Puffy é um gatinho de rua sem muita habilidade para coisas de gato, como saltos atléticos e pelos macios. Mas, quando desejava alguma coisa, ele assoprava e -puff!- a coisa acontecia, o que era bem incomum para gatos. Porém, apesar disso, ele não tinha um lar. Então, para encontrar alguém que quisesse adotá-lo, Puffy se transforma em bailarino, jogador de minigolfe e chef. Até que encontra Brunilda, uma criança que, como ele, tem um pensamento mágico bem desenvolvido: ela é uma aprendiz de bruxa que precisava justo de um gato para se formar.
Essa é a história de Puffy e Brunilda: uma pitada de magia, da autora italiana Barbara Cantini (a criadora da amada Mortina, a menina-zumbi), publicado pela Companhia das Letrinhas. A narrativa toca nessa habilidade mágica das crianças que, por meio do brincar e do fazer de conta, são capazes de transformar tudo em tudo o mais – e essa é a graça e a marca fundamental de uma infância que brinca.
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Puffy consegue realizar seus pensamentos e encontra um lar
com Brunilda, uma menina prestes a se formar bruxa. Leia +.
É só observar: elas convertem almofadas em espada, martelo, vassoura, ponte, pista, parede. Viram astronautas, motoristas, bailarinas, gatos, cachorros, bruxas e dinossauros. Conseguem dotar de vida e fala qualquer objeto ou elemento: bichos de pelúcia, cadeiras, xícaras, carrinhos, bonecas, bancos de praça, pedras, nuvens, o céu.
Quando a imaginação vira realidade
“Não tem coisa mais bonita do que ter o privilégio de contemplar crianças brincando e o quanto elas realmente levam isso a sério, porque brincar é muito sério, e elas se dedicam a essa tarefa de imaginar e fabular o mundo”, reflete a psicóloga clínica e educacional Bianca Stock. “O brincar é fruto de uma relação com o mundo, de confiança com o mundo; é no brincar, só é de fato no brincar, que a criança usufrui da liberdade e da capacidade de ser ela mesma. Para que a criança possa usufruir do brincar, ela precisa de um ambiente minimamente acolhedor, suficientemente bom para que possa se dedicar a essas tarefas tão importantes da infância, que é se a ver com os próprios pensamentos, a imaginação e a criatividade.”
Ela explica que o faz de conta, mais do que uma mimese, tem uma dimensão de realidade para a criança: “quando uma criança brinca de pular como um sapo, por exemplo, ela não vai imitar o sapo. Ela pula mais alto do que jamais pulou, porque se imbui desse faz de conta, desse devir de ser sapo. Ela agencia a força e a agilidade que só o devir fabulativo e inventivo do brincar é capaz de fazer. E isso é real para ela”.
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Puffy deseja ser bailarino e, com um assopro mágico, seu pensamento se torna realidade
Os educadores Severino Antônio e Katia Tavares (A poética da infância, editora Passarinho, 2019) apontam que, no “pensamento mágico da criança, tudo tem vida, tudo é animado e ganha um nome pronunciado com os sons nascentes”. Eles chamam essa lógica de “pensamento mitopoético, em que tudo fala, assim como tudo se transforma em tudo”. É uma habilidade que “se desenvolve no brincar de fazer de conta, que, juntamente com o fazer de novo, constitui duas das matrizes centrais da brincadeira infantil”.
O brincar e o fazer de conta são formas de conhecer o mundo e aprender com ele, de maneira criativa. “É na brincadeira que a criança adquire experiência, entende o que é o tempo, as dimensões empáticas e relacionais com outro e com ela mesma. Ela aprende a cuidar de si para cuidar do outro e cuidar do mundo”, explica Bianca. Há um tempo e um espaço específicos do brincar, chamados na psicologia de área transicional. “É a área intermediária entre o eu e o não eu, um tempo outro, como na música do Chico Buarque: ‘agora eu era herói’. É esse tempo passado, mas também presente.”
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Fabulação para desenvolver intimidade, autoria e subjetividade
Bianca chama a atenção para a generosidade natural dos pequenos nesse movimento de dar e criar vida. “A criança é muito generosa por poder emprestar subjetividade e afeto para as coisas inanimadas do mundo. É assim que ela vai criando intimidade com os objetos e com as coisas. Talvez o melhor termo não seja pensamento mágico, mas esse pensamento de fabulação, de invenção, que começa lá nos objetos transicionais que o bebê elege. É a pontinha do cobertor ou outro objeto macio ou de apego, que eu invisto de subjetividade e de afeto e dou um sentido maior. Aquele objeto ou bichinho vai ter uma conotação especial e ele me ajuda a entender quem eu sou e quem é o outro”.
Existe ainda a dimensão autoral do brincar, em que a criança se coloca de maneira ativa frente à vida. A psicóloga explica que, mais importante do que o material com que a criança brinca, é a história que ela cria durante a brincadeira. “Ela vai construindo narrativas sobre o mundo e isso a ajuda a se tornar autora da história, autora do mundo, autora do seu ambiente. O faz de conta tem essa dimensão de autoria que é maravilhosa e de poder conectar com outra criança ou outro adulto que empresta o seu brincar e a sua capacidade criativa”, conta Bianca.
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Também é muito pertinente lembrar que as brincadeiras de faz de conta enriquecem a subjetividade e exercitam a capacidade imaginativa de inventar, simbolizar e compreender o mundo. “Essa capacidade criativa do brincar também nos ajuda a organizar as nossas ideias, pensamentos e percepções sobre o mundo.”
Como lidar com o pensamento mágico?
Bianca Stock aponta que é muito importante que os adultos tenham cuidado com o faz de conta das crianças. “Não é para criar um mundo só ilusório, todo cor-de-rosa e cheio de florzinha, no sentido de que se adequa a todas as necessidades da criança. Mas, ao mesmo tempo, não dá para ser uma rigidez excessiva ou que destitui, debocha ou diminui o brincar de faz de conta das crianças”, ela diz.
De acordo com a psicóloga, é o adulto que ajuda a regular com a criança o que é da brincadeira e o que é da relação para além da brincadeira, da vida cotidiana com o outro. Dessa maneira, as crianças desenvolvem condições de entender quando a situação é do brincar e quando não é. "Esse mundo do faz de conta ele pode ser assustador, sedutor. A gente deve estar sempre atento se a criança consegue explorar o faz de conta, mas consegue também voltar e entender que, no real, na relação direta com as pessoas, eu não vou atuar a minha raiva, minha braveza em outra pessoa, por exemplo."
Severino Antônio e Katia Tavares sugerem que é fundamental reconhecer "o pensamento mágico animista da criança, interagir com ele". Para eles, essa interação é fundamental para a escuta da criança, para dialogar com ela e educá-la de maneira viva, sensível e criadora.
Esse processo também envolve uma diferenciação entre o faz de conta e a mentira ou a invenção de uma realidade mais "branda". "Agora na pandemia houve tantos desafios: abre escola, fecha escola, mortes, adoecimentos. A gente não precisa inventar coisas para trazer soluções diferentes da realidade porque a criança vai sacar e vai se sentir desrespeitada. O faz de conta não é mentira sobre a vida e sobre a realidade. O faz de conta é criar, subverter e transgredir as normas sociais, o que só no brincar é possível", finaliza Bianca.
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