Você conhece o Felipe? Certamente algum sim, há muitos como ele por aí, sabe por quê? É que o Felipe tem dificuldade de se conectar afetivamente com os outros. Não por falta de tentativa: o que ele mais quer é distribuir abraços, mas acontece que carinho é assunto espinhoso na sua família. Isso porque ele é um cacto, e uma simples demonstração de afeto pode machucar. Principalmente em um meio de convívio em que os outros pensam e agem diferente dele. Mas sua falta também machuca, já que o abraço faz mais por nós do que simplesmente demonstrar afeto - nosso e do outro. Ele tem benefícios diretos na nossa saúde física e mental e, para as crianças, é fator imprescindível para o crescimento, ao transmitir sensação de segurança, proteção e acolhimento, e ainda reduzir os hormônios associados ao estresse.
O cacto Felipe busca alguém que queira trocar um abraço. Mesmo cheio de espinhos, ele se aproxima de uma bexiga amarela e tenta se conectar com uma borboleta
É com essa metáfora – gentil e graciosa para as crianças, mas potencialmente significativa também para os adultos – que a escritora e ilustradora italiana Simona Ciraolo (autora de Tímidos, lançado em 2022) constrói o enredo de seu mais novo livro publicado no Brasil. Quero um abraço (Companhia das Letrinhas) faz com que a leitura desta história seja uma possibilidade de aprofundar questões universais sobre o que significa sermos criaturas tão intimamente relacionais.
A obra de Simona Cirolo é uma narrativa delicada e atemporal para pensar sobre conexões e diferenças, e que abre caminho para falar de um assunto importante para o desenvolvimento das crianças em uma sociedade cada vez mais complexa, a regulação emocional. "Regulação emocional é a capacidade que um indivíduo tem de voltar a um estado de equilíbrio emocional após um momento ou período de desequilíbrio, ou seja, após passar por emoções fortes e intensas, sejam elas positivas ou negativas", explica a psicóloga Ana Carolina Del Nero, especializada em Neuropsicologia e Teoria do Apego. "Regulação emocional é quando a gente sente uma coisa muito forte, mas depois se acalma e volta e se sentir bem", complementa, sobre como explicar o tema para as crianças pequenas.
Quero um abraço recebeu uma expressiva atenção internacional, e foi vencedor de prêmios importantes entre 2014 e 2015, como o Read It Again - Cambridgeshire Picturebooks, no Reino Unido, o Prix Versailles - Lire Au Jardin, na França, e o Annual Type Book Awards, no Canadá, entre outros.
No livro de Ciraolo, apesar das dificuldades, o cacto Felipe não quer desistir. Então, ele parte em busca do encontro de alguém que possa ouvir seu pedido, demonstrar empatia, apoiá-lo e, assim, proporcionar o abraço (e a amizade) de que ele tanto precisa.
O desafio de estar junto – e levar nossos espinhos junto
Da perspectiva psíquica e até mesmo evolutiva, precisamos estar com o outro (após vivermos coletivamente a experiência do isolamento decorrente de uma pandemia global, podemos depor nós mesmos sobre os danos emocionais da distância física), porém, será que sabemos como fazer isso? Ao colocar questões profundamente humanas em uma narrativa protagonizada por bichos – assim como acontece em Tímidos – a autora libera o leitor de precisar se explicar ou se expor em assuntos delicados e até difíceis, ao mesmo tempo em que permite que ele se sinta pessoalmente identificado pelas vivências da personagem.
Quero um abraço é um livro ilustrado que evoca com sensibilidade a jornada de diferenças e a semelhanças que vivemos ao longo da vida. Tanto crianças quanto adultos podem se ver representados na busca de amigos que querem as mesmas coisas, sobretudo em um ambiente familiar desafiador.
Há muitas formas de demonstrar afeto, e o contato físico é apenas uma delas, em geral a que faz com que a pessoas se sintam mais vulneráveis. Por isso mesmo, é a mais forte, porém a mais assustadora para algumas pessoas. (Ana Carolina Del Nero, psicóloga)
E se o personagem do livro fosse buscar apoio emocional na terapia, o que será que ele ouviria como orientação? A partir desse exercício imaginativo, convidamos os leitores a se colocarem no lugar do cacto, e refletir sobre as diversas formas de comunicar o que sentimos. "Eu diria para o Felipe começar a demonstrar afeto e desejo de proximidade dele de outras formas, cuidando, dando um presente, escrevendo uma carta, etc, para tornar mais familiar a troca de afeto entre ele e sua família, aproximando-os cada vez mais ao ponto de, quem sabe, em algum momento, o contato físico passar a ser algo mais confortável, seguro e até desejável para todos", imagina a psicóloga.
Qual o valor do abraço?
Crianças, ao contrário dos adultos, fazem muitas coisas apenas “porque sim”. É só observar como correm pra todo lado, colocam objetos na boca, jogam os braços para o ar. Cada gesto faz parte do seu constante experimento do mundo. Com a demonstração de carinho, não parece ser diferente. Muitas crianças podem ter facilidade para tocar umas nas outras, abraçar, apertar, beijar, acarinhar. Do ponto de vista físico-químico, qual a finalidade de trocarmos contatos pele a pele? Pensando especificamente no desenvolvimento integral na infância, quais os benefícios do abraço para a saúde física e mental das crianças?
O contato físico é uma forma importante de demonstração de afeto, e também tem uma função de reasseguramento em momentos de crise ou sofrimento psíquico. O abraço, em especial, nestes momentos pode funcionar como fonte de segurança dando um contorno físico e a sensação de limite e proteção contra o mundo exterior. (Ana Carolina Del Nero, psicóloga)
Nem todo mundo sabe o que são norepinefrina, cortisol ou oxitocina – esses termos complicados que nomeiam os hormônios de que nosso corpo é composto –, mas certamente sabe o que é um abraço. A psiquiatra norte-americana Karen Grewen, da Universidade de Carolina do Norte, nos Estados Unidos, concluiu que estar entre os braços de uma pessoa de quem gostamos reduz a quantidade dos hormônios do estresse, ao mesmo tempo em que aumenta os níveis hormonais associados ao afeto maternal. Na mesma esteira, há diversos outros estudos que se debruçam sobre os aspectos biológicos implicados na demonstração de afeto.
Porém, demonstrar afeto com abraços e carinhos, infelizmente, não é algo comum para todas as famílias, sobretudo para pais e avós de gerações mais distantes. Qual o demérito emocional para uma criança que cresce sem essa atmosfera? "Além de uma pobreza na gama de possibilidades de dar e receber afeto, a falta de um contorno físico em momentos de angústia durante a infância é internalizada como falta de contorno psíquico e emocional, e carregada para a vida adulta como uma sensação de desamparo diante de emoções intensas e situações ameaçadoras ou estressantes", afirma Ana Carolina.
Educação para o afeto
Além disso, quando o assunto é abraço, também não podemos deixar de citar a importância de educar as crianças para receber carinho, principalmente para protegê-las de abusos e violências. Como deve ser essa educação para o afeto? "Respeitar sempre os limites da criança e ensiná-la a se perceber e reconhecer em si mesma os sinais tanto de desejo de aproximação quanto de incômodo com uma proximidade indesejada, e a capacidade de colocar limites e se permitir se afastar de pessoas e situações inadequadas de forma assertiva", defende a psicóloga.
Demonstrar afeto é um processo individual, de busca por autoconhecimentos e reconhecimento da própria história e desejos e necessidades não atendidos na infância, mas acima de tudo é um processo social e cultural, de mudança de mentalidade e transformação dos valores sociais associados ao afeto e à sua demonstração aberta. (Ana Carolina Del Nero, psicóloga)
Abraçar não tem contraindicação, no entanto, nem todas as crianças permitem esse contato mais próximo – é o caso de crianças atípicas, por exemplo. Como respeitar esse limite sem negligenciar a importância do afeto físico? Para Del Nero, a chave está na obversação e na atenção às particularidades de cada um. "Ir no ritmo da criança, respeitando seu limite e seu desejo de proximidade ou de distância, se mostrando disponível e aberto mas sem forçar uma proximidade que a criança não deseja ou não tolera".
(Texto: Renata Penzani)