Um ano de pandemia: como está a saúde emocional das crianças?

13/03/2021

Em março de 2020, quando a pandemia foi decretada e as famílias passaram a ter que administrar o home, o office, as aulas da escola e tudo o mais que não se enquadra nessas classificações, havia a ideia de que o caos seria passageiro.

Mas eis que presenciamos a chegada de março de 2021, e o caos não apenas continua, como está em seu pior momento. Se para os adultos já parece não haver mais palavras para descrever o que vivemos e o que sentimos ao longo desse ano, o que dizer das crianças?

Como elas estão depois deste ano pontuado por perdas e lutos em âmbitos diversos de suas realidades?

“As crianças fazem parte desse nosso tempo, desse nosso mundo, elas são afetadas. O que faremos a partir disso é o que precisamos pensar… Como vamos estar junto, acolher, recriar a partir dessas marcas que estão em todos nós, não importa a idade que tenhamos? As crianças são afetadas, mas também afetam, também recriam, ressignificam… Temos que acreditar mais na capacidade delas de, com nosso apoio, seguirem bem.” 

(Lilith Neiman, professora)

Essa é a convicção da professora Lilith Neiman, professora da educação infantil da rede pública municipal de São Paulo e doutoranda em educação pela USP. Ela conta que, no início da pandemia, ficou preocupada com notícias e conversas sobre "sintomas" nas crianças e "testes" para verificar se as crianças estavam sendo afetadas.

“Vi muitas mães da escola e amigas minhas preocupadas com seus filhos desnecessariamente. Achar que as crianças não seriam afetadas, achar que elas deveriam estar ‘rendendo’ normalmente diante de tanta alteração na rotina me parecia uma sacanagem, com as crianças e com as mães, que acabavam puxando mais essa culpa”, ela pondera.

A arte-educadora Giselda Perê tem dois filhos, um de 5 anos e um de 3, e conta, inclusive, que a experiência logo no início da pandemia foi positiva. “Eles foram para a creche muito pequenos, desde um ano e meio, então curtiram muito, inicialmente. E eu e meu marido também vivemos coisas muito boas, foi um momento muito prazeroso. Mas aí veio a preocupação com o trabalho, trazer o dinheiro para casa, quando as coisas foram se re-estabelecendo, e foi ficando mais exaustivo para todos nós”, relembra.

Ilustração de Fernando Vilela: Cores da quarentena

A rotina dos meninos passou a ser sempre mais ou menos a mesma, com mais uso de telas. “E eu não tinha muito o que fazer naquele momento, mas eles não reclamavam. O que aconteceu é que eles foram mudando o comportamento, foram ficando mais irritados, mais birrentos, foi um momento em que se intensificaram algumas características da personalidade deles. A gente, enquanto família, chegou neste ano muito cansados, mentalmente e fisicamente.”

Ela diz que o mais novo, apesar de irritado, ainda consegue aproveitar bastante estar em casa. “Ele fica superbem, mas para o meu mais velho estava mais complicado, ele estava muito mais irritado e cansado de todos nós, do irmão, do pai, de mim, da casa, do quintal. E olha que é isso, tem uma casa com quintal!”

Giselda conta que a experiência com o ensino remoto não foi muito produtiva. O mais velho não tinha aulas, mas havia conteúdos de vídeo postados em uma plataforma sobre alguns temas, mas ela percebeu que o filho não tinha muito interesse e, como ainda não tinha um vínculo com a professora, não fez muito sentido para ele.

Ilustração de Janaína Tokitaka: Cores da quarentena

“O mais novo também tinha alguns esquemas de vídeo-chamada, mas toda vez que tentamos, ele não ficava bem depois. Essa coisa de ver a professora, ele queria ir para a escola, era uma coisa que causava dor em vez de alegria. Então eu fui desencanando de ter mais essa responsabilidade e seguir o que a professora estava propondo como atividade. Eu fiquei muito tranquila com isso e fui meio livre na espontaneidade da nossa casa”, descreve a educadora.

A experiência da família de Giselda não foi isolada. Na escola onde Lilith dá aula, houve pouca interação com as famílias no período de isolamento, tanto que ela diz não conseguir avaliar o impacto do isolamento sobre o estado emocional das crianças.

“A devolutiva das famílias foi muito, muito baixa mesmo. De cerca 270 crianças da escola, nem trinta faziam devolutivas sobre o que postávamos”. Ela relata que muitas famílias não têm acesso à internet e, mesmo entre as que têm, o acesso à plataforma oficial é complexo e envolve baixar um aplicativo, seguir passos de tutorial, com login e senha difícil de guardar. “Nem todas as pessoas têm essa facilidade”, ela reflete.

O filho mais velho de Giselda começou em uma escola particular depois do carnaval porque receberam a oferta de uma bolsa. “É uma escola com um trabalho de conscientização com as famílias; se necessário, as aulas podem ser suspensas, então eu criei coragem. E ele tem adorado, voltado muito mais bem-humorado, muito mais leve, mais feliz, é como se tivesse acendido uma chama dentro dele de novo. A escola é integral, mas agora ele vai de manhã e tem aula on-line à tarde. E já está sendo maravilhoso e superimportante”.

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As principais queixas

A psicóloga Alessandra Lorenzi, que atua com crianças, adolescentes e adultos há 23 anos na área clínica, e, há nove, em dois colégios particulares da zona norte da cidade de São Paulo, afirma que todos os momentos até aqui foram críticos, com características diferentes.

“A princípio foi o grande choque, o desconhecido, uma pandemia, fechamento da escola, isolamento social. Depois foi o cansaço, de um tempo longo de isolamento, fadiga das aulas on-line e de estar em recolhimento em casa. Agora vivemos um terceiro momento, depois da esperança pela reabertura das escolas e de um consolo de pequenos movimentos rumo à normalidade, voltamos ao isolamento, nova cepa, fase vermelha, o que gera desesperança”, reflete.

Ilustração de Maurício Negro: Cores da quarentena

Alessandra relata que, nestes doze meses de pandemia, surgiram queixas muito parecidas nas escolas e no consultório onde atua. “Nas crianças, manifestações psicossomáticas, diarreias, crises alérgicas, vômitos; alterações na qualidade do sono e alimentação, irritabilidade. Nos adolescentes, além dessas características, crises de ansiedade e pânico, instabilidade de humor, além de ideação suicida em alguns casos mais graves”, conta.

Marleide Soares, psicóloga clínica que também atende crianças, diz que os comportamentos atípicos também incluíram irritabilidade acentuada, constantes crises de choro, queixas pela separação de amigos, colegas e professoras e a recusa a prestar atenção às aulas on-line. No caso das crianças mais novas, ela conta que “nas escassas situações com encontros presencias, as crianças mais novas se comportaram com excessiva timidez, ficando acuadas junto às mães e aos pais ou às pessoas com quem sentiam-se seguras e confiantes”.

Inês De Biase, que é coordenadora dos projetos de leitura da Escola Parque, no Rio de Janeiro, explica que “saudade e tristeza por não poder estar junto, dificuldade de compreender o que estava acontecendo e de lidar com o isolamento, agitação e ansiedade” foram alguns dos ‘sintomas’ observados nas crianças.

Ilustração de Rui de Oliveira: Cores da quarentena

A pedagoga, que é especialista em leitura, revela ainda que, “com relação à biblioteca da escola, especificamente, tiveram muita saudade de estar no espaço, manusear livros, ouvir e ler histórias junto com amigas e amigos e de levar livros para ler em casa. Mesmo com toda a pesquisa que fizemos e o que oferecemos, com o excesso de telas, uma das maiores perdas foi não poder escolher seu livro querido e lê-lo na biblioteca e em casa”.

Inês argumenta que, mesmo com a dificuldade de fazer os livros chegarem à comunidade escolar no período do isolamento, a leitura literária com as crianças proporcionou “momentos de tranquilidade em meio ao caos que temos vivido. Esses momentos de partilha e de troca criam, também, espaços de conversa para que possamos refletir sobre o que está acontecendo. Assim, teria sido muito difícil não termos contado, mesmo que virtualmente, com a companhia de livros e histórias durante o isolamento social”.

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Como as desigualdades afetam a saúde emocional

Tanto Alessandra quanto Inês reconhecem os espaços privilegiados em que atuam.

A Escola Parque, por exemplo, tem uma biblioteca com acervo amplo e bibliodiverso e uma equipe com bibliotecária e mediadores de leitura. “Infelizmente”, ela reconhece, “a maioria das escolas do Brasil não pôde fazer a literatura chegar às casas de alunos e alunas e aos professores e professoras”.

O público que Alessandra atende é de crianças e adolescentes de classe média, estudantes de escola particular. “Pensando nas desigualdades que vivemos em nosso país, para muitas crianças e adolescentes, a escola é o lugar de refúgio contra a fome, a violência e o abandono”, ela pontua.

Ilustração de Pri Ferrari: Cores da quarentena

Para Marleide, quando as diferenças socioeconômicas do nosso país são consideradas, o prejuízo causado pela falta de compartilhamento e convivência pode se agravar. “Se os adultos responsáveis estiverem enfrentando dificuldades em manter uma alimentação adequada, por exemplo, essa mesma falta de recursos é fator de preocupação e pode incorrer num ambiente inseguro”.

Essa foi a realidade vivenciada por Lilith. Ela conta que, por conta do pouco retorno das famílias no período do isolamento, não conseguiria avaliar com precisão o impacto no comportamento das crianças, mas sabe que as condições financeiras de muitas delas não são boas. 

“Das poucas crianças que entravam em contato, ouvimos muito sobre saudade. Mas tenho certeza de que passar por insegurança alimentar, desemprego da família, despejo, como sabemos que aconteceu e tem acontecido com várias crianças, impacta demais, demais. E, com o fim do auxílio emergencial, algumas crianças estão em pior situação do que no ano passado”, diz Lilith.

A professora relata que houve tentativas, por parte das professoras da escola atua, de criar grupos de WhatsApp das turmas para estar mais perto da situação das crianças, mas o acompanhamento não foi sistemático. “Demos apoio às necessidades mais concretas: doação de cesta básica, apoio com material de limpeza, conseguimos garantir que não faltasse comida”, ela conta.

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Como vai ser a partir de agora?

Giselda Perê conta que, com o agravamento da pandemia, está preocupada porque a volta do filho mais velho para a escola foi uma mudança familiar. “E ele não lida bem com a escola fechar novamente. É uma conversa delicada, a gente está indo devagar, um dia de cada vez, sem querer que ele dê conta de questões muito profundas nesse momento, também para não gerar tanta ansiedade nele”.

Ilustração de Guilherme Karsten: Cores da quarentena

Para Alessandra Lorenzi, as crianças de fato já estão muito ansiosas com a possibilidade de novo fechamento das escolas. “Hoje elas têm mais recursos para lidar com as aulas remotas, sabem fechar e abrir câmeras e microfones na hora certa, sabem a hora de perguntar diretamente para a professora ou no chat, mas não estão preparadas emocionalmente para se isolarem novamente. Já viveram isso, e a experiência foi dolorida”, diz a psicóloga.

Inês De Biase, da Escola Parque, confia no potencial das crianças, como produtoras de cultura, presentes no mundo e com habilidade para refletir sobre ele. “Acredito que as crianças desenvolveram, sim, recursos para lidar com a situação, mas percebemos também que, mais do que nunca, estão com saudade dos encontros, dos espaços de nossas bibliotecas e dos livros físicos.”

Da mesma maneira, Lilith Neiman julga que “as crianças sempre estão desenvolvendo seus recursos. Quanto mais apoio e boas condições oferecemos (segurança alimentar, moradia, presença com afeto), melhor serão esses recursos. A brincadeira é um grande recurso de elaboração e criação das crianças. Acredito muito que nós, adultos, criaremos nossos recursos nos relacionando com as crianças também”.

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