Desde que a pandemia teve início, há dois anos, muito se falou e discutiu a respeito de seus efeitos sobre a saúde mental de crianças e adolescentes. Agora, depois da vacina para as maiores de 5 anos e com o retorno definitivo das aulas presenciais, começam a ser percebidas as consequências emocionais e cognitivas desse período de isolamento.
Para o pediatra e sanitarista Daniel Becker, estamos vendo uma verdadeira pandemia de sintomas psicossomáticos entre crianças e jovens, como dores, cefaleias, cansaços, distúrbios de apetite, distúrbios de comportamento, birras, irritabilidade, rebeldia e distúrbios de aprendizagem.“E também coisas mais graves, como tiques, terrores noturnos, introspecção excessiva, sintomas depressivos. Vem aumentando o bullying nas escolas enormemente. É uma epidemia de saúde mental nas crianças”, relata o médico.
Trecho do livro Eu fico em silêncio, de David Ouimet, sobre uma menina que se sente desconectada de todos
A psicóloga clínica Bianca Stock, que é especialista em problemas do desenvolvimento da infância e da adolescência, explica que crianças e adolescentes viveram esse trauma coletivo do isolamento social e do enfrentamento da pandemia antes das vacinas de forma muito mais intensa inclusive do que os adultos.
“Eles perderam experiências essenciais do desenvolvimento, que a gente chama de os grandes inícios: brincadeiras, relacionamento com os pares, experiências de autonomia e de um pouco mais de independência. Tudo isso é muito mais impactante no psiquismo deles do que para os adultos”, esclarece. “Eles perderam experiências importantes de socialização, o que gera muita angústia e insegurança nessa retomada - sobre si, sobre seu corpo, sobre como construir amizades.”
Raízes da crise de saúde mental entre crianças e adolescentes
Daniel Becker aponta um conjunto de fatores de estresse fortíssimos como causa dessa situação tão delicada:
- falta da natureza e de brincar ao ar livre
- convívio com adultos extremamente sobrecarregados e estressados
- isolamento dos amigos, dos avós e perda da socialização
- afastamento da escola
- excesso de telas recreativas
De acordo com ele, o afastamento da escola representou a privação de diversos fatores, muito além do ensino formal. “A escola tem muitas outras importâncias para a criança. É um espaço público de convivência, onde ela brinca, onde se alimenta (especialmente as mais pobres), onde vai ter um elemento de proteção contra abusos. E foram 20 milhões de crianças sem aula durante dois anos, praticamente, expostas a fatores de risco, em casa ou nas comunidades”, alerta o pediatra.
Ele traz ainda um dado alarmante a respeito do uso de telas: calcula-se que as crianças tenham passado uma média de 12 a 14 horas por dia em frente às telas nos períodos de isolamento da pandemia. “O excesso de telas foi resultado desse confinamento com os pais sobrecarregados. É uma loucura o que aconteceu e são muitos os fatores de estresse que provocaram uma piora muito importante da saúde mental das crianças”, lamenta.
Daniel argumenta que esse é um dos resultados da negligência a que as crianças foram submetidas durante a pandemia. “O que a gente fez com as crianças foi um crime de negligência. Deixá-las dois anos sem aula, com tudo aberto. É muito grave. E aí você tem que olhar para isso nas escolas e em casa.”
O que é possível fazer para ajudar crianças e jovens em sofrimento?
O médico ressalta que, em primeiro lugar, a família precisa ter em mente que comportamento é comunicação. “Então, se a criança tem alguma alteração de comportamento, tem que olhar para ela em vez de brigar, mandar calar a boca ou proibir e castigar. É muito importante, nesse momento, ver o que está por trás desse comportamento. Acolher, legitimar as dores, os medos, as raivas. E ajudá-la a entender que há reações adequadas e reações inadequadas. A gente deve dar um limite, mas com muito carinho, com muita atenção, tentando trazer para ela visões positivas e conversar na medida da compreensão dela”, orienta.
A escuta e o acolhimento são muito importantes porque, como explica Bianca, a única saída para o enfrentamento do trauma é a narrativa, o que se chama em psicanálise de testemunho compartilhado. “É a gente poder testemunhar, narrar, contar e ser escutado sobre o que aconteceu. É construir memória, construir uma história sobre os fatos”, esclarece. Para que isso seja viável, crianças e adolescentes precisam de ambientes promotores de saúde mental: ambientes que sejam de confiança, que acolham os gestos espontâneos das crianças e dos adolescentes, que sejam afáveis e afetuosos.
O dr. Daniel também recomenda o “segredo básico da infância”, composto pelo trio ar livre, contato com a natureza e brincadeira livre, que são essenciais para todas as crianças. Quanto mais o adulto oferecer esses elementos para a criança, menos estresse ela vai desenvolver. “São antídotos para o estresse e é ciência. Em 2018, a Academia Americana de Pediatria publicou uma revisão, mostrando que o brincar é fundamental, exortando os pediatras a prescrever o brincar para as crianças.”
Participação e pertencimento por meio da arte e da cultura
Para Bianca Stock, as escolas, em sua grande maioria, têm vivido uma ansiedade (que depois é repassada para os adolescentes e as crianças) para recuperar conteúdos perdidos pelo ensino remoto, com muita cobrança e pressa.
“Eles já estão intoxicados de informações pelas redes sociais e as relações mediadas pelo virtual. A missão das escolas é fazer um contraponto a isso, entendendo que isso produz sofrimento. É preciso construir outras rotinas na escola que não sejam nessa demanda de aceleração e performance para uma vida posterior adulta, mas para que a vida tenha sentido e para que eles sintam que vale a pena ser vivida agora. Como o Winnicott nos diz, a vida interessante, que produz saúde integral (não só saúde mental), é aquela que a gente percebe que vale a pena ser vivida agora, no presente", reflete a psicóloga.
Ela ressalta ainda que a aprendizagem de qualidade só se dá pela conexão, pelo prazer de aprender, e não pelo controle. É o que acontece quando a aprendizagem tem sentido e significado. Dessa maneira, Bianca enxerga que, numa perspectiva de recuperar conteúdo, o que as escolas têm feito é matar o desejo de aprender das crianças e dos adolescentes.
Se a gente quer que eles aprendam a tomar decisões importantes e boas decisões para as suas vidas, se a gente deseja que se tornem cidadãos participativos da sociedade, que se sintam capazes de contribuir para a sociedade, para o bem-estar de todos, pensando no cuidado de si, do outro e do ambiente, é preciso justamente oferecer experiências de lugar de fala, de participação, de protagonismo para crianças e adolescentes
Bianca Stock
A terapeuta argumenta que a grande ferramenta da escola para a construção de saúde mental é a prática da escuta, que deve perpassar desde a entrada até a saída da escola, da abordagem na recepção às atividades em sala de aula. “A escola precisa ser um espaço de escuta, e para a gente escutar, precisa estar presente e precisa de tempo. A gente não pode deixar que as demandas de conteúdo programados externamente, em função de aprovações no vestibular, se sobreponham às necessidades da vida e de se tornar gente; de nos humanizarmos nas relações escolares.”
De acordo com a psicóloga, a escola precisa ser das crianças e dos adolescentes; precisa ser percebida como um espaço deles de invenção e construção do conhecimento no cotidiano. “Na medida em que eu me sinto participante, aceito e importante, todo um processo de integração psíquica começa a ser favorecido”. Assim, ela considera que as atividades culturais e artísticas, em seus diversos formatos de expressão, sejam fundamentais a essa retomada nas escolas. “Essas propostas trazem um componente lúdico e conseguem inserir fluxos de prazer, de vida, de conexão no cotidiano da escola, o que é essencial para retomar o laço social que acontece ali dentro.”
Dificuldades de aprendizagem e aumento de bullying
Entre os sintomas apresentados pelas crianças e os adolescentes, estão as dificuldades de aprendizagem e de alfabetização, o desinteresse e os comportamentos desafiadores. “Tem crianças que estão se comportando mal, desrespeitando os professores, brigando entre si. Há registros de que os casos de bullying dispararam. O bullying pode ser gravíssimo, é algo muito importante. Recentemente atendi uma criança de 10 anos, deprimida gravemente, e os pais não sabiam o que fazer. Fui investigando e descobri que ela está sofrendo bullying na escola, sendo assediada diariamente por um coleguinha”, exemplifica Daniel Becker.
Ele defende que as escolas estejam atentas aos sinais e tenham um olhar muito cuidadoso para as crianças nesse momento, por meio de professores e orientadores educacionais capacitados. Além disso, como Bianca, o médico enfatiza que é essencial aproveitar esse momento para impor menos pressão e menos sobrecarga aos estudantes, com menos dever de casa e provas mais tranquilas. “É tentar oferecer um ambiente de acolhimento e de reencontro, não de horror, de pressão, de exigências”, diz o pediatra.
Também é uma oportunidade de levar as crianças e os jovens para fora da sala, para pátios, ampliando os horários de recreio e viabilizando a brincadeira livre. Se a escola não possui áreas abertas, o dr. Daniel sugere que se recorra a praças e quadras públicas próximas para que as crianças tenham espaço para brincar, trocar, se expandir e recuperar as habilidades interpessoais.
“E olhar para o bullying. Envolver os alunos na resolução dessas questões, eles têm capacidade de participar e isso é muito importante, especialmente para os mais velhos. A gente precisa envolver os pré-adolescentes e adolescentes, eles têm muito potencial e a participação fortalece a autoestima, as relações, fortalece a comunidade da turma. Fortalece quem sofreu bullying e quem perpetrou o bullying.”