Timidez e introversão: o que caracteriza esses jeitos de ser na infância?

05/06/2022

As maneiras como as crianças se expressam e se comportam podem variar muito, mesmo em períodos bem curtos. Às vezes elas estão mais falantes, às vezes, mais caladas. Em determinadas situações, podem estar superagitadas, e em outras, muito tranquilas. Sempre pode rolar também uma combinação desses e de muitos outros estados. Por isso, é complexo rotular as crianças como tímidas ou introvertidas, por exemplo. Muitas vezes elas apenas estão de um determinado jeito – para logo estarem de outro.

Ilustração do livro infantil Tímidos, da Companhia das Letrinhas

Em Tímidos, de Simona Ciraolo, um retraído polvinho chamado Maurício chega à escola nova: que difícil! 

 

Mas o que é timidez e o que é introversão? Como diferenciar se uma criança é tímida ou introvertida? Ser tímida ou introvertida representa um problema?

A psicóloga clínica e orientadora parental Luiza Chagas Brandão explica que há uma confusão entre timidez e introversão, sendo que os termos são, muitas vezes, usados como sinônimos, apesar de não serem a mesma coisa. Ela diz que a dúvida surge porque há características comuns entre esses estados e que a própria palavra 'timidez', por exemplo, é usada para definir muitas situações - do sentimento comum de vergonha que todos têm em algum momento na vida ao transtorno de ansiedade social, que é um diagnóstico de saúde mental em que a pessoa perde possibilidades de interação por um medo extremo de julgamento.

Com esse uso “indiscriminado” da palavra, fica mesmo difícil saber o que é timidez e o que é introversão e quando é ou não um problema para a criança.

 

O que é a introversão?

Luíza afirma que a introversão não é problemática em nenhum nível. “Ela se refere a indivíduos que tendem a gostar da própria companhia, a preferir fazer atividades sozinhos. Eu gosto de pensar que os introvertidos são indivíduos que, para recarregar as baterias, preferem ficar sozinhos, ao contrário dos extrovertidos, que conseguem fazer isso em grupo, no coletivo.”

De acordo com ela, o que acontece é que a nossa sociedade costuma valorizar muito mais os perfis extrovertidos do que os introvertidos e, por isso, parece que ser introvertido é um problema – quando não é. “E aí, no consultório, é comum que muitos pais tenham dificuldade de aceitar que alguns indivíduos têm como característica ser mais introvertidos, por medo de que isso traga problemas no futuro”, exemplifica.

Ana Olmos, psicóloga especializada em atendimento de crianças e famílias, alerta que é preciso ficar atento aos casos em que há uma mudança muito brusca de temperamento. Ela aponta que uma criança introvertida se sente bem ao ficar sozinha com as suas coisas. "Porém, se uma criança não era assim e abruptamente começa a preferir o isolamento, se era falante e passa a ficar em silêncio, se gostava de estar com os amigos e passa a evitar o contato, é possível estar diante de um quadro mais grave, às vezes até de depressão", exemplifica a terapeuta.

 

Quando a timidez é um problema?

Luiza afirma que a timidez é uma tendência de alguns indivíduos a se retrair diante do contato social. E é possível perceber isso em algumas crianças desde bem pequenininhas”, contextualiza a terapeuta.

Essa maneira da criança de estar em contato com as pessoas passa a ser um problema quando se torna um prejuízo e um sofrimento para a sua vida. “O sofrimento diz da perda de possibilidades de desenvolvimento e de interação. Os sinais de sofrimento a que os pais podem estar atentos são, por exemplo, uma tendência a evitar estar com outras crianças. Deixar de ir a festinhas ou ir e nem olhar para ver o que está acontecendo ou ainda olhar de longe, sem participar”, enumera a psicóloga.

Ilustração do livro Tímidos, de Simona Ciraolo, da Cia das Letrinhas

Tímidos como o polvo Maurício sofrem para ir a festas de aniversário

Ela lembra que a timidez também pode ser fator de risco para o desenvolvimento, por exemplo, do transtorno de ansiedade social, que algumas pessoas chamam de fobia social. Trata-se de  um diagnóstico descrito nos manuais de saúde mental e se refere a pessoas que sentem um medo extremo de julgamento em situações de convivência e isso necessariamente traz prejuízos e perda de possibilidades de interação, o que causa sofrimento. 

Assim, os pais devem estar alertas a sinais como dificuldades para se relacionar com os colegas em sala de aula e a necessidade constante da presença de um adulto para interagir com outras crianças. “Tem casos em que as crianças chegam a ficar ansiosas do ponto de vista clínico, ou seja, com o coração muito acelerado, às vezes com o rosto vermelho, às vezes choram. Essas reações mais intensas em situações de convívio social podem indicar que é necessária uma ajuda psicológica.”

Imagem do livro Tímidos, de Simona Ciraolo, Companhia das Letrinhas

Longe do olhar que sentem como de julgamento, os Tímidos conseguem se soltar

Ela ressalta que é um caso diferente, por exemplo, de uma criança que fica mais quietinha quando chega a um ambiente diferente e depois se solta. “Algumas crianças precisam de um tempo maior para se adaptar ao espaço, para fazer uma leitura social do ambiente e entender as regras sociais que estão em vigor, antes de se engajar com as outras.”

A psicóloga reforça que é muito importante não patologizar comportamentos que são normais, afinal, nem todas as crianças vão ser extrovertidas. "Nem todas vão adorar sair pulando, brincando, correndo, conhecendo pessoas e falando com todo mundo. Existe um espectro de normalidade que é amplo. Não se pode reforçar que só a extroversão é normal”, adverte. Além disso, ela observa que se comportar de maneira tímida não significa que a criança seja tímida sempre. 

 

Os fatores que estruturam a timidez

A timidez é uma inibição do comportamento diante do outro ou de uma situação nova como forma de proteção, uma vez que é precedida pela sensação de julgamento. “Do ponto de vista psicanalítico, é como uma fantasia de que o outro pode te definir como pessoa”, completa Ana Olmos.

Ela argumenta que as causas dessa manifestação são multifatoriais e que os fatores se relacionam uns com os outros. O primeiro deles é a predisposição genética para a timidez, com a qual a criança pode nascer. Mas, independentemente de ter os fatores constitucionais para um temperamento tímido, a forma como a criança vive a infância é o que vai determinar e estruturar a maneira como ela se relaciona com o outro.

Ana pondera que crianças que se sentem valorizadas pelos pais, que são aceitas como são e quando erram, e que são acolhidas em suas manifestações terão uma maneira de funcionar do ponto de vista emocional bem diferente daquelas cujos pais são muito críticos e rígidos. “Se o outro é um perseguidor, se o outro tem o poder de julgar, de condenar, de criticar, é claro que a criança estará tímida em qualquer situação nova ou com outras pessoas”, reflete. Lembrando que o primeiro “outro” para a criança são os pais.

Outro fator trazido pela terapeuta é a cultura familiar. Como exemplo, uma família japonesa vai ter uma forma de expressar sentimentos e emoções muito mais contida e reservada do que uma família italiana ou espanhola. Da mesma forma, há famílias que funcionam por meio do segredo e do silenciamento de problemas e conflitos que fazem parte da vida. Crianças que crescem nesse ambiente, sem a possibilidade de expressar conflitos e ideias diferentes, podem se sentir retraídas ao se expressar em qualquer ambiente.  

A escola, como primeiro contato da criança com o ambiente público, também vai interferir nessa disposição. “Os modelos que ela tem na escola, os pares, os professores, a justiça ou não dessa escola também vão integrar o temperamento da criança”, diz a terapeuta.

Ela aponta ainda que a sociedade também vai integrar a maneira de funcionar das crianças. Uma criança que cresce em um país escandinavo, por exemplo, vai ter uma forma de se manifestar socialmente muito diferente de uma que cresce em um país onde a lei não é igual para todos, onde há violência, desigualdades enormes, racismo estrutural. “A criança pobre e negra, que já tem uma situação social muito vulnerável, vai aprender bem cedo que há uma forma de falar com o policial, por exemplo. A timidez dela terá relação com esse componente de opressão vivido pela família e pelas pessoas próximas”, diz Ana.

Por fim, há os eventos da ordem do imponderável: a morte de alguém muito próximo, a separação dos pais, o nascimento de um irmão, o nascimento ou a morte de um cachorrinho, por exemplo. Ana explica que esses acontecimentos da vida também integram esse rol de atores políticos que podem fazer com que ela seja mais ou menos tímida.

 

Como a família pode ajudar?

Para Luiza Brandão, é muito importante não rotular a criança. "As crianças ficam aprisionadas ao que a gente conta para elas que elas são. Elas aprendem sobre si mesmas por meio da visão dos outros. Então, em vez de rotular, é muito melhor descrever comportamentos. Por exemplo: 'eu vi que você preferiu brincar sozinha a brincar com as outras crianças na festa. O que aconteceu? Você quer ajuda para brincar com as crianças da próxima vez?'", sugere a terapeuta.

Ela explica que o rótulo pode funcionar também como uma profecia que se autorealiza, uma vez que a criança pode se sentir mais acanhada quando alguém aponta sua timidez, mesmo que seja um comportamento pontual, e passar a se comportar de maneira retraída por isso. 

Outra questão importante é a do modelo oferecido pela família. Luiza relata que já recebeu famílias no consultório que trazem a questão da introspecção da criança como um problema, sem se dar conta de que esse comportamento também é reproduzido pela família.

"Já recebi pais que contavam que a criança preferia ficar sozinha em casa a brincar no parquinho ou que não chamava colegas da escola para brincar em casa. E quando eu perguntava sobre a vida social deles, descobria que eles mesmos preferiam passar o fim de semana em casa ou não fazer muita coisa com amigos. Então, às vezes acontece de os próprios pais serem introvertidos e não se reconhecerem. Em geral há um medo de que a criança possa vir a sofrer como eles sofreram, e as camadas vão se misturando, mas é interessante estar atento à forma como a família também modela comportamentos, além de aprender a lidar com essas características, que não necessariamente são produtoras de sofrimento."

Por fim, a terapeuta indica que uma intervenção possível para as crianças que sofrem por não conseguir interagir é o treino de habilidades sociais. Esse é um campo de estudo dentro da psicologia que busca desenvolver e fortalecer os repertórios sociais da pessoa.

Ela explica que, por exemplo, a criança pode já ter sofrido em alguma situação de convivência por não conseguir empregar suas próprias habilidades sociais de maneira adequada. Com medo de repetir a situação, ela se retrai, e o comportamento tímido ganha mais espaço. "Assim, na medida em que a criança fortalece o seu repertório, ela vai interagir melhor com os outros e passa a construir uma história diferente de sucesso social. E isso tende a ter um impacto importante na questão da timidez."

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