na escola

A educadora ambiental Lívia Ribeiro, idealizadora da Reconectta, empresa que desenvolve soluções, sistemas e produtos relacionados à sustentabilidade e ao meio ambiente para escola, diz que ainda dá tempo de mostrar a importância e reverter o quadro do planeta às crianças. “O primeiro passo fundamental é nós, enquanto adultos, professores, família, educadores, precisamos olhar para nós e para a nossa conexão com a natureza, porque também estamos muito desconectados”, diz.

Mais do que ensinar, o fundamental é favorecer a criação do vínculo dos pequenos com a natureza, viver a natureza, mais do que apenas falar sobre a importância dela. (Lívia Ribeiro, idealizador da Reconectta)

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As escolas têm um papel essencial nesse processo, principalmente no caso das crianças que vivem em grandes centros urbanos. “Uma das formas é criar, aumentar ou até potencializar, se já tiver, espaços de natureza dentro da escola. Às vezes, pensamos em uma floresta, mas não precisa ser isso. Existe uma dificuldade de espaço, mas é possível adaptar, com mais plantas, uma horta, um meliponário de abelhas sem ferrão…”, cita.

Ela também sugere que as escolas promovam saídas para a natureza e que também olhem para o repertório e para as referências que as crianças têm na escola. “Trazer livros, histórias, músicas sobre a natureza e a sabedoria dos povos originários, filmes, brincadeiras… Também é legal usar elementos da natureza, em vez de brinquedos de plástico, fazer tinta natural”, acrescenta. “Olhar para o dia a dia das crianças e como elas têm contato com a natureza e aumentar esse repertório é um passo que pode ser muito interessante e não tão complexo”, diz. 

Ilustração do livro Será que a Terra sente? responde à pergunta: Será que a Terra se sente protegida?

O texto pergunta: Será que a Terra se sente protegida? A ilustração responde

 

Se a Terra sente? Embora dê para arriscar alguns palpites pelas respostas que o planeta tem escancarado para a humanidade, talvez não sejamos capazes de responder com certeza. Mas sempre existe a opção de olhar para os nossos ancestrais, observar e aprender com eles. De repente, assim, a conexão se fortaleça a ponto de apurar nossos ouvidos e todos os nossos receptores para escutar o que a Terra diz e entender o que ela pede. Neste dia, talvez possamos retribuir a ela pelo menos um pedacinho da generosidade que ela nos dá desde sempre.

Esse é o mistério indígena, um legado que passa de geração para geração. O que as nossas crianças aprendem desde cedo é a colocar o coração no ritmo da terra. (Trecho do livro Futuro ancestral, de Ailton Krenak)

Livros para aproximar as crianças da natureza

Será que a Terra sente?, de Marc Majewski

Capa do livro Será que a terra sente?, da Pequena Zahar

Como dito anteriormente, neste livro de belíssimas ilustrações, o autor nos leva a pensar a Terra como um organismo vivo, que sente - especialmente as ações depredatórias do homem. Com perguntas simples, leitores de todas as idades são levados a pensar se a Terra se sente calma, cansada, feliz, doente...

 

Lá longe, de Carolina Moreyra e Odilon Moraes

Capa do livro Lá longe, de Odilon Moraes e Carolina Moreyra

Neste outro livro de belíssimas imagens, a perspectiva dos animais está no centro da ação e a natureza é o que está "perto" (longe está o menino, no centro urbano, sonhando com a natureza). As cenas e realidades se contrapõem. Assim, observamos um tucano que abre os os olhos ao amanhecer da floresta enquanto um menino desperta sozinho em seu quarto. Na hora do café, o jacaré e o cervo vão em busca de alimento, e o menino senta à mesa. E, assim, sucessivamente, duas realidades de um mesmo planeta, duas realidades tão distantes.
 

As maravilhas da água, de Philip Bunting

Capa do livro As maravilhas da água, de Philip Bunting
O autor de Árvores geniais, que fala sobre a poderosa comunicação entre as plantas de forma leve e bem-humorada para as crianças, se debruça agora sobre o incrível poder da água neste livro. Com curiosidades - como a de que a água cobre 70% do planeta - e linguagem igualmente recheada de humor e maravilhamento, ele nos mostra que, do xixi dos dinossauros ao nosso próprio corpo, a água está em tudo. 
 

A arca do coala, de Stephen Michael King

Capa do livro A arca do coala, de Stephen Michael King

Frente aos incêncios que ameaçam os amigos em terra, o destemido coala decide resgatar seus amigos encurralados, navegando pela várzea do rio. Inspirado nos acontecimentos reais dos incêndios florestais na Austrália nos anos de 2019 e 2020, o autor Stephen Michael King quis trazer um pouco de esperança de como a solidariedade e a cooperação entre os seres pode ajudar a minimizar (e mesmo frear) os desastres climáticos.
 

A marcha das baleias, de Nick Bland

Capa do livro A marcha das baleias, de Nick Bland
 
Nesta distopia ambiental, as baleias saem dos oceanos e passam a dividir as cidades com os humanos. Dividir não é bem o termo, melhor seria: ocupar os espaços: trens, restaurantes, parques. Com o tempo, o que era apenas curioso vira um pouco caótico, já que elas são enormes, consomem muito, produzem imensa quantidade de dejetos... E, assim, a pergunta aparece: por que elas saíram do mar? E o leitor é obrigado a se colocar no lugar das baleias...
 

O protesto, de Eduarda Lima

Capa do livro Protesto, de Eduarda Lima

Os pássaros deixaram de cantar. Os gatos já não miavam. E as vacas recusavam-se a dar leite. Os animais pareciam ter feito um pacto de silêncio. E a verdade é que o silêncio, às vezes, grita. Neste livro, o grito está entalado por tanto descaso com o meio ambiente: poluição, lixo, desperdício. E o livro é um convite para o leitor se juntar a esse protesto, unindo sua voz a essa causa. 
 

 

 
 
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